domingo, 27 de julho de 2014

No Jardim das Feras


Em 1933, durante a depressão que se abatia sobre os Estados Unidos, Franklin Roosevelt viu-se com a missão de designar um novo embaixador para Berlim. Em tempos normais seria uma tarefa simples, mas eram tempos da ascensão de Adolf Hitler, recém-nomeado chanceler.

Com dificuldade em conseguir um candidato adequado e disposto entre os diplomatas de carreira, Roosevelt acabou por aceitar a sugestão de seu secretário de Comércio  e indicou para o cargo William E. Dodd, um professor universitário de história de classe média de 67 anos, fluente em alemão, conhecedor do país, mas sem qualquer relevância política.

Os registros da passagem de Dodd pela embaixada em Berlim entre 1933 e 1938 foram compilados pelo jornalista e escritor Erik Larson e deram origem a "No Jardim das Feras" (Intrínseca, 2012). O livro descreve a transformação da Alemanha neste período sob a ótica da família Dodd que, dada sua posição, teve contato próximo com os representantes de outros países, membros da imprensa, altos funcionários do regime nazista, líderes da diplomacia americana e figuras sinistras como Goebbels, Göring e Hitler.




Não é uma obra de consulta ou uma simples compilação de documentos. O texto é apresentado em forma de romance e é de leitura fácil e fluida, concentrando-se particularmente em acompanhar a vida da filha de Dodd, Martha, que se envolveu em vários romances, tanto com membros do partido nazista (como Rudolf Diels, chefe da Gestapo) como com um diplomata soviético (Boris Winogradov).

Concentra-se principalmente no período compreendido entre a chegada de Dodd na Alemanha em junho de 33 até a noite do grande expurgo nazista de 30 de junho de 34, conhecida como a Noite das Facas Longas. O maior mérito do livro, creio, seja a reconstituição do ambiente da época e sua capacidade de demonstrar como o regime progressivamente opressivo de Hitler foi gradualmente sufocando as oposições internas e dominando a sociedade pelo medo.

É muito interessante também para entender o contexto mundial da ascensão do nazismo na Alemanha e de como o seu crescente belicismo e claras tendências expansionistas puderam ser observados passivamente, praticamente sem contestação, pelos demais países. É nítido o quase desespero de Dodd e alguns (poucos) outros membros da embaixada em tentar fazer com que o governo americano entendesse o que se passava na Alemanha e o enorme risco que representava a postura isolacionista dos Estados Unidos (pesquisas da época indicavam que 95% dos americanos queriam que os Estados Unidos evitassem qualquer guerra estrangeira).

A discrepância entre o que as pessoas viam de fora da Alemanha, ou mesmo durante visitas rápidas ao país e o que era a realidade nada sutil, mas só perceptível a quem efetivamente morasse por lá, acentuada pela eficiente propaganda nazista e pelo desejo de isolamento dos EUA, faziam com que os relatos e apelos de Dodd soassem paranoicos, ou no mínimo tendenciosos, a seus superiores. Sua crescente frustração e a antipatia que despertava no restante do corpo diplomático acabaram finalmente por tornar a sua posição insustentável e ele deixou o posto em 1938. Ao retornar aos EUA em janeiro de 38, declarou:

"A humanidade corre sério risco, e os governos democráticos parecem não ter ideia do que fazer. Mas, se nada fizerem, a civilização ocidental, as liberdades religiosa, pessoal e econômica estarão em grave perigo."

Como se sabe, nada foi feito. Em setembro de 1939, Hitler invadiu a Polônia, iniciando assim a 2a Guerra Mundial.

"Em 18 de setembro, Dodd escreveu a Roosevelt para dizer que a guerra poderia ter sido evitada se 'as democracias da Europa' simplesmente tivessem agido em conjunto para deter Hitler, como ele sempre insistira. 'Se tivessem cooperado', escreveu Dodd, 'teriam tido êxito'. Agora é tarde demais.' "

Em tempos de crise na Ucrânia, causam calafrios algumas semelhanças entre o que se via na omissão do mundo com relação à Alemanha em 33 e o que se vê hoje no comportamento com relação à Rússia. Como diz reportagem na edição de 23 de julho de 2014 na revista Veja:

