sábado, 9 de abril de 2016

Genes, memes e Richard Dawkins

Em 1976 o biólogo inglês Richard Dawkins publicou um livro extraordinário sobre biologia evolutiva chamado The Selfish Gene (ou O Gene Egoísta). Escrito para atingir um público variado, usa uma linguagem bastante simples e bem pouca matemática para apresentar e explicar uma nova forma de se entender a teoria da evolução de Darwin, mas mantendo o formalismo científico necessário e de uma forma bastante profunda. 

Em linhas gerais, critica a noção de evolução centrada nas espécies e desce para o nível dos genes, apresentando uma visão em que os indivíduos (animais, vegetais ou nós mesmos), seríamos apenas veículos surgidos por meio de mecanismos evolutivos e que mostrou eficiente e necessário para a perpetuação de genes. 



O conceito é relativamente simples, mas leva as cerca de 270 páginas do livro para ser demonstrado de forma extremamente elegante por Dawkins, de modo que não tenho a pretensão de fazer um resumo detalhado aqui. Além disso, o livro é bom demais para não ser lido por inteiro. 

O que eu gostaria de compartilhar é apenas um detalhe curioso, que chama a atenção por servir de exemplo, ainda que secundário, do grau de influência da obra de Dawkins. Trata-se do nascimento do termo meme, que acontece especificamente no capítulo 11 de The Selfish Gene. 

Para Dawkins, o momento do início da evolução ocorre com a formação, na sopa primordial, da primeira molécula a possuir uma propriedade muito especial: a capacidade de se replicar, de fazer cópias de si mesma. Esta capacidade única fez com que a molécula se espalhasse rapidamente pela sopa primordial, com a consequência fundamental de dar o primeiro passo no sentido do estabelecimento de uma ordem em um ambiente até então caótico. Entretanto, cópias nem sempre são perfeitas e eventuais erros na replicação eram praticamente inevitáveis. Em última instância, longe de ser apenas um problema (embora o seja na maioria dos casos), foram justamente a ocorrência destas falhas que tornaram o mecanismo de evolução possível. Explica-se: sempre que um erro resultava em uma molécula resultante mais apta que as demais a sobreviver e se reproduzir em um determinado ambiente, esta molécula tendia a se propagar mais rapidamente. Um erro que ocasionasse acidentalmente um pequeno aumento de longevidade, por exemplo, significaria que mais cópias poderiam ser feitas por cada molécula, representando uma enorme vantagem sobre as moléculas rivais. 

O termo "rivais", é claro, não deve ser interpretado no sentido de que as moléculas estariam competindo de forma consciente umas contra as outras, mas o fato é que qualquer falha no processo de cópia que resultasse em um aumento da estabilidade de uma determinada linha evolutiva ou que reduzisse a estabilidade de uma outra seria automaticamente preservado e multiplicado, contribuindo para um processo de aprimoramento acumulativo. Sendo assim, métodos ou mecanismos que emergissem e contribuíssem para aumento da estabilidade do próprio replicador, ou para a redução da estabilidade dos demais foram gradualmente se acumulando e aprimorando, tornando-se mais e mais elaborados e eficientes. Alguns deles podem inclusive ter resultado, por exemplo, em maneiras para quebrar as moléculas rivais e assim usar os componentes liberados, obtendo nutrição de forma mais eficiente e ao mesmo tempo removendo rivais do ambiente, de maneira análoga aos carnívoros atuais. Já outros replicadores teriam chegado em formas de se proteger quimicamente ou de forma física, através da construção de barreiras de proteína a seu redor, método pelo qual podem ter sido formadas as primeiras células. 

Enfim, os replicadores começaram não somente a existir, mas a construir recipientes para si mesmos, veículos que possibilitassem sua existência continuada. Os que sobreviveram foram os que construíram máquinas de sobrevivência em que pudessem perseverar, originalmente compostas por nada mais do que uma carapaça protetora. Mas sobreviver também foi se tornando incrementalmente mais difícil conforme rivais apareciam com soluções melhores e mais eficientes, de modo que as máquinas de sobrevivência foram ficando mais complexas e maiores, de forma progressiva e cumulativa, chegando finalmente às inúmeras formas de vida atuais. 

Com esse mínimo de conceitos sobre replicadores e a teoria apresentada no livro, já podemos nos voltar então à questão dos memes. 

Para Dawkins, boa parte do que torna a espécie humana única pode ser resumido em uma única palavra: "cultura". O termo é usado aqui em um sentido abrangente, incorporando desde linguagem a tradições culturais e tecnológicas. A capacidade altamente desenvolvida de transmissão cultural entre os seres humanos teria consequências análogas à da transmissão genética, no sentido em que pôde dar origem a uma forma particular mas incrivelmente eficiente de evolução, progressiva e cumulativa, nos mais variados campos como comunicação, hábitos alimentares, arte, arquitetura, ciências e tecnologia. 

