terça-feira, 17 de julho de 2018

Civilização - Ocidente x Oriente

Se você vivesse no século XV e tivesse oportunidade de viajar o mundo, ficaria impressionado com o nível de desenvolvimento e a qualidade de vida das civilizações orientais, como a China e o Império Otomano. Já a Europa Ocidental lhe pareceria um lugar sujo miserável, lutando para recuperar-se da devastação da Peste Negra e enfrentando uma sucessão interminável de conflitos entre reinos vizinhos. Você certamente chamaria de maluco qualquer um que lhe dissesse que o Ocidente dominaria o mundo pela maior parte dos 500 anos seguintes. Mas, como sabemos, foi exatamente isso que aconteceu. 

Em “Civilização - Ocidente x Oriente” (Editora Crítica - 2017), Niall Ferguson busca identificar as razões pelas quais os pequenos e atrasados estados da Europa Ocidental conseguiram produzir uma civilização capaz de subjugar os impérios orientais, conquistar os demais continentes e ainda converter os povos de todo o mundo a seu modo de vida. E não, o demonizado “imperialismo ocidental” não está entre elas. 



Houve muitos impérios ao longo da história da humanidade, muito antes dos construídos pelas nações europeias – impérios eram praticamente a regra no mundo até o século XIX. No século XVI, enquanto os portugueses chegavam ao Brasil, o Império Otomano se estendia da atual Áustria à Argélia, de forma praticamente contínua: 



Ao mesmo tempo, a China prosperava atrás da sua Grande Muralha: 



Para os grandes impérios orientais os navegantes portugueses e holandeses que chegavam às suas praias pareciam o exato oposto de “portadores de civilização” – eram apenas mais alguns bárbaros a aparecer por lá. 

O que então seriam as razões para o que Ferguson denomina de “Grande Divergência” entre os rumos do desenvolvimento das civilizações ocidental e oriental a partir do século XVI e que levou à dominância europeia? Fazendo uma analogia com termos de informática, ele identifica no livro seis “apps” inovadores desenvolvidos pelos europeus e cujo poder combinado foi fundamental para seu sucesso como civilização: 

1- A competição (a concorrência como motor de inovação tanto na economia quanto na política) 

2- A ciência (o conceito e o método para se interpretar e transformar o mundo natural de forma eficiente, que deu, por exemplo uma vantagem militar fundamental aos europeus) 

3- Os direitos de propriedade (lei como proteção aos proprietários privados e ferramenta de solução de conflitos e base estável para um governo representativo) 

4- A medicina (aumento da expectativa de vido e melhoria extremamente significativa nas condições de saúde, inclusive nas colônias) 

5- A sociedade de consumo (modo de vida material como forma de criação de uma demanda infinitamente elástica por produtos, possibilitando as bases para a Revolução Industrial) 

6- A ética do trabalho (como um sistema moral capaz de fornecer coesão à estrutura social resultante dos outros 5 fatores) 

Todos os 6 são dissecados em profundidade ao longo de “Civilização”, juntamente com alguns fatores adicionais, que, apesar de não terem sido consequência direta de ações do Ocidente, também contribuíram de forma fundamental para seu triunfo, como a crise interna e o subsequente colapso da Dinastia Ming, por exemplo. 

Olhando-se estes seis “apps” como uma mera lista de tópicos, tem-se a sensação de que Ferguson faz uma analogia rasa e simplista, mas não é o caso. Do mesmo modo que, ao usar um app no seu celular, tudo lhe pareça muito simples (mesmo que o aplicativo demande uma tecnologia extremamente complexa por trás), ao mesmo tempo em que as seis ideias e instituições relacionadas por Ferguson pareçam simples e óbvias, demandam um código social e histórico extremamente complexo para funcionar. Um código que boa parte das nações (incluindo o Brasil) ainda hoje não dominam totalmente. 

Mas e daqui para frente? 

