sábado, 8 de outubro de 2016

O direito à "felicidade"

Estamos em um tempo de obsessão das pessoas por seus supostos "direitos". Por todos os lados, um desfile interminável de demandas por direitos - algumas justas e outras nem tanto. Como colocado por Luiz Felipe Pondé, vivemos no ocidente uma cultura de direitos e não de deveres: "O mundo contemporâneo pensa em termos de direitos. Esse mundo rico, capitalista, bem-sucedido, de gente jovem, saudável, narcisista, que tem poucos filhos e anda de bike. A psicologia dessa gente é: o mundo me deve. Eles operam a partir do que o outro deve prover e não do que eles devem prover." [PONDÉ, 2016] 

A combinação de um mundo de superexposição a mídia, marketing intensivo, onipresença de redes sociais, egoísmo endêmico e uma cultura de "direitos" parece uma receita para o desastre: uma geração em que todo mundo acredita que tem direito a um iPhone de última geração, um apartamento com varanda gourmet e uma família de comercial de margarina... mas com um emprego de Canal Off, é claro. Afinal, temos o direito à felicidade e quem consegue ser feliz com um emprego chato? 

Há um dialogo chave no filme Interestellar em que o protagonista (Cooper, interpretado por Matthew McConaughey), enfrentando os últimos dias de um mundo arrasado, desértico e assolado pela fome, escuta o seguinte de Donald (John Lithgow): "Quando eu era criança parecia que eles faziam uma coisa nova todos os dias. Algum gadget ou ideia. Como se todo dia fosse Natal. Mas seis bilhões de pessoas... tente imaginar. E cada uma delas tentando ter tudo.

Resume bem, não é? Somos uma geração de mimados. 

Em uma palestra excepcional sobre infidelidade para TED em março de 2015, a psicoterapeuta Esther Perel expõe ainda um outro lado desta realidade : 

"(...) Mas então nós temos que lidar com um outro paradoxo hoje em dia. Por causa deste ideal romântico, nós estamos confiando na fidelidade de nossos parceiros com um fervor único. Mas também nós nunca fomos tão inclinados a trair, e não porque hoje tenhamos novos desejos, mas porque vivemos em uma era em que sentimos que somos merecedores de perseguir nossos desejos, porque esta é a cultura onde eu mereço ser feliz. E se nós antigamente costumávamos nos divorciar porque éramos infelizes, hoje nós nos divorciamos porque podemos ser mais felizes. E se (antes) o divórcio vinha com vergonha, hoje escolher ficar, quando você pode partir, é a nova vergonha." [PEREL, 2015] 

Na educação o panorama também não é diferente: converse com um professor universitário e verá que nunca tivemos tantos alunos, mas tão pouco estudantes. Os adolescentes (sim, adolescentes, porque hoje as pessoas se comportam como adolescentes até pelo menos uns 30 anos), conseguem entrar em uma faculdade particular sem esforço e depois se espantam por precisarem se dedicar para conseguir o diploma. Fazem abaixo-assinados contra professores exigentes, esperneiam porque têm aulas à noite às sextas-feiras, reclamam dos trabalhos, largam o curso no meio e vão fazer reviews de games ou montar uma barraca de açaí em Maresias, porque afinal é o que "realmente gostam de fazer". Tudo bem se seus canais não derem certo no YouTube e os pais tiverem que sustentá-los pelo resto da vida. Afinal, merecem ser felizes. 

Olhe para qualquer lado e você verá inúmeros exemplos análogos: "suplementos" milagrosos em academias que vão lhe deixar com um corpo de celebridade do Instagram em poucas semanas; cursos de inglês que vão lhe deixar fluente em 6 meses; franquias que vão lhe deixar rico em 1 ano; aplicativos para encontrar o seu par ideal. Tudo para lhe dar o que você sempre mereceu, tudo fácil e rápido. 

Até mesmo uma proposta de emenda já foi apresentada em 2010 para incluir na constituição brasileira o "direito à busca da Felicidade por cada indivíduo e pela sociedade". E, no melhor estilo contemporâneo, "mediante a dotação pelo Estado e pela própria sociedade das adequadas condições de exercício deste direito": 




A proposta em questão foi arquivada em 2014. 

