segunda-feira, 21 de setembro de 2020

The Righteous Mind – Why Good People are Divided by Politics and Religion

Ainda em 2012, o doutor em psicologia Jonathan Haidt publicou um livro extraordinário buscando responder à pergunta que hoje todos nós nos fazemos diariamente ao navegar pelas timelines de nossas redes sociais: Por que tanta gente inteligente e bem intencionada pode ter posições tão diferentes sobre temas fundamentais como política? E, principalmente, por que essas pessoas desenvolvem com tanta facilidade a plena convicção de que os de posição diferente da sua são completos idiotas?

“The Righteous Mind – Why Good People are Divided by Politics and Religion” (Vintage, 2013), tem um título particularmente difícil de traduzir. A edição brasileira recebeu o título de “A Mente Moralista”, embora eu considere que “Righteous” tenha um sentido um pouco mais forte do que “Moralista”. Segundo o dicionário de Cambridge, por exemplo, se refere a “pessoas que se comportam de uma forma moralmente correta”, mas acho que a intenção de Haidt no título era dar uma abordagem mais próxima de “self-righteous”... ou “pessoas que acreditam que suas ideias e comportamentos são moralmente superiores ao de outras pessoas”. Para quem leu Pollyanna, um bom exemplo seria a tia solteirona de Pollyanna. Ela é “self-righteous” até os ossos. Imagine-a vivendo hoje no Brasil com uma conta de Whatsapp na mão...



O livro é dividido em três partes, cada uma associada a uma metáfora diferente desenvolvida para resumir um conceito fundamental.

PARTE I - “Intuições vêm primeiro, raciocínio vem depois”

A primeira parte é “Intuições vêm primeiro, raciocínio vem depois”. Ela compara a mente humana a um elefante enorme com um “condutor” (um cavaleiro) em cima dele, mas cujo trabalho é servir ao elefante e não vice-versa. Nessa metáfora, o elefante representa nosso pensamento intuitivo, enquanto o condutor representa o pensamento racional. Esta dualidade  é bastante similar à defendida por Daniel Kahneman em “Rápido e Devagar”, mas a abordagem é um pouco diferente. Para Haidt, é nítido que o chefe é o elefante (emoção / intuição) e que o condutor (razão) existe para servi-lo.

“Portanto, se você quer mudar a opinião de alguém com relação a um tema moral ou político, fale primeiro com o elefante. Se você pedir às pessoas para acreditar em algo que viola as suas intuições, elas irão dedicar todos os seus esforços a encontrar uma saída – uma razão para duvidar de seus argumentos ou conclusões. E vão conseguir quase sempre.”

Especialmente quando as discussões se tornam hostis, o elefante começa a se inclinar para longe do oponente e o condutor (seu servo) vai trabalhar freneticamente para encontrar dados e motivos “racionais” para refutar todos os argumentos que receber. Inclusive no Google.

Um dos insights mais importantes apresentados nesta parte é justamente neste sentido e é bem pouco intuitivo: apesar de gostarmos de nos ver como criatura racionais, nossa consciência opera em grande medida com o objetivo descarado de persuadir em vez de analisar. A conclusão deprimente de cientistas cognitivos que pesquisaram o raciocínio humano ao longo de anos é que ele se desenvolveu como uma ferramenta para nos ajudar a argumentar, persuadir e manipular outras pessoas e não para nos ajudar a “descobrir a verdade”. Esta conclusão se aplica inclusive no nosso auto convencimento, ou seja, o condutor trabalha muito também para justificar e nos convencer da validade e moralidade de nossas próprias ações, preservando nossa autoimagem de boas pessoas mesmo quando temos atitudes bastante questionáveis. É por isso que o chamado “viés de confirmação” é tão poderoso e difícil de combater.

Nosso pensamento moral é muito mais como um político caçando votos do que um cientista buscando a verdade.”

Ter esse conceito em mente é fundamental para se ter uma conversa minimamente produtiva com alguém cujo elefante está apontado para um lado oposto ao seu: argumentos puramente racionais não falam ao elefante – ele responde à emoção, não à razão. Enquanto o elefante do outro não estiver sensibilizado e disposto a se inclinar pelo menos um pouco para o seu lado, não adianta nem tentar argumentar com o condutor.   

Especialmente quando se trata de temas morais ou políticos a situação se agrava um pouco mais. Nestes temas temos também uma tendência a um comportamento mais grupal do que individualista – nós aplicamos nossas habilidades de raciocínio para apoiar a posição de nosso time e para demonstrar nosso compromisso com ele, de modo que a chance de se convencer alguém em uma discussão pública na internet a mudar de ideia com relação a um ponto importante na estrutura moral de seu grupo político é completamente impossível. Desista. (especificamente sobre esse comportamento tribal, pode ser interessante conhecer também os argumentos de Joshua Greene em “Moral Tribes

PARTE II - “Há mais na moralidade do que apenas cuidado e justiça”

Nesta parte são apresentadas seis diferentes dimensões ou fundamentos do pensamento moral e a metáfora usada é a de que a mente moralista é como uma língua capaz de sentir seis tipos diferentes de gostos ou sabores.