Assim como em termos biológicos o gene foi a entidade replicadora que prevaleceu em nosso planeta, Dawkins considera que uma categoria de replicadores totalmente nova tenha emergido recentemente, bem diante de nosso olhos, atingindo uma velocidade evolutiva extraordinária na nova versão da sopa primordial, a cultura humana: 

"Precisamos de um nome para o novo replicador, um nome que carregue a ideia de uma unidade de transmissão cultural, ou uma unidade de imitação. "Mimeme" contém uma raiz grega adequada, mas quero um termo que soe um pouco como "gene". Espero que meus amigos classicistas me perdoem se eu abreviar mimeme para meme. (...) 

Exemplos de memes são trechos de músicas, ideias, frases clichê, estilos de roupas, uma maneira de se fazer potes ou de se construir arcos. Assim como os genes se propagam no pool genético saltando de um corpo para outro através de óvulos e espermatozoides, os memes se propagam do mesmo modo no pool de memes, saltando de um cérebro a outro através de um processo que pode ser chamado, de maneira geral, de imitação. Se um cientista ouve ou lê sobre uma boa ideia, ele a passa adiante a seus colegas e alunos. Ele a menciona em seus artigos e palestras. Se a ideia "pega", pode-se dizer que ela se propaga sozinha, espalhando-se de cérebro em cérebro. (...)" 

É muito curioso testemunhar o nascimento de um neologismo de uma maneira tão explícita e intencional quanto essa. Mais interessante ainda é o fato do capítulo 11 de The Selfish Gene ser totalmente dedicado a este conceito. Parece um pouco deslocado no contexto geral do livro, mas entendo que tenha sido incluído como uma maneira de demonstrar a aplicabilidade do conceito desenvolvido por Dawkins a outros domínios além da biologia. 

É nítida a influência do conceito de meme como definido por Dawkins em uma grande quantidade de outras obras, tanto técnicas como literárias. O exemplo mais óbvio que me vem à mente é o ótimo Snow Crash de Neal Stephenson (Penguin Books, 1992), em que um vírus de computadores começa a atacar o mundo virtual ao mesmo tempo em que sua contraparte, na forma de um meta-virus neurolinguístico começa a se espalhar no mundo físico por meio das pregações e doutrinas em uma rede de igrejas pentecostais. Um texto mais técnico, mas que faz uso extenso do conceito, é o livro A memória na Mídia - a evolução dos memes de afeto, de Mônica Rebecca Ferrari Nunes (Annablume Editora, 2001). 

O próprio Dawkins, ao escrever suas anotações sobre o capítulo 11 na edição comemorativa de 2006 de The Selfish Gene, se mostra surpreso com a ampla aceitação do termo: 

"A palavra meme parece estar se mostrando um bom meme. É hoje bastante usada e em 1988 entrou na lista oficial de palavras sendo consideradas para edições futuras dos Oxford English Dictonaries." 

Esclarece também seus objetivos ao introduzir o assunto no texto original: 

"Os primeiros 10 capítulos de The Selfish Gene tinham se concentrado exclusivamente em um tipo de replicador, o gene. Ao discutir os memes no capítulo final eu estava tentando defender a tese de replicadores em geral e mostrar como os genes não são os únicos membros desta importante classe. (...) O capítulo 11 terá sido bem-sucedido se o leitor fechar o livro com a sensação de que as moléculas de DNA não são as únicas entidades que podem formar a base para uma evolução darwiniana." 

As implicações dos conceitos desenvolvidos ao longo do livro são tão vastas e interessantes, mas também com um potencial tão grande para deturpações e interpretações distorcidas, que Dawkins insiste muitas vezes no cuidado que se deve ter para não se conferir características de consciência ou intenção aos replicadores, sejam eles genes ou memes, sob pena de se derivar para uma metafísica descabida (semelhante à presente em Snow Crash), mas que emerge quase que naturalmente na mente do leitor conforme ele vai apresentando os conceitos e construindo sua tese. Felizmente, a racionalidade fria de Dawkins está sempre presente, puxando o leitor de volta para o chão. 

Como já coloquei, trata-se de um livro extraordinário. Já foi muito elogiado e muito criticado e, independente de qual possa ser a sua posição com relação ao ativismo pró-ateísta e pró-secularista de Richard Dawkins, é inegável que permanece extremamente relevante, mesmo depois de 40 anos de sua primeira edição. Merece ser lido.

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