O risco é que esta obsessão moderna pela felicidade torne-se nossa ruína. Um grande mercado, certamente já se tornou. Como dito pelo filósofo Mark Rowlands [ROWLANDS, 2010]: 

"Desde aquela época,no final dos anos 1990 (...), a felicidade foi adquirindo um perfil mais elevado, nem tanto na filosofia, mas na cultura, de modo geral. Tornou-se até um grande negócio. (...) A crescente sofisticação (do conceito de felicidade) é assinalada pela expansão dos tipos de sentimentos que os seres humanos desejam classificar na categoria de felicidade. Mas trata-se de uma expansão construída sobre o modelo original. O que quer que seja a felicidade, é um sentimento de algum tipo. Isto é o que distingue os seres humanos: a busca perpétua e fútil por sentimentos. Nenhum outro animal faz isso. Somente os humanos acham que sentimentos são tão importantes.

Uma das consequências desta fixação obsessiva é que os humanos têm tendência a sofrer de neurose. Isto ocorre quando o foco se transfere da produção de sentimentos para o exame destes. Você está verdadeiramente feliz com sua vida atual? Seu parceiro entende suas necessidades de forma adequada? Você realmente se realiza ao criar seus filhos? Não há nada de errado, claro, em examinar a própria vida. A vida é tudo o que temos, e viver uma boa vida é a coisa mais importante que existe. Mas os humanos se caracterizam por uma interpretação errônea: pensamos que analisar nossa vida é a mesmíssima coisa que examinar nossos sentimentos. Quando examinamos nossos sentimentos e olhamos para dentro de nós, a conclusão a que chegamos é frequentemente negativa. Não nos sentimos do modo como gostaríamos, ou do modo como achamos que deveríamos. O que fazer, então? Bons viciados em felicidade que somos, partimos em busca de uma nova dose: um amante ou uma amante, um novo automóvel, uma nova casa, uma nova vida - qualquer coisa nova. Para o viciado, a felicidade é sempre trazida pelo novo e exótico, em vez do velho e familiar. Se tudo isso falhar - o que muitas vezes acontece - há um exército de profissionais muito bem remunerados, que ficarão felizes em nos dizer como poderemos arranjar nossa próxima dose. "


Referências e links:

[PONDÉ, 2016] - Pondé, Luiz Felipe – Filosofia para corajosos - Editora Planeta - 2a edição - 2016
[PEREL, 2015] - Perel, Esther - Rethinking infidelity... a talk for anyone who has ever loved - Palestra proferida durante o evento TED2015 - 2015
[ROWLANDS, 2010] - Rowlands, Mark - O filósofo e o lobo: lições sobre amor, morte e felicidade - Editora Objetiva - 2010


quarta-feira, 7 de setembro de 2016

O Sol é para todos

Lançado originalmente em 1960 e ganhador do Prêmio Pulitzer de literatura em 1961, "O Sol é para todos", de Harper Lee, contabiliza mais de 30 milhões de cópias vendidas e figura em diversas listas de melhores romances ao redor do mundo. Não que o número de cópias seja um atestado de qualidade (basta dizer que "Cinquenta Tons de Cinza vendeu 50 milhões"), mas o título de melhor romance do século XX pelo Library Journal é bem significativo. 




Contado em retrospectiva a partir dos olhos de Scout, uma menina de 10 anos de idade, narra o desenrolar de um processo de julgamento por estupro na pequena cidade de Maycomb, no Alabama, no início dos anos 1930. Órfãos por parte de mãe, Scout e seu irmão mais velho, Jem, têm sua vida profundamente impactada enquanto seu pai, o advogado Atticus Finch, prepara e conduz a defesa de um homem negro acusado de estuprar uma mulher branca em uma das regiões mais racistas dos Estados Unidos. 

É um livro extraordinário: escrito em linguagem simples e cativante, mas humano e denso. Deu origem a um filme homônimo em 1962, com Gregory Peck no papel de Atticus Finch, vencedor de 3 Oscars. Segundo uma lista feita por bibliotecários em 2006, o livro que todos deveriam ler antes de morrer. 

Um dos pontos curiosos sobre o livro é o fato da autora (falecida em 2016), não ter publicado nenhum outro até 2015, quando foi descoberto "Vá, coloque um vigia", escondido em uma caixa. É uma sequencia para "O Sol é para todos" e gerou uma certa polêmica quando lançado, por mostrar um lado mais escuro de Atticus. Não li ainda, mas pretendo em breve. 