Inicialmente, Haidt cuida de introduzir o leitor à noção de que a ética ocidental a que estamos habituados é algo bastante particular e não uma verdade universal, como somos inclinados a pensar. Para isso, nos apresenta as três principais abordagens éticas (baseadas na teoria do antropologista Richard Shweder), que permeiam o mundo contemporâneo com diferenças fundamentais que não são facilmente percebidas pelas pessoas, mas que norteiam boa parte do comportamento das comunidades que adotam cada uma delas:

- Ética da autonomia – é à qual estamos mais habituados, ou seja, a ideia de que as pessoas são, acima de tudo, indivíduos autônomos que devem ser livres para satisfazer seus desejos e preferências. Deste modo, estas sociedades desenvolvem valores como direitos, liberdades e justiça, que possibilitam às pessoas coexistir pacificamente sem interferir nas vidas uns dos outros. É a ética dominante nas sociedades individualistas e nos textos utilitaristas de John Stuart Mill e Peter Singer, por exemplo;

- Ética da comunidade – é baseada no princípio de que as pessoas são, acima de tudo, membros de entidades maiores, como famílias, times, empresas, tribos, exércitos e nações. Estas entidades são mais do que a soma de seus membros; são reais, importam e precisam ser protegidas. As pessoas têm obrigação de atuar conforme os papéis que lhe cabem nestas estruturas e, portanto, os conceitos que emergem são os de dever, hierarquia, patriotismo, respeito e reputação. Nestas sociedades (como nas orientais), o individualismo ocidental é visto como egoísta e perigoso – uma forma de enfraquecer a trama da sociedade e destruir as instituições das quais todos dependem;

- Ética da divindade – baseada na ideia de que as pessoas são, acima de tudo, “recipientes” em que uma alma divina habita temporariamente. Pessoas não são apenas animais com uma dose extra de consciência, mas sim filhos e filhas de Deus e que, portanto, devem agir de acordo. O corpo é um templo, não um playground e mesmo que uma ação ou comportamento privado individual qualquer não cause nenhum dano a terceiros, ele pode ser interpretado e condenado como imoral ou proibido se visto como ofensivo ao Criador ou à ordem sagrada do universo. É a moral dominante em boa parte do mundo muçulmano, por exemplo.

A moral dominante nas sociedades dos ocidentais países ricos, democráticos e industrializados, costuma ser limitada à ética da autonomia, mas ela pode ser bem mais ampla e incluir frequentemente as éticas da comunidade e da divindade nas matrizes éticas de diversos subgrupos religiosos ou conservadores e este é um ponto fundamental para se começar a compreender as diferenças radicais entre as visões de mundo dos liberais e dos conservadores.

Haidt usa frequentemente a expressão “morality binds and blinds” (a moralidade une e cega) para lembrar que matrizes éticas reforçam de forma muito significativa a coesão dos grupos que as adotam, mas ao mesmo tempo tornam seus membros praticamente cegos para a coerência ou a mera existência de outras matrizes. Esse fenômeno torna muito difícil para uma pessoa que tenha assimilado os valores de um determinado grupo de forma muito radical sequer considerar a possibilidade de que possa existir mais de uma verdade moral válida, parâmetros diferentes dos seus para se avaliar a conduta das outras pessoas ou mesmo mais de uma forma legítima para se organizar e conduzir uma sociedade.

Após a introdução das três éticas é a apresentada a Teoria dos Fundamentos Morais e são apresentados cinco diferentes “sabores” que a mente moralista consegue discernir, descritos como cinco diferentes fundamentos morais inatos e comuns a todos os seres humanos, adaptações que foram sendo lentamente incorporadas a nossos cérebros como respostas automáticas a uma série de ameaças e oportunidades inerentes à vida em sociedade e que disparam reações intuitivas e possivelmente algumas emoções específicas, como simpatia ou raiva:

- Fundamento do Cuidado / Dano – evoluiu em resposta ao desafio evolutivo do cuidado para com crianças vulneráveis. Ele nos torna sensíveis a sinais de sofrimento e necessidade e nos faz rejeitar a crueldade e nos importar com os que sofrem;

