sábado, 26 de setembro de 2015

Sense8, ressonância límbica e A General Theory of Love

O primeiro episódio de Sense8 (série do Netflix) tem o nome curioso de "Ressonância Límbica". O termo aparece só uma vez, quando Riley Blue está conversando com Nyx, que acaba de conhecer, sobre suas "visões". Para Nyx, Riley teria experimentado um momento de "Ressonância Límbica", ou o efeito de fazer parte de uma "rede eco-biológica sináptica", que conectaria todos os seres vivos, formada "a partir de uma molécula simples chamada DMT". 

Fui atrás da origem do termo e, depois de removidas todas camadas de ficção e liberdades poéticas aplicadas pelos Wachowski, cheguei a ao livrinho extraordinário onde o termo foi cunhado pela primeira vez: "A General Theory of Love", de Thomas Lewis, Fari Amini e Richard Lannon (Vintage Book, 2000), três professores de psiquiatria de três gerações diferentes que procuram dar respostas três perguntas: "O que é o amor e porque algumas pessoas não conseguem encontrá-lo? O que é solidão e porque dói? O que são relacionamentos e como e porque eles funcionam da forma que funcionam?". 




Antes de prosseguir, esclareço apenas que não pretendo, aqui, fazer qualquer tipo de juízo de valor sobre os conceitos apresentados ou sobre as opiniões dos autores. Meu objetivo é simplesmente descrever de forma breve sobre o que trata o livro, que não foi publicado no Brasil e nem tanta gente assim deve ter lido ou irá encontrar por aí. Peço desculpas se alguns trechos ofenderem algumas sensibilidades, mas não é, em absoluto, esta a intenção. 

Inicia com um questionamento bastante pesado sobre a teoria psicanalítica criada por Freud. Para os autores, trata-se de uma construção elaborada a partir de bases puramente especulativas e artificialmente dotada de uma aura de solidez que jamais poderia possuir, simplesmente devido ao fato de Freud não ter tido acesso, no início do século XIX, de praticamente nenhuma informação sobre a fisiologia do cérebro, muito menos dos modernos recursos de diagnóstico e monitoramento por imagens, de que dispomos hoje. Além disso, enfatizam que, em sua experiência clínica, seus pacientes nunca se comportavam como previsto pela teoria freudiana e tampouco se beneficiavam dos modelos por ela prescritos. Na verdade, as técnicas que os efetivamente ajudavam, jamais lhes haviam sido ensinadas. 

Outro aspecto que deporia contra a validade da teoria freudiana seria o dos avanços das medicações: como reconciliá-la com moléculas que, quando ingeridas, são capazes de apagar desilusões, remover depressão, atenuar as oscilações de humor ou acabar com a ansiedade? Como alguém poderia encaixar esses medicamentos em um racional que pressupõe a proeminência de impulsos sexuais reprimidos como a causa de transtornos emocionais? 

Como o arcabouço fornecido pela teoria freudiana para compreensão da vida emocional de seus pacientes percebido como nitidamente inadequado, os autores passaram então a buscar outras bases para a compreensão dos casos que se apresentavam diariamente em seus consultórios, como os recentes avanços na compreensão da fisiologia e química cerebrais. 

Entretanto, ao mesmo tempo em que a ciência moderna evolui e tende a emergir como sucessora de Freud, traz o desequilíbrio para o outro extremo da escala: um reducionismo físico-químico sem alma. Ou seja, medicações como Prozac e Ritalin seriam as únicas soluções para pacientes com distúrbios emocionais? Quando uma esposa perde o marido e entra em depressão, sua dor tem significado ou se trata apenas de química desregulada? 

De qualquer modo, emoções emanam do cérebro e o cérebro é um órgão físico, ao mesmo tempo em que é inevitavelmente pessoal e subjetivo. Apenas uma mistura cuidadosa de evidência científica e intuição pode, portanto, trazer à tona uma imagem verdadeira da mente emocional. Uma falha neste equilibro leva ao reducionismo vazio de um lado ou à credulidade sem base do outro. 

