sábado, 5 de fevereiro de 2011

Algemas e flechas

O ser humano é um bicho trágico. Somos trágicos sob diversos aspectos, a começar pela consciência de que somos (como diz o sábio Sheldon Cooper, quando questionado sobre como vai a vida), condenados a "entropia, decadência e eventualmente, morte".
Entretanto, algumas das tragédias a que estamos sujeitos foram causadas por nós mesmos. Nessa categoria eu coloco, com distinção, a nossa relação com o tempo.

Começando pelo começo: o que é um relógio? Em última instância, o relógio é o resultado de uma tentativa do homem escravizar o tempo, que saiu pela culatra. Um bom exemplo de como devemos tomar cuidado com o que desejamos.

Com a modernidade, a relação do homem com o relógio evoluiu para uma relação franca de escravidão, especialmente nas grandes cidades, com todos ostentando uma bela algema no pulso esquerdo (ou direito, se você for canhoto ou anormal), de preferência fazendo companhia para uma simpática pulseirinha Power Balance.

Apesar de todos terem relógio, muita gente choraminga não ter tempo para nada. Curioso, pois o tempo é a uma das únicas, senão a única coisa, que é absolutamente igual para todos desde o nascimento, não é? Obviamente, a diferença está em como você usa seu tempo, mas é fundamental aceitar a noção clara de que esta é uma decisão que você está condenado a tomar continuamente, dia após dia, sozinho. Uma responsabilidade toda sua e só sua, independente do que você possa tentar jogar na conta do seu chefe ou do trânsito da sua cidade. Não adianta choramingar.

Outro lado interessante da nossa relação com o tempo está na percepção de que o tempo parece andar mais depressa conforme você vai ficando mais velho. Quantas vezes você não chega ao final do domingo perguntando como foi que o final de semana passou tão depressa? Até que ponto esta aceleração não é causada por nós mesmos e a nossa teimosa mania de projetar o futuro?

Uma metáfora elegante para abordar esta questão é a da "flecha do tempo", do Sr. Mark Rowlands , que vou tentar resumir aqui (tá, já falei dele umas três ou quatro vezes antes e confesso: virei fã do trabalho do cara).

Para ele, uma das grandes diferenças entre humanos e animais está em que o conceito de "futuro" para os animais é algo perfeitamente explícito: se o seu cachorro sente desejo de um gole de água, este desejo o conduzirá em direção um futuro em que este desejo seja satisfeito, o que pode envolver, por exemplo, levantar-se do tapete, atravessar a sala e chegar até a tigela. Fazendo uma analogia com uma flecha, este desejo de beber água funciona, para o cão, como uma flecha lançada em direção ao futuro: é preciso apenas se mexer e sobreviver tempo suficiente para que a flecha atinja seu alvo.

Nossa concepção de futuro, entretanto, é diferente. Nós conseguimos perceber futuro como futuro e somos movidos pela visão de que se estudarmos bastante, trabalharmos bastante e fizermos as coisas e escolhas certas, chegaremos a um futuro onde não precisaremos fazer mais nada disso. Esta abordagem claramente não envolve apenas desejo, como no caso do cão com sede, mas também objetivos e projetos, coisa que os animais não têm.

Nossas flechas, portanto, não são como as deles, e é aí onde está a elegância da metáfora: as nossas são como flechas incendiárias, que iluminam e nos permitem visualizar um pouco deste futuro, reforçando a nossa ansiedade e sensação de necessidade de planejamento e projetos para que o alvo desejado seja atingido.

A tragédia, nesse caso, é que acabamos vivendo sempre no meio do caminho, gastando uma enorme quantidade de tempo fazendo o que não queremos, movidos por uma visão de futuro que pode, ou não, se concretizar. E quanto mais planejamos, mais flechas lançamos e mais rápido o tempo parece passar.

Juntando uma coisa com a outra: antigamente, a noção de tempo era regida por estações do ano, épocas de plantio e colheita, fases da lua e coisas do tipo. O planejamento estava em se preparar para o inverno, ou para o nascimento de um filho. Hoje, a noção de tempo é regida pelo relógio, na casa dos minutos: se você se atrasa 10 minutos para uma reunião, é uma gafe imperdoável. Já o planejamento vai de um extremo a outro: planejamos no sábado o almoço do domingo e planejamos aos 25 anos como será nossa aposentadoria aos 70. Lançamos flechas incendiárias o tempo todo, às mais variadas distâncias, e gastamos uma energia imensa tentando fazer com que caiam nos lugares certos. Não é de se admirar que o tempo passe cada vez mais rápido e que sejamos, cada vez mais, seus escravos.

Como eu mencionei no início, o ser humano é um bicho trágico, e parte de nossas tragédias são causadas por nós mesmos. Acho que merecemos. Afinal, que outro bicho seria estúpido o bastante para voluntariamente criar algo imbecil como o despertador? Se o relógio é uma algema, o despertador é o nosso feitor: aquele desgraçado que vem diariamente chicotear nossas orelhas e nos tirar do nosso único estado natural de felicidade: dormindo.