- Fundamento da Justiça / Trapaça – evoluiu em resposta ao desafio evolutivo de se extrair os benefícios da cooperação sem se deixar explorar. Faz com que nos tornemos sensíveis a indícios de que outras pessoas sejam potenciais bons parceiros para colaboração e altruísmo recíproco. Faz com que desejemos punir trapaceiros e exploradores e pode estar intrinsicamente ligado a um desejo por proporcionalidade (de que as pessoas recebam o que mereçam na intensidade adequada);

- Fundamento da Lealdade / Traição – evoluiu em resposta ao desafio evolutivo de formação e manutenção de alianças. Faz com que sejamos sensíveis a sinais de que uma pessoa é um bom e confiável membro do time e nos leva a confiar e recompensar tais pessoas na mesma medida em que nos leva a punir e renegar os que nos traem ou traem o grupo;

- Fundamento da Autoridade / Subversão – resposta ao desafio da formação de relacionamentos benéficos dentro de uma estrutura hierárquica. Faz com que sejamos sensíveis a sinais de posição e de status, bem como a indícios de que as outras pessoas estão (ou não) se comportando de acordo com suas respectivas posições;

- Fundamento da Santidade (Pureza) / Degradação – evoluiu inicialmente como resposta ao “dilema do onívoro” (o que um bicho que come de tudo pode comer e o que deve evitar) e posteriormente ao desafio de se viver em um mundo repleto de patógenos e parasitas. Trata-se de uma forma de “imunidade comportamental” que nos leva a ter receio e evitar uma variedade de ameaças reais ou simbólicas. Faz com que as pessoas atribuam arbitrariamente valores extremamente positivos ou negativos a determinados objetos e comportamentos que acabam servindo como mecanismos auxiliares para se manter os grupos unidos.

Olhando-se para os dois extremos do espectro político, pode-se perceber que os partidários da esquerda têm suas doutrinas focadas principalmente nos fundamentos do Cuidado e da Justiça, com pouca ou nenhuma ênfase nos demais. Os partidários de direita, por sua vez, operam com um foco mais abrangente, com doutrinas que abraçam os 5 fundamentos e incorporam uma ênfase significativamente grande em Autoridade, Lealdade e Santidade. Assista a um discurso de um candidato de direita e conte quantas vezes são mencionados temas como patriotismo, forças armadas e religião, por exemplo.


Aqui pode-se abrir parênteses e comentar-se um pouco sobre uma vantagem significativa que os conservadores levam quando falam ao público em geral. Considerando-se que os 6 fundamentos morais são inatos aos seres humanos e que estes podem dar maior ou menor importância a cada um deles, independente de sua formação ou posição social, é natural que um grupo político que aborde um número maior de fundamentos em sua doutrina e sua comunicação encontre ressonância do seu discurso em um número maior de pessoas do que um grupo que se restrinja a dois ou três fundamentos. Ou seja, se uma pessoa tem uma predisposição natural a priorizar os fundamentos da Autoridade e da Lealdade, mesmo que seja de uma camada desfavorecida da sociedade, não vai responder de forma positiva ao discurso centrado nos fundamentos de Cuidado e Justiça de um partido de esquerda, para a grande surpresa e indignação de boa parte dos liberais que são praticamente cegos aos demais fundamentos morais. Moralidade une e cega.

Posteriormente, Haidt acrescenta um sexto fundamento como forma de complemento à sua Teoria dos Fundamentos Morais original:

- Fundamento da Liberdade / Opressão – faz com que as pessoas percebam e se ressintam de qualquer sinal de uma tentativa de dominação. Dispara um sentimento de desejo de união para resistir e derrotar opressores e tiranos. Este fundamento suporta tanto a noção de equidade e de “anti-autoritarismo” na esquerda quanto o sentimentos “anti-opressão” e de “defesa da liberdade” na direita.

PARTE III - “Moralidade une e cega”

Em linhas gerais, é focada na demonstração do conceito de que a natureza humana é majoritariamente egoísta e individualista, mas com uma camada grupal que resulta do fato de que a seleção natural opera em diferentes níveis simultaneamente e que resulta em comportamentos surpreendentes e a princípio incoerentes com o interesse do indivíduo.

Indivíduos competem contra outros indivíduos e esta competição recompensa o individualismo, mas ao mesmo tempo, os grupos humanos competem contra outros grupos permanentemente e esta competição favorece os grupos compostos por verdadeiros “team players” – aqueles cujos integrantes estão dispostos a cooperar e trabalhar pelo bem do grupo mesmo em detrimento de seus interesses pessoais imediatos. Estes dois processos evolutivos complementares empurraram a natureza humana em direções diferentes e nos deram a estranha mistura de egoísmo e altruísmo que conhecemos hoje. A metáfora central desta terceira parte é: “nós somos 90% chimpanzés e 10% abelhas”.