"Na semana passada, enquanto o mundo assistia atônito ao aparecimento de uma prova atrás de outra de que os russos tinham envolvimento direto na operação que matou quase 300 passageiros inocentes, a taxa de aprovação de Putin batia seu recorde histórico, com 83%. Adoração interna e desaprovação externa é uma receita desastrosa. Os líderes que enveredam por esse caminho oferecem perigo a seu povo e ao mundo. (...)
(...) Os Estados Unidos e a Europa impuseram sanções econômicas para punir Putin pelo avanço à margem da lei internacional. O efeito foi nulo.
O que farão de concreto agora que a responsabilidade de Moscou na derrubada do avião da Malaysia Airlines vai se tornando impossível de escamotear?"

Se há uma lição que pode ser tirada do livro de Larson é de que é inútil esperar-se que a racionalidade seja uma constante no mundo e que homens e governos se conduzam de forma cortês e coerente. A vigilância, mas principalmente as ações que não foram tomadas pela comunidade internacional sobre o governo de Hitler na Alemanha, e que agora começam a se insinuar como necessárias com relação ao governo de Putin na Rússia, podem ser fundamentais para que mais nenhum povo acorde como o berlinense acordou, 80 anos atrás, na manhã de primeiro de julho de 1934: perguntando pela rua a seus conhecidos, com ironia: "Lebst du noch?" ("Você ainda está entre os vivos?").

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Watson e a Lu


Toda vez que vejo o comercial de televisão apresentando a "Lu" do Magazines Luiza (http://www.magazineluiza.com.br/portaldalu/), fico com uma sensação estranha - algo incomoda no avatar digital desenvolvido para ser a cara da empresa na internet, apesar do óbvio cuidado que tiveram em sua criação.

Em 2013, assisti a uma apresentação bastante interessante da IBM sobre seu supercomputador Watson. Watson não é simplesmente uma nova versão do Deep Blue, famoso por suas vitórias no xadrez anos atrás. Trata-se de um sistema de inteligência artificial  extremamente complexo, capaz de interagir com humanos da forma mais simples possível: compreendendo a linguagem natural e respondendo da mesma maneira.

Para demonstrar o potencial de Watson, a IBM "inscreveu" a máquina em uma das competições mais populares de TV nos Estados Unidos: Jeopardy. Watson participou como qualquer pessoa participaria: ouvindo às perguntas e respondendo a elas através da fala. Ganhou o jogo.


Um dos desafios encontrados pela IBM ao longo do processo, entretanto, foi o de como apresentar essa máquina na TV de uma forma simpática e amigável, que não remetesse, por exemplo, à Skynet da série Terminator, ou ao computador psicopata de Jogos de Guerra. As pessoas, por natureza, não se sentem muito confortáveis com a ideia de máquinas que pensam e ficou muito claro desde o começo que dar uma cara "humana" a Waston seria uma péssima ideia.

Uma das primeiras sugestões, segundo consta, foi usar um avatar com rosto e voz de uma inofensiva criança pequena. O resultado foi aterrorizante - ouvir um computador falar com voz de criança, e ainda por cima dando respostas geniais a perguntas difíceis, foi uma experiência tão bizarra que ficou claro que o problema exigia uma solução menos ortodoxa.

A solução da IBM para a questão foi a de dar uma voz neutra para Watson e criar um avatar abstrato, baseado no logotipo "smarter planet" da IBM, para ele:



O processo de criação do avatar e da voz podem ser vistos no vídeo abaixo e são bastante interessantes:



Acho que é isso que me incomoda na Lu: por ter sido desenvolvida tentando simular um ser humano o mais perfeitamente possível, talvez ela chame a atenção demais e gere um certo desconforto. Neste tipo de aplicação, em que humanos precisam interagir com um interlocutor digital, provavelmente a opção por um avatar abstrato realmente seja melhor.

Em tempo: a demonstração a que assisti para as capacidades de Watson foi também muito interessante. Como o evento se passou no Caribe, foi dada a Watson a tarefa de desenvolver uma sobremesa que fizesse uso de elementos da culinária local para ser servida ao final da apresentação. Simples assim. É surpreendente  imaginar que haja um sistema de IA que consiga raciocinar sobre sabor como um humano, mas posso dizer que provei e que funcionou!

