sábado, 10 de abril de 2021

Hello, Brasil! e outros ensaios

Faleceu em 30 de março o psicanalista, ensaísta e escritor italiano Contardo Calligaris, autor de “Hello, Brasil! e outros ensaios – Psicanálise da estranha civilização brasileira” (Editora Três Estrelas, 2017), uma excepcional análise da sociedade brasileira feita a partir de sua condição de imigrante europeu do final dos anos 80. É um livro pequeno, mas repleto de insights muito interessantes sobre diversas peculiaridades do povo brasileiro que são ao mesmo tempo estranhas aos olhos de quem nos visita e invisíveis a nós mesmos, de tão enraizadas que estão em nosso comportamento. 



O livro não chega a ser extraordinariamente complexo, mas alguns dos ensaios requerem um certo esforço e não são simples de se resumir em alguns parágrafos, o que vou deliberadamente evitar fazer aqui. Os temas englobam colonização, os paralelos entre os processos colonizatórios nas Américas do Sul e do Norte, os desejos de emigração, criminalidade, corrupção, consumo, aniversários e filhos entre outros. Vou me limitar a reproduzir alguns pequenos trechos, como exemplo do que se pode esperar encontrar nas análises de Calligaris: 

Sobre a autoimagem do país: “Este país não presta”. É uma frase corriqueira (...). Causa-me estranheza ainda a facilidade com que, mesmo em situações que não são extremas, é enunciado – como prova e demonstração – um projeto de emigração: aqui não presta, vamos embora para um lugar que preste. (...) A frase pareceria natural se fosse dita por um estrangeiro, mas, como enunciação dos próprios brasileiros, ela surpreende.” 

Sobre a relação com as crianças: “O Brasil me aparece como o paraíso das crianças. (...) De um hotel cinco estrelas é exigido que haja uma sala de jogos eletrônicos para as crianças e que se prevejam atividades infantis. Assusta-me a insistência com que se defende a necessidade de “lúdico” na aprendizagem (...). Em algumas das melhores escolas privadas, decorar as lições é considerado um ato de tortura impingido às crianças. Assombra-me a importância que assume a programação das crianças na vida cotidiana (...). O adulto brasileiro parece constantemente preocupado com o prazer das crianças. Para ser breve: no Brasil, a criança é rei”. 

Sobre contracepção: “A primeira vez que uma paciente brasileira me falou da decisão, tomada de comum acordo pelo casal, de seu marido sofrer uma vasectomia, pensei que estava lidando com alguma patologia do laço conjugal. Aos poucos, como se sucedessem as vasectomias projetadas e feitas de fato, eu me daria conta de que tal cirurgia era uma prática culturalmente comum. Não sem que eu estranhasse.” 

Sobre a obsessão em “tirar a cidadania” de outros países: “O apelo ao pai antigo encontra sua expressão mais simples nas filas diante dos consulados para pedir nacionalidade e passaporte aos países da origem da linhagem que emigrou. É uma corrida de obstáculos burocráticos e um investimento considerável de tempo e dinheiro (...). Quase todos dizem que fazem isso para os filhos, de maneira que possam viajar mais facilmente, estudar “lá fora”, conseguir trabalho e sobretudo viver em segurança. O efeito mais provável é um enfraquecimento suplementar da identidade nacional dos filhos, os quais cresceriam com a sensação de que o que os pais querem para eles é que tenham uma chance de ir embora...” 

“Em 2005, produziu certo alvoroço a notícia de que a primeira-dama brasileira, Marisa Letícia, obtivera a cidadania italiana (...). Acrescentou, porém que tinha feito os trâmites por insistência dos filhos, para “dar uma oportunidade” aos meninos. Era no mínimo curioso: os filhos do presidente do Brasil confirmavam que a “oportunidade” para eles estava na Itália, não aqui”. 

E por aí vai. É uma obra sincera, sem meias-palavras, que chama à reflexão e abre os olhos para alguns vícios e vieses importantes de nosso comportamento como sociedade. Merece ser lido com atenção. 

OBS.: Contardo Calligaris participou da edição de 2019 do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, que versou sobre o tema “Os Sentidos da Vida”. O resumo de sua conferência e um vídeo curto podem ser acessados no link: