segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Narcosis


Mergulho é um esporte único. Não há competição no mergulho. Você não mergulha para ser melhor do que ninguém. Você mergulha porque é algo que ama e ponto. Para quem olha um mergulhador na água, pode até parecer uma atividade solitária. Nada mais longe da verdade... Você NUNCA está sozinho em um mergulho. Você mergulha com seu dupla e para seu dupla. Depende dele, assim como ele depende de você, seja para manter o seu mergulho seguro, seja para conseguir aquela sua foto bacana, seja para dividir com alguém aquela cena especial que encontrou. 

Vêm então as viagens de mergulho. Grupo maior, mas sempre com amigos que abraçam essa mesma essência do mergulho, com quem você terá o privilégio de conviver por vários dias, experimentar um outro mundo e descobrir o quanto podemos ser melhores, nele e no nosso. 

Vivemos em um mundo obcecado por competição e acumulação. O mergulho é o oposto. E nós precisamos desta pausa e desse contraponto, mesmo que só por uma semana. 

 Porque mergulho é sempre sobre dividir, não sobre acumular. É sobre dividir a sua experiência com quem está do seu lado para que todos possam aprender e evoluir, tornando o mergulho de todos melhor. É sobre levar aquele equipamento extra na mala, não para você mesmo, mas porque ele vai salvar o mergulho de alguém que vai precisar. É sobre dividir seu quarto e suas músicas. É sobre dividir o almoço na barraca da praia e o lanchinho que você trouxe do hotel. É sobre dividir a carona para o aeroporto e a bebida no bar. 

É claro que sempre está presente a adrenalina do mergulho em si, mas é a sensação de bem-estar desse tipo de convivência que torna as viagens de mergulho tão especiais... O sincronismo de emoções ao longo de vários dias, a ressonância límbica perfeita. Emoções, ao contrário de ideias ou abstrações, são contagiosas. A emoção das pessoas ao nosso redor atrai as nossas próprias para uma convergência quase instantânea. É por isso que assistir a filmes no cinema pode ser uma experiência eletrizante, enquanto assistir sozinho ao mesmo filme em casa nunca o será - é a multidão, o grupo que faz com que a história libere sua mágica. Uma mesma emoção une indivíduos em um organismo maior, coeso e síncrono, compartilhando os sustos ou a excitação nos cinemas, o fervor religioso no Hajj muçulmano, a euforia depois de um dia de mergulhos espetaculares ou a sensação de felicidade por alguns dias de tranquilidade quase transcendental, pores do sol espetaculares e margaritas perfeitas. 

Quando participa de uma viagem destas, você começa com amigos e termina com irmãos. Você olha para dentro da vida e ela olha para dentro de você. E ela sorri. E você nunca volta o mesmo. Volta melhor.

domingo, 24 de março de 2019

The Coddling of the American Mind – How Good Intentions and Bad Ideas are Setting Up a Generation for Failure

Há um fenômeno novo ocorrendo nas universidades americanas e que vem preocupando seus professores e administradores: ações organizadas por estudantes para impedir palestras de convidados externos que defendam opiniões controversas ou vistas como hostis às suas próprias. Estas ações vão de protestos dentro dos auditórios ao bloqueio do acesso às salas e manifestações mais violentas, com depredação de patrimônio das universidades e agressões físicas. O primeiro destes movimentos a cruzar a linha do uso explícito de violência ocorreu em Berkeley em fevereiro de 2017, com a chamada “Milo Riot” (que recebeu este nome por se tratar de um protesto contra a palestra que seria proferida por Milo Yiannopoulos, um jovem inglês homossexual, apoiador de Trump e com um talento incomum na arte de provocar opositores ao extremo para então usar as reações em benefício de sua própria agenda). Teve todo o arsenal comum das ações black blocs a que nos acostumamos por aqui: coquetéis molotov, ataques a policiais, destruição de caixas eletrônicos, etc. O que foi particularmente perturbador nesse caso foi a justificativa de alguns dos estudantes envolvidos entrevistados posteriormente: a violência física das manifestações seria uma forma legítima de “autodefesa” contra a potencial agressão intelectual representada pela fala do convidado. 