Apenas como um bônus, para quem já leu o livro, um mapa da cidade de Maycomb pode ser conseguido em https://fitzgeraldenglish.wikispaces.com/Map+of+Maycomb,+Alabama.



sábado, 9 de julho de 2016

O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação

Depois da boa experiência com 1Q84 fiquei interessado em ler mais alguma coisa de Haruki Murakami e peguei "O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação", que, salvo engano, é a sua obra mais recente (Alfaguara, 2014). 


Conta a história de Tsukuru, um engenheiro na casa dos 30 anos especializado em projetos de estações ferroviárias e que leva uma vida bastante solitária, sentindo ainda os reflexos de sua exclusão sumária de um grupo de amigos muito próximos, ocorrida abruptamente mais de 10 anos antes. O relacionamento intenso com este grupo de amigos teve um papel central na juventude de Tsukuru e dos demais, mas nenhum de seus 4 ex-colegas jamais lhe deu nenhuma explicação com relação à sua "eliminação" - simplesmente cortaram relações de forma seca e inesperada, o que o levou à depressão e a um quase suicídio. 

Muito tempo depois da ruptura, ao iniciar um relacionamento com uma mulher um pouco mais velha, é incentivado por ela a buscar estes antigos amigos e esclarecer o ocorrido, sendo este o ponto de partida da peregrinação do título. 

Para quem gostou de 1Q84, vários de seus elementos estão por lá: acontecimentos inexplicáveis, personagens que entram e saem de cena misteriosamente, uma pitada de realismo fantástico e as estranhas coincidências entre tempestades e eventos-chave do enredo. No mais, é uma boa história sobre amizade, perda, solidão e redenção. Vale a pena tanto para os fãs de Hurakami como para quem nunca leu nada dele e quer uma primeira experiência mais curta do que os três volumes de 1Q84, ainda meu favorito.

sábado, 9 de abril de 2016

Genes, memes e Richard Dawkins

Em 1976 o biólogo inglês Richard Dawkins publicou um livro extraordinário sobre biologia evolutiva chamado The Selfish Gene (ou O Gene Egoísta). Escrito para atingir um público variado, usa uma linguagem bastante simples e bem pouca matemática para apresentar e explicar uma nova forma de se entender a teoria da evolução de Darwin, mas mantendo o formalismo científico necessário e de uma forma bastante profunda. 

Em linhas gerais, critica a noção de evolução centrada nas espécies e desce para o nível dos genes, apresentando uma visão em que os indivíduos (animais, vegetais ou nós mesmos), seríamos apenas veículos surgidos por meio de mecanismos evolutivos e que mostrou eficiente e necessário para a perpetuação de genes. 



O conceito é relativamente simples, mas leva as cerca de 270 páginas do livro para ser demonstrado de forma extremamente elegante por Dawkins, de modo que não tenho a pretensão de fazer um resumo detalhado aqui. Além disso, o livro é bom demais para não ser lido por inteiro. 

O que eu gostaria de compartilhar é apenas um detalhe curioso, que chama a atenção por servir de exemplo, ainda que secundário, do grau de influência da obra de Dawkins. Trata-se do nascimento do termo meme, que acontece especificamente no capítulo 11 de The Selfish Gene. 

Para Dawkins, o momento do início da evolução ocorre com a formação, na sopa primordial, da primeira molécula a possuir uma propriedade muito especial: a capacidade de se replicar, de fazer cópias de si mesma. Esta capacidade única fez com que a molécula se espalhasse rapidamente pela sopa primordial, com a consequência fundamental de dar o primeiro passo no sentido do estabelecimento de uma ordem em um ambiente até então caótico. Entretanto, cópias nem sempre são perfeitas e eventuais erros na replicação eram praticamente inevitáveis. Em última instância, longe de ser apenas um problema (embora o seja na maioria dos casos), foram justamente a ocorrência destas falhas que tornaram o mecanismo de evolução possível. Explica-se: sempre que um erro resultava em uma molécula resultante mais apta que as demais a sobreviver e se reproduzir em um determinado ambiente, esta molécula tendia a se propagar mais rapidamente. Um erro que ocasionasse acidentalmente um pequeno aumento de longevidade, por exemplo, significaria que mais cópias poderiam ser feitas por cada molécula, representando uma enorme vantagem sobre as moléculas rivais. 

