sábado, 2 de maio de 2020

O Novo Iluminismo

Várias das minhas opiniões mudaram bastante com o passar do tempo, mas poucas mudaram de forma tão radical quanto o meu conceito sobre Bill Gates. Tive lá a minha fase de adolescente anti-Microsoft e já critiquei bastante o seu fundador por suas práticas monopolistas na época da "guerra dos browsers", mas o meu conceito começou a mudar com os anos e, especialmente depois da fundação Bill e Melinda Gates, hoje eu sou um fã. Como fã, portanto, quando encontro um livro que ele recomenda como sendo “Meu novo livro favorito de todos os tempos.”, tenho que conferir. 

“O novo Iluminismo – Em defesa da razão, da ciência e do humanismo” de Steven Pinker (Companhia das Letras, 2018) é exatamente o que o título indica: uma obra focada em fazer a defesa dos três pilares fundamentais do Iluminismo: a razão, a ciência e o humanismo, em um momento em que imaginaríamos não precisarem mais de defesa. Apesar de denso, com quase 700 páginas recheadas de excelentes referências bibliográficas, é surpreendentemente simples, direto e agradável de se ler. Logo nas primeiras páginas fica claro que Gates não estava exagerando quando fez seu comentário. 



O último livro que abordei neste blog tratava de uma visão pessimista quanto aos rumos da humanidade ("A Nova Idade das Trevas"). Este é o extremo oposto. Nas palavras do próprio Pinker: ...essa avaliação desoladora do mundo é errada. E não apenas errada: erradíssima, espetacularmente errada, mais errada impossível.” e ele defende sua causa com uma clareza e um volume de dados impressionante distribuídos ao longo de 3 partes. 

A 1ª parte trata da revisão do que consideramos em linhas gerais como o movimento do Iluminismo, bem como seu momento histórico e conceitos fundamentais. A 2ª parte foca em contestar, com dados objetivos, visões pessimistas ou catastrofistas do mundo contemporâneo em aspectos como riqueza, desigualdade, meio ambiente, saúde e segurança. A 3ª parte se concentra, finalmente, na defesa dos ideais iluministas. Iniciando com a 1ª parte, vamos assumir a definição de Iluminismo como apresentada atualmente pela Wikipedia: 

“O iluminismo, também conhecido como século das luzes e ilustração, foi um movimento intelectual e filosófico que dominou o mundo das ideias na Europa durante o século XVIII, "O Século da Filosofia". O Iluminismo incluiu uma série de ideias centradas na razão como a principal fonte de autoridade e legitimidade e defendia ideais como liberdade, progresso, tolerância, fraternidade, governo constitucional e separação Igreja-Estado. Na França, as doutrinas centrais dos filósofos do Iluminismo eram a liberdade individual e a tolerância religiosa em oposição a uma monarquia absoluta e aos dogmas fixos da Igreja Católica Romana. O Iluminismo foi marcado por uma ênfase no método científico e no reducionismo, juntamente com o crescente questionamento da ortodoxia religiosa - uma atitude capturada pela frase Sapere aude (em português: "Atreva-se a conhecer").”

Para ter-se uma dimensão do que representou a Revolução Científica ocorrida neste período, tome-se a descrição do que o historiador David Wootton faz do que um inglês instruído “sabia” com toda segurança do mundo em 1.600, às vésperas da revolução industrial: 

“Ele acredita que bruxas podem invocar tempestades para afundar navios no mar. [...] Acredita em lobisomens, ainda que por acaso essas criaturas não existam na Inglaterra – sabe que existem na Bélgica. [...] Acredita que camundongos surgem por geração espontânea em montes de palha. Acredita em magos contemporâneos. [...] Ele já viu um chifre de unicórnio, mas não um unicórnio. Ele acredita que o corpo de uma pessoa assassinada sangrará na presença do assassino. Acredita na existência de um unguento que, se for aplicado na adaga que causou um ferimento, curará o ferimento. [...] Acredita ser possível transformar metal sem valor em ouro [...] Acredita, obviamente, que a Terra é imóvel e que o Sol e as estrelas fazem um giro em torno dela a cada 24 horas.” 

Apenas um século mais tarde, um descendente instruído deste inglês já não acreditaria em mais nada disso. 

Além da razão e da ciência, o humanismo também tem um papel central no Iluminismo. Deixando para trás séculos de Cruzadas, Inquisição, guerras e caça às bruxas, os pensadores iluministas condenaram crueldades como escravidão, despotismo, punições sádicas e execuções por crimes triviais, colocando fim a práticas hoje consideradas bárbaras, mas extremamente comuns ao longo de milênios em diversas civilizações diferentes. Decorre ainda da fé na ciência e no humanismo o ideal iluminista de progresso, tanto em termos de evolução das leis e costumes, quanto da evolução científica. Todos aspectos que atuam em conjunto, levando a uma melhoria contínua do bem-estar das pessoas e uma gradual transformação do mundo em um lugar melhor.

Infelizmente, como um típico ser humano do início do século XXI e mais do que habituado a ler barbaridades nas time-lines das redes sociais, você já deve ter se acostumado com a ideia de que mesmo as coisas mais obviamente benéficas (como vacinas) ou mesmo os conceitos mais obviamente evidentes (como a Terra ser redonda), precisam de defesa. O mesmo vale para o Iluminismo. Pinker passa um capítulo na primeira parte apresentando um assustador elenco de movimentos contrailuministas religiosos, nacionalistas, filosóficos e intelectuais que são bem explorados ao longo do livro, sempre com referências a trabalhos recentes e muito interessantes. Como exemplos destas referências, posso citar alguns livros relativamente novos que abordei aqui nos últimos meses e que analisam movimentos bem recentes como a emergência da polarização e sua relação com o fenômeno da formação de tribos morais (“Moral Tribes”, de Joshua Greene) ou os problemas da crescente rejeição à livre exposição de ideias em universidades (“The Coddling of the American Mind”, de Lukianoff e Haidt). 

Como já dito, a 2ª parte do livro trata da refutação, com dados, de pontos de vista saudosistas, pessimistas ou decadentistas sobre o estado atual da humanidade. É a parte mais extensa do texto e também a que inclui o maior volume de informações interessantes e surpreendentes, que demonstram de forma incontestável a brutal evolução da condição humana no último século em aspectos como desigualdade, expectativa de vida, saúde, meio ambiente, segurança, paz, democracia, terrorismo, conhecimento, igualdade de direitos e felicidade. Não vou me ater a cada um destes aspectos, mas gostaria de chamar a atenção para apenas dois pontos realçados por Pinker e que servem como exemplos do tipo de insight que são encontrados no livro sobre os temas do meio ambiente e da desigualdade. 

Em “Moral Tribes”, que citei acima, Joshua Greene detalha como a polarização entre esquerda e direita nos EUA (assim como no Brasil), fez com que o tema do aquecimento global tenha passado a ser associado a uma bandeira de esquerda: 

“Em 1998, pesquisas indicavam que eleitores Republicanos e Democratas apresentavam probabilidades praticamente iguais de concordar com o argumento de que a mudança climática estava realmente ocorrendo. De lá para cá, ao mesmo tempo em que as evidências científicas sobre o tema apenas aumentaram, surgiu uma curiosa divergência entre eleitores Republicanos e Democratas com relação ao assunto, a ponto de em 2010 um Democrata ter passado a ter uma probabilidade duas vezes maior de afirmar acreditar na mudança climática do que um Republicano. Isso não ocorreu por questões técnicas ou por um eventual menor acesso às informações científicas por parte dos Republicanos, mas simplesmente pelo fato do assunto ter tomado contornos políticos que levaram os dois partidos a se posicionar em campos opostos, forçando um grande número de eleitores Republicanos a ter de optar (até de forma inconsciente) entre aceitar racionalmente as opiniões dos especialistas no assunto ou simplesmente recusá-las e se comportar, então, como um bom e confiável membro de sua “tribo” política.” 

A abordagem de Pinker, entretanto, vai mais além: ele questiona se o fato do democrata Al Gore ter abraçado a causa do aquecimento global no documentário “Uma Verdade Inconveniente” em 2006 não teria sido uma dos fatores principais do recrudescimento desta polarização e, assim, causado um dano irreparável à causa. Questiona ainda a racionalidade de bandeiras muito tradicionais de ambientalistas contrários a alimentos transgênicos e energia nuclear e o prejuízo que estas posições radicais causam ao meio ambiente ao influenciar a opinião pública contra as opções comprovadamente mais eficientes de geração de energia e produção de alimentos. 

Pinker encara de frente também a questão da desigualdade e a incensada obra de Thomas Piketty, “O Capital no Século XXI”. Ele dedica um capítulo inteiro ao tema e a demonstrar que a desigualdade humana não pode ser usada como um contraexemplo para o progresso humano. Argumenta também que não estamos vivendo, ao contrário do que alega Piketty e as esquerdas ao redor do globo, uma distopia de rendas declinantes que teria revertido séculos de aumento da prosperidade. Defende que a tendência de longo prazo desde o Iluminismo é, na verdade, o aumento de riqueza para todos e, desmonta com surpreendente elegância o livro de Piketty em apenas um parágrafo. (Não, não vou reproduzir aqui, mas lhe desafio a encontrar). 

Finalmente, a 3ª parte é dedicada especificamente aos ideais da razão, ciência e humanismo, cabendo um capítulo para cada um. Como no restante do livro, os argumentos são claros, convincentes e, acima de tudo, necessários. 

Já estávamos vivendo uma época de polarização, escalada de autoritarismo e tendência ao desmonte de conquistas que considerávamos mais do que consolidadas. Com a pandemia de COVID-19, estes movimentos parecem ter se acentuado. Neste cenário, a obra de Pinker é um testemunho muito oportuno de fé na humanidade e no progresso e um necessário sopro de otimismo em um momento de profunda crise global. O comentário de Gates sobre o livro não é, de forma alguma, descabido. 

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PS – Por uma dessas coincidências malucas do mundo, no momento em que escrevo isso, às 18:30 do dia 02 de maio de 2020, Warren Buffett está fazendo ao vivo a sua apresentação na reunião de acionistas da Berkshire Hathaway e estou ouvindo ao fundo. A mensagem que está passando agora: apesar de tudo, não há época melhor para se estar vivo do que agora em termos de bem-estar, direitos, segurança, paz, etc.. Impressionante a clareza de raciocínio e a energia deste senhor de 89 anos. Bom, estando com Gates e Buffett, Pinker está muito bem acompanhado...