sábado, 20 de setembro de 2014

Um retrato do artista quando jovem

Antes de encarar as 1.112 páginas e 1 kg de Ulisses, achei que seria melhor ter um contato mais leve com James Joyce lendo "Um retrato do artista quando jovem" (editora Hedra, 2013) e ver se me animava. 




Autobiográfico, o livro narra o período da infância à adolescência de Stephen Dedalus, alter ego de James Joyce, e vai evoluindo em estilo conforme a idade de Dedalus avança, sendo, em minha opinião, mais interessante em termos estéticos do que de literatura propriamente dita. Não estou afirmando aqui que seja uma obra ruim (muito pelo contrário), mas minha concepção de literatura interessante pressupõe um texto que consiga me manter acordado por mais de 5 páginas depois das 23:00, missão em que o "retrato" falhou miseravelmente... 

Quando me refiro à evolução do estilo ao longo do livro, quero dizer que a forma de escrever vai mudando proporcionalmente e refletindo o amadurecimento intelectual de Dedalus. Compare, por exemplo, os dois trechos descritivos abaixo, extraídos do primeiro e último capítulos. O primeiro trecho, da infância de Dedalus: 

"O trem ia cheio de colegas: um trem grande cor de chocolate, grande e com os lados cor de creme. Os guardas iam e vinham, abrindo e fechando e trancando e destrancando as portas. Eles eram homens vestindo azul escuro e prata; tinham apitos prateados e levavam chaves que produziam música ligeira: clique clique: clique clique." 

Até aí você vai pensando: ué, quem foi que disse que Joyce era difícil? O que tem de especial? Mas então, no último capítulo, se dá conta de que as descrições do tipo "clique clique: clique clique" foram evoluindo para algo como: 

"Ele observava o voo deles: pássaro depois de pássaro: um clarão escuro, uma curva, outro clarão, uma guinada de lado, uma curva, um bater de asas. Ele tentou contá-los antes que todos os corpos velozes e trêmulos passassem: seis, dez, onze: e ele se perguntou se estariam em número par ou ímpar. Doze, treze: pois dois vieram à toda do céu mais alto. Eles voavam alto e baixo e sempre em redor, em linhas retas e curvas e voando sempre da esquerda para a direita, circulando um templo de ar. 

Ele ouviu os gritos: como guinchadas de rato atrás dos lambris: uma aguda nota dupla. Mas as notas eram longas e estridentes e vibrantes, diferentes dos guinchos de ratos, descendo uma terça ou quarta e trinando enquanto os bichos volantes cindiam o ar. O grito deles era estridente e claro e belo e cadente feito fios de luz sedosa desenrolada de carretéis murmurantes." 

Imagino a felicidade do tradutor quando encontra um parágrafo destes... 

A vida de Dedalus vai sendo narrada em torno de seus conflitos morais, religiosos, intelectuais e políticos, especialmente no que diz respeito à sua relação com a Igreja Católica e com o nacionalismo irlandês. Tem diálogos memoráveis e a obra é cheia de referências e citações, com passagens bem interessantes. No geral, entretanto, é muito específica e recomendável para o tipo de leitor que se interessa em literatura também como arte e não apenas como entretenimento. Se não for este o seu caso, mas mesmo assim decidir experimentar, é melhor ler em paralelo com algo mais convencional, porque o "retrato" não vai lhe manter acordado depois das 23:00.