Já em 2014, mudanças de comportamento nos campi universitários americanos chamaram a atenção de Greg Lukianoff, CEO da Foundation for Individual Rights in Education (FIRE) e de Jonathan Haidt, PhD em psicologia social e professor de liderança ética na Universidade de Nova York, levando-os a escrever em 2015 um artigo de grande repercussão sobre o tema para o The Atlantic. Desde então, a escalada na frequência e gravidade desse tipo de ocorrência nos EUA ao longo dos últimos 2 anos os levou a buscar aprofundar sua compreensão do cenário, analisar suas causas e escrever o livro “The Coddling of the American Mind – How Good Intentions and Bad Ideas are Setting Up a Generation for Failure” (algo como “Mimando a mente americana – como boas intenções e péssimas ideias estão condenando uma geração ao fracasso”). O livro é obviamente novo, mas tem sido muito elogiado por pessoas como Steven Pinker e foi escolhido como o melhor livro de 2018 pela Bloomberg. Conta a história de um tempo estranho e perturbador, em que muitas instituições estão funcionando mal, a confiança vem caindo e uma nova geração (a iGen ou Geração Z - os pós-Millenials), está apenas começando a se formar no ensino superior e a entrar no mercado de trabalho. 



É uma obra focada principalmente na sociedade americana e que analisa eventos ocorridos em instituições americanas, de modo que talvez não venha a ser traduzido para o português tão logo, mas eu sinceramente recomendo a todos que, como eu, têm filhos iGen – posso estar errado, mas temo que o mesmo tipo de movimentação vista nos EUA em breve estará chegando às nossas universidades, uma vez que os aspectos sociais e políticos descritos pelos autores como as razões fundamentais dos fenômenos observados são muito similares aos percebidos atualmente no Brasil (veja a parte III abaixo). Como todo livro bom, é muito difícil de resumir e nenhum resumo substitui a leitura do original, mas as principais ideias apresentadas podem ser resumidas em 4 partes: ideias ruins, seus efeitos, como chegamos a elas e como resolver o problema. 

1 – As péssimas ideias 

Na primeira parte do livro os autores apresentam as ferramentas intelectuais de que o leitor precisa para compreender a nova cultura de “segurança” que vem sendo incorporados à vida dos campi americanos a partir de 2013 e que possibilitam reconhecer o que chamam de as Três Grandes Falácias (ou inverdades, para uma tradução mais precisa). 

A primeira Grande Falácia é a da Fragilidade: crianças e adolescentes são criados hoje em uma cultura de superproteção que, na esteira da paranoia pela criação de espaços e ambientes seguros, as está isolando da exposição a situações e experiências que são fundamentais para a formação de adultos fortes e resilientes. Um exemplo clínico é o caso do banimento de produtos derivados de amendoim nas escolas americanas em meados da década de 90: em vez de diminuir, a taxa de crianças que desenvolveram alergia a amendoim em 2018 foi o triplo do que era observado quando a norma foi implantada. Um estudo publicado pela LEAP (Learn Early About Peanut Allergy) demonstrou que a falta de exposição ao amendoim estava agravando o problema, em vez de amenizá-lo. Como colocado por um dos pesquisadores da LEAP em uma entrevista: 

“Por décadas os alergistas vêm recomendando que crianças pequenas evitem o consumo de alimentos com presença de substâncias alergênicas como amendoim, como uma forma de se prevenir o desenvolvimento de alergias alimentares. Nossas descobertas sugerem que esse conselho seja incorreto e que possa ter contribuído para o aumento da incidência de alergias ao amendoim e outros alimentos” 

Esse é o conceito fundamental em que se baseia a “hipótese da higiene”, a principal hipótese explicativa de porque as taxas de alergias aumentam conforme os países se tornam mais limpos e saudáveis. Segue a explicação desta hipótese por Alison Gopnik e sua extrapolação para o tema de que trata o livro: 

“Graças à higiene, aos antibióticos e a pouca brincadeira fora de casa, as crianças não são tão expostas a micróbios como eram. Isso pode levá-las a desenvolver sistemas imunológicos que reagem de forma exagerada a substâncias que não são verdadeiramente nocivas, causando alergias. Do mesmo modo, ao se isolar as crianças de qualquer risco possível, pode-se levá-las a reagir com medo exagerado frente a situações que não apresentam qualquer risco real e assim impedir que desenvolvam habilidades que lhes serão necessárias na idade adulta.” 

