quinta-feira, 4 de junho de 2015

O capital no século XXI

No dia em que escrevo isto, "O capital no século XXI" de Thomas Piketty (Editora Intrínseca, 2014), figura na lista dos 10 livros de não-ficção mais vendidos no Brasil pela vigésima quarta semana, algo notável para uma obra de economia. Apesar do livro ser bem longo (mais de 600 páginas), vou tentar fazer um resumo grosseiro aqui, incluindo o mínimo indispensável para iniciar uma conversa polêmica no boteco ou para lhe deixar preparado para quando o seu cunhado petista chato puxar o assunto no almoço domingo. 



Antes de começar, entretanto, adianto que alguns dos pontos e soluções que Piketty levanta são realmente polêmicos e discutíveis, mas têm o mérito de servir como gatilho para discussões importantes e que provavelmente serão o centro de longos debates ao longo dos próximos anos. O livro é embasado em uma pesquisa extensa sobre bases de dados impressionantes sobre capital e renda em países como França, Alemanha, Itália, Inglaterra e Estados Unidos e é surpreendentemente bem escrito e muito bom de ler, mesmo para os que fogem de números e cálculos. 

A preocupação central de Piketty diz respeito ao crescimento da desigualdade na atualidade e a sua visão de que a concentração de renda é retroalimentada continuamente. Para ele, "Quando a taxa de remuneração do capital ultrapassa a taxa de crescimento da produção e da renda, (...) o capitalismo produz automaticamente desigualdades insustentáveis, arbitrárias, que ameaçam de maneira radical os valores da meritocracia sobre os quais se fundam nossas sociedades democráticas." 

Em linhas gerais, isso significa dizer que quando os rendimentos financeiros são maiores do que as taxas de crescimento das economias, haveria a formação de uma espiral contínua de concentração de renda que não seria controlável por forças de convergência espontâneas e que precisaria ser contida e ajustada por meio de mecanismos específicos. 

Por forças de convergência entenda-se fatores que tendam a reduzir a desigualdade de capital e renda, sendo a principal delas a difusão de conhecimento. As forças de divergência, por sua vez, são as que operam em sentido contrário, fazendo, por exemplo, com que se forme uma barreira aparentemente instransponível entre as pessoas com salários mais elevados do restante da população e que propiciam a concentração contínua de capital. A principal força de divergência segundo Piketty seria justamente a diferença entre a taxa de remuneração do capital (r) e a taxa de crescimento (g), ou seja a desigualdade r > g. 

Sua análise referente a concentração de capital e renda se inicia comparando a situação observada no final do século XIX e início do século XX (em que a concentração era extremamente elevada), com a observada no início do século XXI. Nesta comparação, encontra uma curva de evolução da concentração em forma de "U" ao longo dos últimos 100 anos e deduz que o vale observado nas décadas de 1940 / 1950 teria sido causado não por uma evolução natural do modelo econômico capitalista, mas pelo impacto extremo das duas grandes guerras. Extrapola então a análise, sinalizando que sem ações externas de contenção, a tendência da curva de desigualdade seria a de atingir, em alguns anos, níveis muito elevados, próximos aos extremos observados na "Belle Époque" e propiciar o surgimento de um novo capitalismo patrimonial. A desigualdade de renda resulta da soma de dois fatores: a desigualdade de renda do trabalho e a desigualdade de renda do capital. 

A desigualdade de renda do trabalho é óbvia - refere-se às diferenças de rendimentos de salários e outros valores advindos de atividades produtivas. Já o mecanismo que ocasiona a desigualdade de renda do capital é muito simples de ser entendido por qualquer pessoa que já tenha se preocupado em escolher um fundo de investimento em um banco: quanto maior o capital a ser investido, melhores são as taxas de remuneração oferecidas, menores são as taxas de administração do fundo e menores (ou nulas), são as taxas de manutenção da conta. Ou seja, o capital de quem aplica R$ 100.000,00 em um fundo cresce a ritmos muito mais acelerados do que o de quem aplica R$ 1.000,00, de modo que a divergência tende a aumentar continuamente. De modo análogo, taxas de retorno de capital maiores do que as taxas de crescimento da economia tenderiam a aumentar a concentração de capital continuamente. 

Na prática, a desigualdade de renda do capital é mais forte do que a de renda do trabalho. Altas rendas de capital podem conduzir o investidor a uma situação em que seja possível viver com apenas uma parte dos rendimentos anuais de juros, ainda reinvestir parte destes juros e manter-se sem trabalhar e sem consumir o principal, que continua aumentando. Esta é, para Piketty, a situação a ser evitada, já que grandes parcelas de capital estariam deixando de ter utilidade real para a sociedade. 

Cabe aqui apresentar alguns números interessantes a esse respeito: 

  • A participação dos 10% que recebem as rendas de trabalho mais altas gira de 25% a 30% da renda de trabalho total; 
  • A participação dos 10% que detêm o patrimônio mais alto é sempre superior a 50% do total da riqueza; 
  • Os 50% com salários mais baixos recebem entre 1/4 e 1/3 da das rendas de trabalho; 
  • Os 50% mais pobres em patrimônio não possuem nada (menos de 10% ou mesmo 5% da riqueza total). 

Ou seja, quanto mais se sobe no nível de riqueza, maior a importância dos rendimentos de capital nos rendimentos da família e menor a importância dos rendimentos do trabalho. Interessantes também são os números referentes à desigualdade de renda total (trabalho + capital) nos Estados Unidos em 2010 (país com desigualdade acentuada): 

  • Renda dos 10% mais ricos = 50% da renda total (onde o 1% superior corresponde a 20% do total);
  • Renda dos 40% do meio (classe média) = 30% da renda total;
  • Renda dos 50% mais pobres = 20% da renda total. 

