sexta-feira, 21 de abril de 2023

A Era do Capitalismo de Vigilância – A Luta por um Futuro Humano na Nova Fronteira do Poder

Tenho uma amiga de escola que até hoje tem o costume de enviar SMS (!) para os amigos em aniversários, Natal e outras datas importantes. Não usa WhatsApp. Não tem, nem nunca teve nenhuma conta em redes sociais. Deve ter um endereço de e-mail, mas não tenho certeza. Ela vive de forma quase analógica e é provavelmente a única pessoa que conheço com mais de 7 anos de idade que consegue operar de forma off-line no mundo de hoje. Também é, provavelmente, uma das últimas pessoas imunes à mineração de seu comportamento pelas Big Tech, ou, como denominados por Shoshana Zuboff em sua obra mais famosa, pelos “Capitalistas de Vigilância”.

“A Era do Capitalismo de Vigilância” (Intrínseca, 2021) é um tapa na cara dividido em 3 partes, ao longo de 800 páginas e é, em síntese, um alerta sobre o modelo de negócio inédito adotado pelas grandes empresas de tecnologia (principalmente Facebook, Microsoft e Google) ao longo dos últimos 20 anos e as mudanças sociais profundas que este modelo está operando de forma incremental e sutil, quase imperceptível, mas cujo impacto tem potencial para ser tão significativo quanto os efeitos da revolução causada pelo advento do capitalismo industrial no final do século XIX.


A primeira parte é dedicada a detalhar como emergiu o modelo atual de receita destas empresas, que utiliza como matéria-prima o que Zuboff batizou de “superávit comportamental”. É mais um dos vários termos novos introduzidos no livro. Na verdade, muitos conceitos apresentados são novos e navegam por temas ainda muito pouco explorados, de modo que a sensação da leitura é muito parecida com a de ler-se o “Gene Egoísta” de Dawkins, por exemplo – traz a certeza de que temos nas mãos um texto que apenas começa a arranhar um tema, mas que está destinado a se tornar sua obra de referência.

Superávit comportamental refere-se a todos os dados colaterais ou subprodutos gerados por nossa atividade digital. Por exemplo, no caso de uma busca feita no Google, seriam dados como as palavras usadas, a forma como a busca é formulada, pontuação, localização, padrão de cliques ou tempo de visualização. Inicialmente eram dados coletados e armazenados a esmo sem um objetivo específico, mas que passaram a ser insumos para a construção de perfis detalhados dos usuários, valiosos do ponto de vista comercial e cuja mineração, em última instância, tornou-se a base do modelo de negócios das Big Tech.

“(...) com frequência as pessoas declaram que o usuário é o “produto”. Isso também é incorreto (...), os usuários não são produtos (...), são fontes de suprimento de matéria-prima.”

Zuboff correlaciona o momento da descoberta do valor do superávit comportamental com o estouro da bolha das ponto-com em 2000, quando a pressão do mercado por resultados no Vale do Silício impôs uma espécie de “estado de exceção” ao Google e lhe conferiu uma espécie de carta-branca moral para justificar o abandono de sua antipatia histórica por anúncios e sua posição contrária ao financiamento de mecanismos de busca por meio de publicidade (que implicaria em parcialidade), bem como legitimar perante equipe e mercado uma etapa de busca ativa de novas fontes de receita e de um diferencial competitivo que garantisse sua lucratividade e perpetuação.

Para tanto, a empresa recorreu no final de 2000 à até então minúscula equipe de 7 pessoas do AdWords e deu o primeiro passo na captura de valor do superávit comportamental através da vinculação dos anúncios não mais a simples palavras-chave, mas sim ao banco de dados individuais de cada usuário que somente o Google tinha à disposição. Essa abordagem única foi identificada como a melhor maneira de garantir relevância aos usuários e proporcionar um valor inédito aos seus verdadeiros clientes, os anunciantes.

A partir deste ponto chave na história das Big Tech, o livro prossegue detalhando o aumento da sofisticação e da profundidade dos mecanismos de coleta / mineração do superávit comportamental ao longo dos anos seguintes, bem como descrevendo o contexto histórico que possibilitou o florescimento e fortalecimento praticamente incontestado deste mecanismo até chegar ao próximo estágio da evolução do modelo, descrito na parte II do livro, que trata da migração do mesmo do ambiente on-line puro para o mundo real.