O modelo trino do cérebro 

O modelo básico do cérebro necessário para a compreensão dos conceitos usados no livro é o modelo trino, ou triúnico, representado abaixo. 



Ao contrário da noção comum de que o cérebro humano seria um órgão único e harmônico, ele não é assim. Segundo o modelo trino proposto pelo Dr. Paul Maclean em "A Triune Concept of the Brain and Behaviour" (University of Toronto Press, 1973), o cérebro seria composto por três sub-cérebros distintos, cada um resultado de uma etapa diferente de nossa história evolutiva. Os três se conectam e se intercomunicam mas, em função das diferenças anatômicas e químicas entre eles, parte da informação é inevitavelmente perdida nesta processo. 

O mais antigo é o cérebro reptiliano, responsável pelas funções vitais como respiração, batimentos cardíacos ou deglutição. Em termos evolutivos é o único de que dispõe vertebrados até o nível dos répteis e possibilita apenas interações rudimentares como mostras de agressividade, disposição para acasalamento ou defesa de território. Não possui as estruturas necessárias para o desenvolvimento de uma mente emocional, nem mesmo nos termos mais básicos, como afeição de mãe pela prole (ou seja, se você pensa que seu iguana realmente gosta de você, pense de novo). 

O segundo cérebro na sequência evolutiva é o cérebro límbico. Começa a se desenvolver a partir dos primeiros mamíferos e todos eles possuem esta estrutura em comum (trata-se do "grande lóbulo límbico" identificado em 1879 pelo cirurgião francês Paul Broca). Seres dotados de cérebros límbicos, mesmo que pouco desenvolvidos, já começam a manifestar emoções. Por exemplo, mamíferos se importam e cuidam de sua prole, chegando ao ponto de arriscar suas vidas para defendê-la, ao mesmo tempo em que a prole busca os pais por proteção. 

Mamíferos também se comunicam vocalmente com sua prole (remova um filhote de cão de perto de sua mãe e ele inicia um uivo incessante de chamado, algo que realmente só faz sentido em animais cujos cérebros podem conceber o conceito de buscar seus progenitores por proteção). Finalmente, mamíferos também brincam uns com os outros, uma atividade interativa complexa e exclusiva das criaturas que dispõe do cérebro límbico. Em suma, é o cérebro límbico que fornece tanto as estruturas necessárias para a formação de emoções como as necessárias para interações sociais. 

O terceiro subcérebro do modelo é o neocórtex, o maior no cérebro humano e presente em maior ou menor grau em diversos outros mamíferos, de coelhos a macacos. Fala, escrita, planejamento, raciocínio e principalmente a capacidade de abstração têm origem no neocórtex. 

A forma difusa com que ocorrem as interações entre os três cérebros e suas diferentes funções é a grande responsável por ocultar os mecanismos e dificultar a compreensão da vida emocional dos seres humanos e da real natureza do amor. Como as pessoas têm consciência plena apenas da parte racional de seus cérebros, assumem que suas mentes emocionais sejam suscetíveis à pressão de argumentos e vontades racionais. Mas infelizmente não é assim que a coisa funciona. Grande parte da mente humana simplesmente não aceita ordens. Pelo contrário, a neuroanatomia moderna indica que todo o neocórtex humano continua sendo indefectivelmente regulado pelas mesmas regiões paralímbicas a partir das quais se desenvolveu. 

Ou seja, se as estruturas responsáveis emoções se concentram em um cérebro e as responsáveis por razão e lógica em outro, que simplesmente não tem capacidade de comandar o primeiro, é irreal imaginar que alguém possa realmente "querer" a coisa certa ou "amar" a pessoa certa. A vida emocional pode ser influenciada, mas não comandada. 