Os autores contam como essa cultura de “segurança” se instaurou na sociedade e como o conceito se infiltrou por outros aspectos da vida americana, ao ponto de, por exemplo, elevar desconforto emocional ao status de perigo equivalente ao de um risco físico - justamente o argumento apresentado no primeiro parágrafo deste post pelo estudante questionado sobre sua participação na Milo Riot. 

A segunda Grande Falácia é a da “Racionalização Emocional”, ou “sempre confie em seus sentimentos”, uma distorção cognitiva que vem se difundindo ao longo dos últimos anos, inclusive por meio da difusão de algumas linhas de livros de autoajuda. Basicamente trata-se de racionalizar, intencionalmente ou não, as emoções de modo que o seu lado racional atue no sentido de sempre buscar elaborar uma teoria para validar uma resposta emocional em vez de questioná-la. Para quem leu “Rápido e Devagar de Daniel Kahneman”, seria como ter o seu sistema racional (lento) sempre submisso ao sistema emocional (rápido). Um exemplo de consequência dessa falácia é a difusão do conceito de “microagressões”. 

Microagressão refere-se a uma forma de se interpretar pequenas indignidades e atos falhos de comunicação contra minorias. Pequenos atos de agressão são reais e o termo poderia ser útil, mas passou a incorporar também pequenas ofensas acidentais e não intencionais, de modo que o uso do termo “agressão” é infeliz. Olhar o mundo permanentemente sob as lentes do conceito de microagressão significa interpretar situações do dia-a-dia sempre da forma mais negativa possível (se eu posso interpretar este comentário do meu colega como racista, é porque foi racista mesmo), amplia a dor experimentada por minorias e escala conflitos desnecessária e injustamente. 

A terceira Grande Falácia é a de que “a vida é uma eterna batalha entre pessoas boas e más”, ou seja a falácia do “Nós contra Eles”. Essa falácia está no centro do efeito de polarização que vemos nas sociedades atuais e já escrevi bastante sobre isso no post sobre o livro “Moral Tribes”, de modo que não vou me alongar nesse tópico. Basta reproduzir a frase do rabino Lord Jonathan Sacks no livro “Not in God’s Name”: 

“Existe um dualismo moral que vê o bem e o mal como instintos dentro de nós e que nos forçam a uma escolha entre os dois. Mas existe também o que eu chamo de dualismo patológico, que vê a humanidade em si como radicalmente dividida entre os impecavelmente bons e os irremediavelmente maus. Você não é nem uma coisa nem outra.” 

2 – Os efeitos 

Na parte II, os autores apresentam as 3 falácias em ação e suas consequências nos campi: bloqueios a palestras, intimidação e violência física ocasional e como estas ocorrências estão tornando difícil a tarefa de educação e pesquisa das universidades. Por serem eventos muito específicos dos Estados Unidos, também não vou aprofundar esta parte, mas quem tiver interesse pode buscar artigos sobre os seguintes eventos:






3 – Como chegamos a isso? 

Na parte III são identificadas 6 fenômenos que explicam as mudanças rápidas de comportamento nos campi entre 2013 e 2017 e que tiveram enorme impacto na geração iGen. É o trecho mais relevante para os pais da minha geração e pode ser facilmente percebido o paralelo com fenômenos similares observados no Brasil: 

- O ciclo de polarização – Os EUA vêm experimentando um aumento constante da polarização partidária desde de os anos 80: uma polarização emocional que leva as pessoas que se identificam com um dos seus dois principais partidos a odiar e temer de forma crescente o partido oposto e seus apoiadores. Este fenômeno ajuda a entender as mudanças nos campi: a polarização partidária nos EUA em geral é praticamente simétrica, mas os estudantes e professores universitários tendem mais à esquerda. Deste modo, universidades são naturalmente mais propensas a se tornarem alvos de hostilidade e desconfiança por parte de conservadores e organizações com tendências de direita. O número de professores assediados ou atacados pela direita em razão de ideias expressas em entrevistas ou redes sociais começou a aumentar a partir de 2016, afetando nitidamente seu comportamento e criando um ambiente em que estão constantemente “pisando em ovos” ao expressar suas opiniões. 