O lado “chimpanzé” da metáfora refere-se ao fato de nossas mentes terem sido moldadas pela competição incansável de cada indivíduo com seu vizinho. Nós somos descendentes de uma longa linhagem de vencedores no jogo da vida social. Entretanto, a natureza humana incorporou mais recentemente uma nova camada, um comportamento grupal extremamente importante – apesar de majoritariamente chimpanzés, somos também um pouco como abelhas, no sentido de sermos criaturas ultra-sociais com mentes moldadas pela incansável competição entre grupos. Nós descendemos de antepassados cujo comportamento grupal os ajudou a cooperar e vencer outros grupos. Isso não significa que nossos ancestrais fossem “team players” incondicionais, apenas que eram adequadamente seletivos: quando as condições necessárias se apresentavam, eles podiam entrar em um estado mental de “um por todos e todos por um” em que passavam a trabalhar abnegadamente por um objetivo comum, aumentando de forma coletiva as chances de prevalência de seu grupo.

Este sentimento de ativação do “modo colmeia” em um grupo se manifesta ainda hoje na paixão ou êxtase que a participação em rituais grupais como esportes, raves, danças ou rituais religiosos podem ocasionar. É o tipo de efervescência coletiva ou “ressonância límbica” que foi tão bem descrita no livro “A General Theory of Love”, que já comentei aqui anteriormente.

A combinação de nossos comportamentos individualistas e grupais pode ser resumido no conceito de Homo Duplex: vivemos a maior parte de nossas vidas no mundo ordinário (profano), mas alcançamos nossas maiores alegrias naqueles breves momentos em que transcendemos a níveis mais elevados (coletivos) da existência. Somos projetados (por seleção natural) para nos locomover entre ambos os níveis de existência.  

Voltando ao tema da Teoria dos Fundamentos Morais, uma ideia curiosa defendida no livro é a de que as pessoas não adotam suas ideologias políticas aleatoriamente. Aqueles a quem os genes deram cérebros com maior afinidade a novidades, variedade e diversidade e uma menor sensibilidade a sinais de ameaça seriam predispostos (mas não predestinados) a se tornarem liberais e a reagir às narrativas dos movimentos de esquerda. Aqueles cujos genes conferiram cérebros com afinidades opostas seriam predispostos a se alinhar com as narrativas da direita.

Entretanto, a partir do momento que a pessoa adota qualquer um dos lados políticos ela é rapidamente incorporada à sua respectiva matriz moral. O condutor de seu elefante passa a encontrar confirmação da narrativa de seu grupo em todo lugar e é extremamente difícil convencê-la de que está errada se você tentar argumentar estando do lado de fora de sua matriz.

Dado o diferente enfoque que a esquerda e a direita dão aos seis fundamentos morais, pode-se deduzir que deve ser mais difícil para liberais (que em geral não se consideram relevantes os fundamentos de Autoridade, Santidade e Lealdade) entender os conservadores do que vice-versa. Em particular, liberais têm dificuldade em visualizar e compreender o conceito de “capital moral”, ou seja, o valor intrínseco de alguns recursos que sustentam uma comunidade moral, como valores, virtudes, normas, práticas, tradições, costumes, identidades e instituições, o que faz com que seja difícil para seu discurso ser assimilado por um público que aprecie estes valores na mesma medida em que os faz ter dificuldade em entender este público.

Em suma, a abordagem de Haidt é de que liberais e conservadores, esquerda e direita são como yin e yang – ambos elementos necessários para a vida política saudável de uma nação, como colocado por John Stuart Mill. Liberais são especialistas no fundamento do Cuidado – eles enxergam melhor as vítimas dos arranjos sociais e nos forçam a atualizar continuamente esses arranjos. Por outro lado, conservadores oferecem um contraponto fundamental aos movimentos de reforma liberal, em especial no que tange à liberdade dos mercados e à proteção de estruturas e valores que são caros a boa parte da sociedade.

Enfim, moralidade une e cega. Ela nos une a times ideologicamente coesos que lutam entre si como se o destino do planeta estivesse em jogo em cada batalha. Ela nos cega com relação ao fato de que ambos os times são compostos por boas pessoas que podem ter algo importante a dizer. Ter esse conceito em mente pode ajudar cada um de nós a compreender melhor o outro lado, ou pelo menos a evitar entrar em discussões absolutamente inúteis no Facebook.

 

PS – na data em que escrevo este resumo, Jonathan Haidt pode ser visto em uma participação rápida no documentário “The Social Dilemma”, que acaba de ser lançado na Netflix 

PS 2 – Haidt também será o convidado na segunda conferência do Fronteiras do Pensamento, programada para o próximo dia 30 de setembro

PS 3 – Para uma obra mais recente dele, você pode acessar o link para o meu texto sobre “The Coddling of the American Mind”. É outro livro com um título incrivelmente difícil de traduzir, mas excelente...