Emoções como vantagem evolutiva 

Mas quais seriam as funções da emoção em termos de evolução? Darwin considerou as emoções como parte de uma adaptação evolutiva dos organismos que se desenvolveu pelas mesmas razões das demais adaptações - sobrevivência. Sua teoria era de que as emoções têm funções biológicas objetivas e que se as estudarmos em detalhe, entenderemos quais são. Por exemplo, bebês cegos sorriem quando interagem com sua mães, da mesma forma que bebês visão perfeita. O sorriso é expresso por criaturas ainda incapazes de falar, andar ou sentar, mas que já sabem como demonstrar sua felicidade através da contração de determinados músculos faciais mesmo que jamais tenham visto outra pessoa expressar-se da mesma maneira. Este sorriso deve, portanto, refletir a arquitetura emocional do cérebro, herdada geneticamente. 

A hierarquia evolutiva das emoções começa com reações simples como o nojo por alimentos podres, que evita o risco de doenças. As seguintes envolvem por exemplo raiva, que prepara o animal para o combate, ou ciúme, que o alerta sobre a possibilidade de ser preterido em um potencial acasalamento. As mais elaboradas envolvem algum nível de abstração do neocórtex, como é o caso do fervor religioso, sendo improvável que possam se manifestar em outros mamíferos além de nós, mas a grande maioria delas são como reflexos que não requerem ou envolvem simplesmente nenhum grau de raciocínio. 

A sintonia emocional entre mamíferos 

Mamíferos podem ler e responder ao estado emocional de outras espécies de mamíferos. Seu cachorro sabe quando você está triste e a recíproca é verdadeira, mas tente ler o estado emocional de um jaboti e ficará bastante desapontado. Variações da mesma linguagem emocional existem ao longo de toda a família dos mamíferos, embora algumas das quais nos sejam totalmente incompreensíveis e outras perfeitamente decodificáveis pelo nosso cérebro límbico. 

Tudo que um mamífero vê, ouve, sente ou cheira é informado ao cérebro límbico, da mesma forma que dados sobre seus batimentos cardíacos, temperatura, pressão e outras dezenas de processos somáticos. Toda esta informação converge para o sistema límbico e é usada no ajuste fino da adequação da fisiologia do corpo ao mundo exterior, como por exemplo no aumento do nível de suor, frequência cardíaca ou respiração. Expressões faciais espontâneas também são uma forma de interação com o mundo exterior e diversas delas, como expressões de raiva ou surpresa são também comandadas pelo cérebro límbico e, em muitos casos, incontroláveis. 

As expressões faciais, têm uma função fundamental na comunicação entre humanos. Como os músculos da face são os únicos conectados diretamente à pele, formam um canal de comunicação extremamente rápido (e universal), disponível ao cérebro límbico. Um bebê, por exemplo, avalia instintiva e constantemente a expressão facial de sua mãe - ao se deparar com um objeto ou situação nova, avalia sua reação e sabe imediatamente se ela está apreensiva ou relaxada, e assim deduzindo indiretamente e se o objeto ou situação em questão lhe oferece algum tipo de perigo. Do mesmo modo, adolescentes e adultos que precisam se comunicar sem contato visual, como em redes sociais, rapidamente aprendem como é muito mais fácil expressar-se com o apoio dos emoticons do que tentando transmitir entonações em um texto digitado. 

Esta conexão e comunicação implícitas são naturais aos seres humanos desde o nascimento. Imagine uma situação em que um bebê pode ver numa tela o rosto de sua mãe. Se for uma conexão de vídeo em tempo real, mãe e filho irão olhar um para o outro, sorrir e estarão felizes e tranquilos. Se a conexão for substituída por uma gravação análoga de imagens da mãe, o bebê percebe rapidamente e fica progressivamente nervoso. Não é apenas a sinalização de satisfação da mãe que ele busca, mas a sincronia e a interação mútua com ela. Mas como e porque uma criatura em um estágio ainda tão preliminar de seu desenvolvimento já seria tão eficiente e tão focada em detectar mínimas contrações faciais no rosto de outra criatura, antes mesmo de conseguir sentar sozinha?

