sábado, 3 de dezembro de 2011

Morte em Veneza

Não me lembro de onde veio a recomendação de ler Thomas Mann, mas dia desses comprei "Morte em Veneza", que acabo de ler. É um livro curto, quase um conto, sobre um escritor (Gustav Aschenbach), já de alguma idade, que vai passar um período de férias em Veneza e se apaixona por um adolescente polonês de 14 anos, extraordinariamente bonito.

É. Não é um livro de mistério policial, como o título e a capa me induziram a acreditar. Mas também não é um livro sobre um caso de amor entre um coroa pedófilo e um menino. Basta dizer que os dois não trocam uma só palavra ao longo do livro todo.

O foco principal é a paixão de Aschenbach pelo "Belo", no sentido platônico da palavra (veja http://paginaemblanco.blogspot.com/2010/12/on-love.html). Para ele, o garoto (Tadzio), é a representação da perfeição, da beleza ideal, e seu amor uma manifestação cristalina do Eros, que vai crescendo lentamente e acaba por se tornar uma obsessão, transformando pouco a pouco o respeitável e sério escritor em uma figura patética, um "jovem postiço", como o que ele próprio vê e despreza no início de sua viagem, ainda no barco que rumava a Veneza.

O livro é uma aula de escrita, desde os elementos sutis de mau presságio que aparecem logo no início da viagem, até o paralelo que vai sendo construído entre a rápida decadência de Aschebach com a de uma Veneza assombrada por uma crescente epidemia de cólera, que as autoridades tentam esconder dos turistas. É rápido, de leitura fácil e muito bom, com referências à mitologia e influências da filosofia gregas permeando todo o texto.

Sobre a abordagem do Eros e a análise com base na filosofia platônica, há um artigo curto, mas bem detalhado, disponível em:
 http://www.apario.com.br/index/boletim38/Junggermanisten3-Oerotismo.pdf. Entretanto, há um componente que não é levantado no artigo, mas que acho interessante introduzir, que é a forma pela qual Aschenbach racionaliza a sua situação, da qual se envergonha. A abordagem que usa é a de tirar de si parte do enorme peso do sentimento de responsabilidade pelo seu estado, atribuindo a sua fraqueza à possessão do Eros:


"(...) Uma vida de autodomínio e obstinação, uma vida áspera, perseverante e comedida, que ele transformara em símbolo de um heroísmo delicado e apropriado à época - poderia bem chamá-la viril, corajosa, e queria parecer-lhe que o Eros que se apoderara dele era de algum modo especialmente conforme e propenso a uma vida assim. Não merecera ele destaque entre os povos mais corajosos, não se dizia que fora graças à bravura que ele florescera em suas cidades? Inúmeros heróis da Antiguidade aceitaram voluntariamente seu jugo, pois nenhuma humilhação era considerada como tal, quando imposta pelo deus, e atos que seriam reprovados como sinal de covardia se praticados com qualquer outra finalidade (...) não constituíam vergonha para o amante; ao contrário, ainda lhe valiam louvores."

Essa forma de pensamento foge da nossa concepção atual, kantiana e relativamente recente de que o ser humano é o seu melhor quando é assume a total responsabilidade por todas as suas ações. Ao contrário, sua abordagem, de transferir a responsabilidade da sua condição ao desígnio dos deuses, é análoga à usada frequentemente por Homero na Ilíada e na Odisseia, o que explica e confirma esta referência aos "heróis da Antiguidade" e reforça influência grega no texto.

Sobre esse aspecto da relação entre Homero e a noção de responsabilidade, recomendo a ótima entrevista do professor Sean Kelly, do Departamento de Filosofia da Universidade de Harvard ao programa Philosophy Bites, disponível em:
 http://philosophybites.com/2011/11/sean-kelly-on-homer-on-philosophy.html.