Em termos da riqueza total, os números apresentados indicam que nas sociedades escandinavas, mais igualitárias, os 10% com os maiores patrimônios detém cerca de 50% da riqueza total e os 50% mais pobres cerca de 10% (no caso da Suécia). Já nos Estados Unidos, os 10% superiores detém cerca de 72%, com os 50% inferiores detendo apenas 2%. 

A base de comparação de Piketty são os dados disponíveis em 1900 a 1910 para Reino Unido, França e Suécia, onde os 10% mais ricos detinham 90% da riqueza nacional (sendo o 1% superior detentor de 50% (!)) e os 40% do meio de cerca de 5% a 10%. Ou seja, a situação dos 40% do meio em 1910 é muito semelhante à dos 50% mais pobres na atualidade. 

Esta situação indica que não havia uma classe média real em 1910 e Piketty ressalta o surgimento da classe média patrimonial como uma das grandes inovações do século XX e uma das mais importantes transformações estruturais na distribuição de riqueza no longo prazo, embora ela só detenha na prática 1/3 do patrimônio na Europa e 1/4 nos Estados Unidos atualmente. A queda dos 10% mais ricos deu-se essencialmente em benefício da nova classe média patrimonial e não dos 50% mais pobres. 

Enquanto a sociedade de 1910 chegou a esta condição de concentração por meio de uma "sociedade hiperpatrimonial" (de rentistas), em que o patrimônio é muito importante e a renda é dominada pelos rendimentos de capital, a desigualdade atual encontraria um de seus motores na "sociedade hipermeritocrática" ou de "superexecutivos", onde o topo da hierarquia das rendas é dominada pelas rendas de trabalho (e não de capital), mais altas. 

Nada impede, entretanto, que os filhos dos superexecutivos se tornem rentistas, uma vez que os dois tipos de desigualdades podem facilmente se acumular. Isso nos conduz à análise de Piketty sobre a questão das heranças. 

Segundo Piketty, outra força em favor da concentração de capital e ampliação da desigualdade é o retorno da herança. Para a geração nascida imediatamente após as guerras mundiais (os baby-boomers), a herança era um conceito ultrapassado. Com a destruição de capital causada pelas guerras, poucos tiveram acesso a heranças significativas. Entretanto, a despeito do maior envelhecimento da população (que atua em sentido contrário à importância das heranças), os dados apresentados no texto indicam um movimento ascendente no fluxo de heranças a partir de 1970 / 1980, sendo que a participação dos patrimônios herdados sobre a riqueza total da França, por exemplo, passa de 45% em 1945 para quase 70% em 2010. 

Unindo-se este retorno da importância das heranças a uma conjuntura em que o crescimento é baixo e o rendimento do capital é muito superior à taxa de crescimento, a tendência é de que a concentração patrimonial rume a níveis em que a renda do capital herdado supere as altas rendas de trabalho, o que conduziria a uma nova sociedade de rentistas. Outro aspecto da herança ressaltado por Piketty é que ela se opõe a um dos principais pilares do capitalismo e das sociedades democráticas atuais: a crença numa sociedade em que as desigualdades seriam mais fundadas no mérito e no trabalho do que na filiação ou na renda. 

Dito isso, Piketty advoga em favor do Estado social como fundamental para o controle e redução da desigualdade. Inicia apresentando como as receitas fiscais foram muito ampliadas ao longo dos últimos 100 anos, saindo de uma carga tributária correspondente a 10% das rendas nacionais antes da 1a Guerra Mundial para algo em torno de 40% a 55% na Europa ou 30% nos Estados Unidos na atualidade. Este aumento foi destinado basicamente à atuação do Estado nas áreas de educação, saúde e de rendas de substituição e transferência, algo que inexistia no início do século XX, quando se concentrava basicamente nas grandes funções soberanas como polícia, justiça, exército, etc.).

Como forma de financiamento do Estado social, Piketty defende formas progressivas de impostos tanto sobre a renda quanto sobre o capital e sobre heranças, sendo este último mais uma forma de controle da concentração de capital do que de financiamento do Estado, dada sua menor relevância. Sob sua ótica, a implementação de um imposto progressivo e global sobre o capital, que ignorasse a sua forma (investimentos, imóveis, ações, etc.) e também a sua localização (no país ou no exterior), seria inestimável na regulação do capitalismo e também como forma de obrigar o capital a ser destinado preponderantemente a atividades produtivas e não especulativas. Por outro lado, um imposto progressivo sobre a renda, além de colaborar com o financiamento do Estado social, também atuaria como um desestímulo aos supersalários. 

Finalmente, enquanto defende estas políticas tributárias progressivas, ataca o gasto excessivo dos governos com os juros sobre suas dívidas públicas (e que funcionam como um mecanismo adicional de concentração de renda) e considera a legitimidade de um imposto excepcional sobre o capital como forma de se reduzir estas dívidas. Ciente da dificuldade na implementação de um imposto desta natureza, Piketty avalia também a relevância da inflação controlada como um fator de redução da dívida, ou seja, como um substituto imperfeito mas eficaz. 

Pode-se questionar as conclusões de Piketty ou as suas propostas para a solução do problema da desigualdade (que possuem um viés claramente socialista). Um exemplo é o questionamento de Matt Rognlie, um doutorando do MIT que levantou o ponto de Piketty ter subestimado a importância da depreciação de grande parte do capital com o tempo (como ocorre com fábricas, por exemplo). Independente disso, o livro tem o grande mérito de trazer a questão da concentração de riqueza de novo ao centro do debate político e econômico e conduz a questionamentos bastante interessantes. Vale a pena ser lido.