Morcegos desenvolveram sonares para "ver" no escuro. Enguias possuem estruturas capazes de detectar mínimas perturbações em campos elétricos próximos. As emoções nascidas no cérebro límbico, por sua vez, são os órgãos de sensibilidade social dos mamíferos. São o que nos permite avaliar o estado interno de outros mamíferos ao nosso redor e assim ajustar a nossa fisiologia de acordo - uma alteração que é sentida também pelo outro e que por sua vez também se adapta, em um intercâmbio contínuo entre dois cérebros sensíveis e maleáveis. 

É justamente a esta capacidade de troca e adaptação interna que os autores dão o nome de ressonância límbica. É ela que torna o simples ato de olhar nos olhos de uma outra criatura uma experiência tão rica e multifacetada: quando olhares se cruzam, nossa visão vai fundo, sensações se multiplicam e dois sistemas nervosos distintos atingem uma sobreposição íntima e palpável. A conexão é tão natural e esperada para nós que, quando falha, achamos sua ausência perturbadora. Olhe um peixe ou réptil nos olhos e não terá resposta alguma, nenhum sinal de reconhecimento. A frieza de seus olhares dá calafrios aos mamíferos - não é por acaso que são incorporados em criaturas mitológicas que matam com o olhar, como as serpentes no cabelo da Medusa ou o Basilisco. 

Para as criaturas capazes de formar vínculos entre suas mentes, a ressonância límbica é a porta para esta conexão. Ela propicia a harmonia silenciosa que vemos a todo momento, mas que não percebemos explicitamente, como entre mãe e filho, entre uma criança e seu cachorrinho ou entre namorados de mãos dadas no restaurante. É tão integrada a nossas vidas que nem nos damos conta de sua ação. 

Emoções, ao contrário de ideias ou abstrações, são contagiosas justamente por sua natureza límbica. Se alguém tem uma ideia inspirada, ninguém ao redor irá percebê-la. Já a atividade límbica das pessoas ao nosso redor atrai nossas as emoções para uma convergência quase que instantaneamente. É por isso que assistir a filmes no cinema pode ser uma experiência eletrizante, enquanto assistir sozinho ao mesmo filme em casa não o será, por melhor que seja seu equipamento - é a multidão que faz com que a história libere sua mágica. Uma mesma e simultânea evocação límbica transforma indivíduos em uma massa coesa e síncrona, compartilhando os sustos ou a excitação nos cinemas, o fervor religioso no Hajj muçulmano, ou o ódio nas torcidas organizadas. 

E finalmente, voltando ao Sense8 

"A General Theory of Love" progride muito a partir da definição de ressonância límbica, levando a dois outros conceitos básicos para a teoria de possibilidades terapêuticas que apresenta: a regulação e a revisão límbica. Embora sejam extremamente ricos e interessantes, exigiriam um texto relativamente extenso para serem explicados decentemente e o tamanho deste aqui já extrapolou. Sendo assim, paro por aqui e voltarei a abordá-los em um post futuro. 

Voltando ao Sense8, o que se pode concluir é que as tais camadas de ficção e liberdades poéticas depositadas pelo Wachowski sobre o conceito de ressonância límbica são obviamente bem exageradas... Extrapolam muito, mas muito, os fundamentos da teoria e induzem a alguns erros básicos, como na afirmação de Nyx sobre a rede "conectar todos os seres vivos" (em vez de ser uma característica restrita aos mamíferos) ou na referência à molécula DMT (https://pt.wikipedia.org/wiki/Dimetiltriptamina), sobre a qual não há uma única menção na obra, mas que até faz algum sentido no contexto do envolvimento de Nyx com tráfico de drogas. De qualquer modo, devo-lhes um sincero agradecimento por terem me conduzido a um livro tão excepcionalmente interessante, polêmico e rico em insights quanto este.