domingo, 22 de novembro de 2015

Plato at the Googleplex

O filósofo inglês Alfred North Whitehead uma vez escreveu que “A generalização mais segura sobre a filosofia ocidental é de que ela não passa de uma série de notas de rodapé à obra de Platão”. Esse tipo de afirmação, especialmente vinda de um filósofo, funciona bastante bem como munição para os muitos que não veem qualquer utilidade prática na filosofia. Afinal, se séculos e séculos de discussões não nos trouxeram mais perto de responder às questões fundamentais formuladas por um cidadão ateniense que viveu há mais de 2.400 anos, qual sua serventia? 

Certamente, afirmam os críticos, a filosofia e seus questionamentos tiveram sua contribuição na origem das ciências. Entretanto, à medida que o conhecimento científico avança e especulações filosóficas vão gradualmente sendo confirmadas ou desmontadas por dados, formulações e constatações científicas sólidas, ela estaria progressivamente perdendo sua utilidade, fadada à irrelevância. 

A defesa da filosofia e a demonstração da relevância e atualidade dos temas por ela tratados são os objetivos do livro “Plato at the Googlepex” (Platão no Googleplex), de Rebecca Newberger Goldstein (Vintage Books, 2015). A forma de tratar o assunto escolhida por Goldstein é bem peculiar: trazer Platão para os dias de hoje e envolvê-lo em diálogos do mesmo estilo dos que escrevia, mas com interlocutores atuais. Em um capítulo, Platão discute o que é uma vida que valha a pena ser vivida com um engenheiro da Google e uma media escort; em outro, debate sobre a melhor forma de se criar crianças com uma tiger mom e uma psicóloga bicho-grilo; num terceiro atua como consultor para uma conselheira sentimental de revista feminina; participa de um programa de entrevistas em uma emissora da extrema direita americana; e por aí vai. 



Todas as posições defendidas pelo Platão de Goldstein são embasadas em referências aos seus textos originais e cada diálogo é precedido por um capítulo em que a autora apresenta as bases filosóficas e históricas para estas posições, o que confere mais profundidade ao texto e ajuda o leitor a acompanhar com mais facilidade estas discussões. 

Interessante ver como as questões levantadas por Platão 2.400 anos atrás permanecem pertinentes e atuais. Há menos de 15 dias, por exemplo, ataques terroristas a Paris chocaram boa parte do mundo e causaram, entre outras, discussões sobre a relação entre religião e moralidade, um dos assuntos de que Platão já tratava em Euthyphro (bem antes de Spinoza e Bertrand Russell) e que Goldstein apresenta da seguinte forma (em uma tradução livre): 

“Platão começa o questionamento de forma bem inocente, com Sócrates perguntando a Euthyphro: ‘O que é santo, é santo porque os deuses aprovam, ou eles aprovam porque é santo?’ (IOa). Platão usa a pergunta para separar os conceitos de ações ‘ordenadas pela divindade’ de ações providas de valor moral. O argumento é formulado em termos de ‘dos deuses’, mas é, sem prejuízo à sua força, suscetível à substituição de ‘deuses’ por ‘Deus’. Em suma, o argumento de Platão é o seguinte: Se Deus aprova uma ação, ou Ele o faz arbitrariamente, sem qualquer razão, de modo que é apenas a Sua aprovação que confere valor moral a esta ação; ou existe uma razão para Sua aprovação, de forma que não se trata simplesmente um capricho de Sua parte, havendo uma razão para que Ele aprove tal ação, esta razão sendo o valor moral intrínseco daquilo que Ele aprova. Se a primeira hipótese é a resposta, como este capricho arbitrário pode conferir valor moral à ação? Como algo pode ser bom simplesmente porque alguém lá em cima deseja chamá-lo de bom, na medida em que, se Ele por acaso estivesse com uma disposição diferente na ocasião, poderia da mesma forma considerar a ação exatamente oposta como boa? Por outro lado, se a segunda hipótese é a correta, então existe uma razão efetiva para a atitude normativa divina, sendo esta razão a razão tanto para a aprovação divina quanto para o valor moral daquilo que Ele aprova. Isto faz com que a aprovação divina, normativamente falando, seja redundante – ela é, como se diz hoje, um selo de aprovação. Em nenhum dos dois casos – seja a aprovação arbitrária ou não – esta aprovação sobrenatural faz qualquer diferença sobre a ação ser genuinamente certa ou errada. 

Esta questão, o ‘Dilema de Euthyphro’ ou ‘Argumento de Euthyphro’, permanece um dos argumentos mais utilizados contra a alegação de que a moralidade pode ser apenas fundada sobre teologia, de que é apenas a crença em Deus que se interpõe entre nós e o abismo moral do niilismo. Dostoiévski pode ter declarado que ‘sem Deus tudo é permissível’, mas a resposta de Platão, transmitida ao longo de milênios, é que qualquer ato moralmente inadmissível com Deus é também moralmente inadmissível sem Ele, deixando claro quão pouco a adição de Deus na equação ajuda a clarificar a questão ética” 

Este é apenas um entre todos os tópicos abordados no livro e é, na verdade, um dos tratados mais superficialmente. Todos são atuais e relevantes e a exposição na forma de diálogos ajuda muito no conhecimento também dos argumentos contrários às posições platônicas, além de demonstrar algo muito valioso nos dias atuais: o quanto a exposição e avaliação de diferentes pontos de vista sobre um mesmo tema enriquece a discussão e o quanto é perigoso e empobrecedor nos cercarmos apenas de pessoas que validam nossas opiniões, seja no mundo físico, seja nas “redes sociais”. Ou, como colocado pelo Platão de Goldstein: 

“McCOY: Então você espera realmente que eu acredite que você acha que amigos são aqueles que tentam refutá-lo? 

PLATÃO: Certamente, quando o que eu digo está errado; e eu não posso ter certeza de que não esteja errado a não ser que ouça as melhores contestações possíveis. E eu espero que eu seja um amigo bom o suficiente para devolver o favor.”

** Uma entrevista recente com a autora pode ser ouvida no ótimo podcast Philosophy Bites, através do link:  http://philosophybites.com/2014/11/rebecca-newberger-goldstein-on-progress-in-philosophy.html