O termo "rivais", é claro, não deve ser interpretado no sentido de que as moléculas estariam competindo de forma consciente umas contra as outras, mas o fato é que qualquer falha no processo de cópia que resultasse em um aumento da estabilidade de uma determinada linha evolutiva ou que reduzisse a estabilidade de uma outra seria automaticamente preservado e multiplicado, contribuindo para um processo de aprimoramento acumulativo. Sendo assim, métodos ou mecanismos que emergissem e contribuíssem para aumento da estabilidade do próprio replicador, ou para a redução da estabilidade dos demais foram gradualmente se acumulando e aprimorando, tornando-se mais e mais elaborados e eficientes. Alguns deles podem inclusive ter resultado, por exemplo, em maneiras para quebrar as moléculas rivais e assim usar os componentes liberados, obtendo nutrição de forma mais eficiente e ao mesmo tempo removendo rivais do ambiente, de maneira análoga aos carnívoros atuais. Já outros replicadores teriam chegado em formas de se proteger quimicamente ou de forma física, através da construção de barreiras de proteína a seu redor, método pelo qual podem ter sido formadas as primeiras células. 

Enfim, os replicadores começaram não somente a existir, mas a construir recipientes para si mesmos, veículos que possibilitassem sua existência continuada. Os que sobreviveram foram os que construíram máquinas de sobrevivência em que pudessem perseverar, originalmente compostas por nada mais do que uma carapaça protetora. Mas sobreviver também foi se tornando incrementalmente mais difícil conforme rivais apareciam com soluções melhores e mais eficientes, de modo que as máquinas de sobrevivência foram ficando mais complexas e maiores, de forma progressiva e cumulativa, chegando finalmente às inúmeras formas de vida atuais. 

Com esse mínimo de conceitos sobre replicadores e a teoria apresentada no livro, já podemos nos voltar então à questão dos memes. 

Para Dawkins, boa parte do que torna a espécie humana única pode ser resumido em uma única palavra: "cultura". O termo é usado aqui em um sentido abrangente, incorporando desde linguagem a tradições culturais e tecnológicas. A capacidade altamente desenvolvida de transmissão cultural entre os seres humanos teria consequências análogas à da transmissão genética, no sentido em que pôde dar origem a uma forma particular mas incrivelmente eficiente de evolução, progressiva e cumulativa, nos mais variados campos como comunicação, hábitos alimentares, arte, arquitetura, ciências e tecnologia. 

Assim como em termos biológicos o gene foi a entidade replicadora que prevaleceu em nosso planeta, Dawkins considera que uma categoria de replicadores totalmente nova tenha emergido recentemente, bem diante de nosso olhos, atingindo uma velocidade evolutiva extraordinária na nova versão da sopa primordial, a cultura humana: 

"Precisamos de um nome para o novo replicador, um nome que carregue a ideia de uma unidade de transmissão cultural, ou uma unidade de imitação. "Mimeme" contém uma raiz grega adequada, mas quero um termo que soe um pouco como "gene". Espero que meus amigos classicistas me perdoem se eu abreviar mimeme para meme. (...) 

Exemplos de memes são trechos de músicas, ideias, frases clichê, estilos de roupas, uma maneira de se fazer potes ou de se construir arcos. Assim como os genes se propagam no pool genético saltando de um corpo para outro através de óvulos e espermatozoides, os memes se propagam do mesmo modo no pool de memes, saltando de um cérebro a outro através de um processo que pode ser chamado, de maneira geral, de imitação. Se um cientista ouve ou lê sobre uma boa ideia, ele a passa adiante a seus colegas e alunos. Ele a menciona em seus artigos e palestras. Se a ideia "pega", pode-se dizer que ela se propaga sozinha, espalhando-se de cérebro em cérebro. (...)" 

É muito curioso testemunhar o nascimento de um neologismo de uma maneira tão explícita e intencional quanto essa. Mais interessante ainda é o fato do capítulo 11 de The Selfish Gene ser totalmente dedicado a este conceito. Parece um pouco deslocado no contexto geral do livro, mas entendo que tenha sido incluído como uma maneira de demonstrar a aplicabilidade do conceito desenvolvido por Dawkins a outros domínios além da biologia. 