Em sua conferência proferida pelo programa “Fronteiras do Pensamento” em novembro de 2017, Ferguson analisou também os rumos futuros desta civilização: estaríamos chegando ao fim deste ciclo e começando a sentir os efeitos de uma “Re-convergência”, com a exaustão da hegemonia ocidental? 

É evidente que algumas nações orientais já absorveram e colocaram em prática os tais “apps” relacionados acima (Japão e a Coréia do Sul são apenas os exemplos mais óbvios). Outras, como a China, abraçaram a maioria com entusiasmo, mas ainda encontram dificuldades imensas com os itens 1 e 3, por exemplo. Entretanto, os maiores riscos à hegemonia ocidental não vêm, segundo Ferguson, de fora. Eles se encontram em fenômenos internos bastante recentes, característicos dos países ocidentais nesse início de século: 

1- A quebra do contrato entre as gerações – de um lado os baby-boomers, uma geração que conseguiu acumular mais riqueza que as anteriores e agora se aposenta também mais protegida do que as anteriores. Do outro, os millenials: atolados em dívidas, mal-remunerados, vendo recessão, crises fiscais e déficits previdenciários explodirem pelo mundo, cujas contas terão que pagar. 

2- O excesso de regulação às atividades econômicas – a quantidade de normas e restrições impostas a empresas e negócios no ocidente, comparada com as enfrentadas por seus pares nos países orientais. 

3- The rule of LAW x The rule of LAWYERS – apesar de ser uma tradução difícil para o português, o significado é intuitivamente simples: a indústria de ações e litígios que prolifera nas nações ocidentais, engordando um batalhão de advogados que fazem com que a lei deixe de ser uma ferramenta de proteção ao indivíduo e passe a ser simplesmente um negócio lucrativo; deixe de ser simples e objetiva para ser propositalmente complexa e interpretativa. Caso ainda não esteja claro, passe pela porta de qualquer sindicato na sua cidade com uma carteira de trabalho na mão e veja o que acontece. 

4- A decadência da sociedade civil – a queda brutal na participação em associações voluntárias como entidades de caridade ou ambientais, sindicatos, associações de arte, igrejas e associações esportivas. Ou seja, o desmonte da sociedade civil organizada e a transferência progressiva de responsabilidades para os órgãos governamentais. 

5- O foco excessivamente concentrado nos “pecados” da civilização ocidental, especialmente nos meios acadêmicos, em contraposição à valorização de seus aspectos positivos. Ou seja, a supervalorização, por exemplo, das chamadas “dívidas históricas”, tão propaladas nas nações latino-americanas e a rejeição a priori de que o imperialismo ocidental possa ter trazido qualquer benefício às colônias. 

6- O efeito nocivo de polarização causado diretamente pelas redes sociais – o modelo de negócio de redes como Facebook em que o valor está na captura da atenção e cliques dos usuários representa um incentivo monetário concreto para que estas redes foquem progressivamente na exibição de conteúdo alinhado com o perfil e ideologia do usuário, o que realimenta continuamente suas convicções em vez de lhe oferecer contrapontos e resulta rapidamente na formação de clusters de iguais, cada vez mais desconectados de opiniões divergentes e menos capazes de avaliar de forma crítica e serena cenários políticos, sociais e econômicos. As consequências no mundo físico desta polarização apenas agora começam, após eventos como a eleição de Trump, o Brexit e o escândalo com a Cambridge Analytica, a ser estudadas a sério (*). 

A questão da “Re-convergência” é explorada por Ferguson no seu último livro, “The Square and the Tower”, lançado em outubro de 2017 nos EUA e até o momento sem tradução para o português. 



Se estes fatores identificados por ele serão realmente capazes de reverter o domínio ocidental e elevar um novo modelo à posição de dominância global ainda é cedo para dizer, mas uma coisa é certa: pelo menos os chineses já têm absoluta convicção de que estes últimos séculos foram apenas um acidente de percurso e de que agora a hora deles chegou. 

(*) OBS – para um exemplo interessante de modelo de análise de formação de clusters em redes sociais, ver o artigo “Role of social environment and social clustering in spread of opinions in coevolving networks” disponível em
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4108632/