“(...) o superávit comportamental deve ser vasto, mas também variado. Esse esforço deve ser elaborado tendo em vista duas dimensões: a primeira, extensão das operações de extração do mundo virtual para o “real” (...). Os capitalistas de vigilância compreenderam que sua riqueza futura dependeria de novas rotas de suprimento (...). A extensão quer estar na sua corrente sanguínea e na sua cama, na sua conversa do café da manhã, no seu meio de transporte, na sua corrida, na sua geladeira, na sua vaga de estacionamento, na sua sala de estar”

Inicialmente a mineração de dados comportamentais ocorria apenas no ambiente da internet e destinava-se especificamente ao direcionamento de publicidade. Entretanto, com o aumento da sofisticação da tecnologia e da difusão da prática da extração destes dados para fora da internet tradicional, através de dispositivos do mundo real agora conectados à rede, um novo imperativo de diferenciação surgiu como forma de resposta à pressão por receitas sobre as empresas do setor, o da predição de comportamento. Pense em como hoje você entra no seu carro e seu celular já sabe para onde você costuma ir em determinados horários a cada dia da semana e já lhe mostra o tempo previsto para seu destino sem que você precise introduzir nenhuma informação no sistema de GPS, por exemplo. Agora imagine o valor comercial desta informação.

A parte II prossegue abordando a terceira e mais audaciosa fase da evolução do modelo: a de modificação do comportamento. São fornecidos diversos exemplos e apresentados casos como, por exemplo, o de um teste conduzido pelo Facebook nas eleições americanas de 2010, em que um grupo de pesquisadores manipulou os feeds de notícias de 61 milhões de usuários exibindo uma mensagem incentivando os mesmos a votar. Esta mensagem incluía um botão “Eu Votei”, com contador, mas em duas diferentes versões. Parte dos usuários recebeu a mensagem com o botão e um contador simples, enquanto parte recebeu o contador acompanhado de fotos de amigos que já haviam clicado no botão. Os resultados demonstraram uma probabilidade 2% maior destes últimos clicarem no botão e a estimativa foi de que esta ação tenha levado cerca de 340.000 pessoas adicionais a votar nesta eleição específica. (O estudo é descrito no artigo “A61-Million-Person Experiment in Social Influence and Political Mobilization”)


Finalmente, a parte III se dedica a acompanhar a fase seguinte, em que não mais o indivíduo, mas a própria sociedade passa a ser o novo objeto de extração e controle e a analisar as consequências do avanço deste novo poder “instrumentário” (como denominado por Zuboff), traçando um paralelo entre a evolução do Capitalismo Industrial ao longo do século XX e seus impactos em diversas dimensões (social, política, ambiental, econômica, etc.), e a evolução já percebida e a esperada do Capitalismo de Vigilância e suas possíveis consequências.

É um texto longo, profundo e muito bem construído, que busca alertar a sociedade para o ineditismo da situação que temos enfrentado ao longo dos últimos 20 anos e que nos pegou de surpresa, sem termos ainda arcabouços éticos, morais ou legais capazes de lidar adequadamente com os graves desafios que a emergência deste novo modelo de negócio nos impõe, mas que temos assimilado com surpreendente naturalidade e sido induzidos a aceitar como normal e inevitável. A humanidade se depara com uma situação inédita, que está evoluindo de forma muito acelerada e o livro propõe justamente o questionamento de sua suposta “normalidade”. Para tanto, faz um trabalho extraordinário dando nome e forma a muitos aspectos e conceitos envolvidos nesse novo modelo econômico e nos equipa com um ferramental conceitual poderoso, que abre caminho através da fumaça dos supostos benefícios de um mundo hiperconectado e possibilita vermos com clareza o que estamos realmente queimando nesse processo.


PS – Ao escrever o último parágrafo, abri o meu navegador para checar a grafia correta de uma palavra. Recebi a mensagem abaixo. Aparentemente sigo forte na minha condição de matéria-prima...