É nítida a influência do conceito de meme como definido por Dawkins em uma grande quantidade de outras obras, tanto técnicas como literárias. O exemplo mais óbvio que me vem à mente é o ótimo Snow Crash de Neal Stephenson (Penguin Books, 1992), em que um vírus de computadores começa a atacar o mundo virtual ao mesmo tempo em que sua contraparte, na forma de um meta-virus neurolinguístico começa a se espalhar no mundo físico por meio das pregações e doutrinas em uma rede de igrejas pentecostais. Um texto mais técnico, mas que faz uso extenso do conceito, é o livro A memória na Mídia - a evolução dos memes de afeto, de Mônica Rebecca Ferrari Nunes (Annablume Editora, 2001). 

O próprio Dawkins, ao escrever suas anotações sobre o capítulo 11 na edição comemorativa de 2006 de The Selfish Gene, se mostra surpreso com a ampla aceitação do termo: 

"A palavra meme parece estar se mostrando um bom meme. É hoje bastante usada e em 1988 entrou na lista oficial de palavras sendo consideradas para edições futuras dos Oxford English Dictonaries." 

Esclarece também seus objetivos ao introduzir o assunto no texto original: 

"Os primeiros 10 capítulos de The Selfish Gene tinham se concentrado exclusivamente em um tipo de replicador, o gene. Ao discutir os memes no capítulo final eu estava tentando defender a tese de replicadores em geral e mostrar como os genes não são os únicos membros desta importante classe. (...) O capítulo 11 terá sido bem-sucedido se o leitor fechar o livro com a sensação de que as moléculas de DNA não são as únicas entidades que podem formar a base para uma evolução darwiniana." 

As implicações dos conceitos desenvolvidos ao longo do livro são tão vastas e interessantes, mas também com um potencial tão grande para deturpações e interpretações distorcidas, que Dawkins insiste muitas vezes no cuidado que se deve ter para não se conferir características de consciência ou intenção aos replicadores, sejam eles genes ou memes, sob pena de se derivar para uma metafísica descabida (semelhante à presente em Snow Crash), mas que emerge quase que naturalmente na mente do leitor conforme ele vai apresentando os conceitos e construindo sua tese. Felizmente, a racionalidade fria de Dawkins está sempre presente, puxando o leitor de volta para o chão. 

Como já coloquei, trata-se de um livro extraordinário. Já foi muito elogiado e muito criticado e, independente de qual possa ser a sua posição com relação ao ativismo pró-ateísta e pró-secularista de Richard Dawkins, é inegável que permanece extremamente relevante, mesmo depois de 40 anos de sua primeira edição. Merece ser lido.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Submissão

Submissão, de Michel Houellebecq (Alfaguara, 2015), é uma distopia que me soou estranhamente familiar. Familiar tanto por suas referências a nomes, figuras políticas, partidos e locais reais, como também pela estranha coincidência de datas: estava lendo Submissão exatamente na mesma semana de novembro de 2015 em que a França sofreu os ataques dos terroristas do Estado Islâmico. Além disso, os mesmos atores políticos presentes no livro também estavam na mídia em função das eleições na França, como Marine Le Pen e Jean-François Copé.


Contada através da ótica de um professor universitário de literatura (François) em Paris, no ano de 2022, a trama gira em torno de um processo eleitoral em que a briga entre os partidos tradicionais de esquerda e direito acaba levando à vitória de uma Fraternidade Muçulmana e à possibilidade de implantação da Sharia na França. 

O livro é muito interessante, muito bom e verossímil. Mostra o processo crescendo e se acelerando progressivamente, bem à vista dos perplexos membros da elite francesa, em um paralelo muito curioso com o que se vê no verídico "No Jardim das Feras", sobre a ascensão do nazismo na Alemanha e que comentei em julho de 2014Na verdade, o foco na "revolução silenciosa" é um dos pontos que mais chamam a atenção no texto e é reforçado explicitamente em trechos como o abaixo: 

"Talvez seja impossível, para pessoas que viveram e prosperaram em determinado sistema social, imaginar o ponto de vista dos que, nunca tendo nada a esperar deste sistema, encaram sua destruição sem nenhum terror especial." 

Ou em: 

"(...) estava cada vez mais marcado pelo pensamento de Toynbee, por sua ideia de que as civilizações não morrem assassinadas, mas se suicidam." 

Houellebecq talvez exagere um pouco na descrição da vida amorosa de François, que não agrega praticamente nada ao enredo, mas mesmo assim é uma obra imperdível.