O sistema começou capturando dezenas de milhares de receitas disponíveis através de técnicas de processamento de textos em linguagem natural para entender como os ingredientes se combinam e como os pratos são compostos, passando em seguida a fazer rearranjos dos diversos ingredientes em novas receitas. Ele então fez referências cruzadas entre a composição química dos ingredientes e a psicologia do gosto das pessoas para modelar como o palato humano poderia responder a cada combinação diferente de sabores. Finalmente, deu prioridade a ingredientes locais e combinações típicas da região para sair com a receita final, que acabou sendo composta por um número de ingredientes muito maior do que seria razoável numa receita convencional, criada por um chef.

A título de curiosidade, segue a receita que experimentei  (em inglês) e a foto da sobremesa, preparada pela equipe do hotel. O resultado foi surpreendentemente  bom, mas os cozinheiros lendo isso podem ficar sossegados. As receitas humanas ainda são melhores e o emprego de vocês está garantido, pelo menos por mais alguns anos:

CAYMANIAN PLANTAIN DESSERT
Yields 6 servings 
Special tableware: 5 cm diameter, 7.5 cm tall glasses




Caramelized bananas
- 21 g butter
- 28 g molasses
- 1 tsp (5 g) pure vanilla extract
- about 0.3 g nutmeg
- 170 g peeled very ripe bananas, medium dice (1.25 cm)
- 85 g milk

1- Heat the butter and molasses in a saucepan over medium heat.
2- Add the vanilla extract and nutmeg, then the bananas, and cook for 2 minutes, stirring regularly with a spatula.
3- Add the milk, stir, and bring to a simmer. Remove from the heat. Adjust the nutmeg as needed: you should be able to taste just a hint of it.
4- Pass the mixture through a sieve. Process half of the bananas with the liquid in a blender until smooth. Transfer to a container, mix in the rest of the banana chunks, and let cool for 30 minutes.
5- Pour into the verrines, and refrigerate for at least 30 minutes. Once cold, the mixture should not be liquid anymore.

Coconut and lime pastry cream
- 3 egg yolks
- 45 g light brown sugar
- 14 g flour
- 170 g milk
- 17 g lime juice
- 28 g coconut flakes
- 3 g butter, diced

1- In a bowl, mix the egg yolks and half of the sugar with a whisk for 1-2 minutes, then mix in the sifted flour.
2- In a small saucepan over high heat, place the milk, the lime juice, coconut flakes and the rest of the sugar, and bring to a simmer. Remove from the heat and let steep 5 minutes.
3- Process the milk mixture in a blender, and pass through a conical sieve, pressing with a ladle to get all the liquid out of the coconut residue. Return the liquid to the saucepan, and bring back to a simmer.
4- Slowly pour the milk over the egg yolk mixture to temper it, whisking constantly. Return to the saucepan, and bubble gently for 2 minutes, still whisking constantly. Transfer to a container, mix in the butter, and let cool for 15 minutes.
5- Pour into the verrines, and refrigerate for at least 30 minutes. Once cold, the mixture should not be liquid anymore.

Papaya and orange salad
- 113 g orange juice
- 20 g butter, diced
- about 0.1 g cayenne pepper
- 128 g papaya, small dice (1/4”)

1- In a saucepan over high heat, reduce the orange juice to ¼.
2- Whisk in the butter and cayenne pepper. Adjust the pepper as needed: you should be able to taste just a hint of it.
3- Toss the papaya, and remove from the heat. Transfer to a container, and let cool for 15 minutes.
4- Pour into the verrines, and refrigerate for at least 30 minutes.

Plantain chips
- Corn oil, for deep-frying
- 1 plantain, very cold
- salt

1- In a deep-fryer, heat the oil in to 375 F / 190 C.
2- Peel the plantain, then cut it in half. Using a mandoline, slice each half very thinly: the slices should be just thick enough so they don’t break. Cut each slice in half lengthwise (into 2 long strips).
3- Proceeding in small batched, deep-fry the plantain strips until golden brown, then drain on paper towels and let cool.
4- Deep-fry the strips a second time for about 10 seconds, to make them crispy. Drain on a paper towel, and season with Salt.
5- Place 2 chips on each verrine just before serving..