- Ansiedade e depressão – Considera-se 1995 como o ano do nascimento da geração iGen. Em 2006, quando o primeiro iGen fazia 11 anos de idade, o Facebook alterou sua política de requisitos para adesão e deixou de exigir comprovação de matrícula em uma faculdade. A partir daí, qualquer pessoa a partir de 13 anos de idade (ou crianças mentindo a idade) passou a poder aderir. Entretanto, Facebook e mídias sociais em geral não atraíam muita atenção até a introdução do iPhone em 2007. Desde então, ao longo do período compreendido entre 2007 e 2012, a vida social do adolescente americano médio passou por uma mudança muito significativa – os iGen’s são a primeira geração totalmente imersa no enorme experimento social e comercial representado pelas mídias sociais. Não se pode afirmar categoricamente a correlação, mas é fato que os iGen’s apresentam taxas muito mais altas de ansiedade e depressão (especialmente as meninas, cujas taxas de suicídio dobraram desde 2007). As meninas podem estar sofrendo mais por serem mais afetadas por comparações sociais (percepções de realidade distorcidas por exemplo por fotos com beleza ampliada digitalmente), por sinais de que estão sendo deixadas de fora de grupos ou perdendo alguma coisa importante (FOMO – fear of missing out) e por bullying e agressões, todas situações muito mais difíceis de ignorar quando se porta um celular com acesso permanente às redes sociais. 

A chegada dos iGen’s às universidades coincide de forma exata com a intensificação da cultura de “segurança” nos campi e os iGen’s podem ser especialmente atraídos para ambientes de cultura superprotetora. Esta afinidade entre os iGen’s e ambientes “seguros” tem o reflexo de realimentar o ciclo de expansão da cultura de “segurança”, podendo ser entendido como um incentivo às universidades para adotar esse padrão em suas estruturas como uma ferramenta de atração e retenção de alunos, em detrimento do livre debate de ideias. 

- Pais paranoicos – Quando as crianças são superprotegidas, estão sendo prejudicadas. Crianças são naturalmente antifrágeis, no sentido da definição apresentada por Nassim Nicholas Taleb em seu livro “The Black Swan”: elas precisam de situações de stress e desafio para aprenderem, adaptarem-se e crescerem. A superproteção as torna mais fracas e menos resilientes. Comparadas com gerações anteriores, as crianças iGen têm nitidamente menos tempo para brincadeiras não-supervisionadas por adultos, possibilidades de exploração por conta própria e exposição a desafios, riscos e experiências negativas que ajudariam a torná-las adultos mais fortes, competentes e independentes. Além disso, leis e normas sociais superprotetoras bem-intencionadas, mas que dificultam ou impedem que se deixe crianças sem supervisão, podem estar impactando de forma negativa a saúde mental e a resiliência dos jovens de hoje. A criação por pais paranoicos faz com que as crianças abracem as Três Falácias desde cedo. Quando chegam à faculdade, então, são naturalmente seduzidas pela cultura de “segurança” e tendem a reagir negativamente à exposição de ideias e conceitos contrários aos seus, interpretando-os como agressão. 

- O declínio das brincadeiras – Crianças, como os demais mamíferos, precisam de tempo para brincar livremente e interagir em ambientes sem regras para finalizar a formação de seu complexo sistema neural. Crianças privadas de tempo para brincar são propensas a tornarem-se adultos menos competentes física e socialmente, menos tolerantes a riscos e mais suscetíveis a problemas de ansiedade. O declínio do tempo livre para brincar é causado por várias tendências, como um medo exagerado de estranhos e sequestros, o aumento da competitividade e exigências nos processos de admissão em universidades, o aumento da ênfase em atividades extracurriculares e lições de casa mesmo em idades mais tenras e a correspondente perda de ênfase em habilidades não acadêmicas. Além disso, o advento da disponibilidade smartphones e mídias sociais em combinação com estas tendências, vem mudando a forma como as crianças (americanas e brasileiras) gastam seu tempo e afetando os tipos de interação social e física que guiam o intrincado processo de formação e amadurecimento do sistema neurológico. 

- O crescimento da burocracia nos campi – A expansão de uma cultura de “espaços seguros” nos campi geralmente é oriunda de boas intenções, mas pode acarretar consequências ruins para os alunos. Nos Estados Unidos, uma onda crescente de ações legais contra universidades e também pressões de mercado por resultados, transformaram diversas instituições em empresas particularmente preocupadas em agradar a seus “clientes” e este fenômeno vem tendo efeito negativos sobre a liberdade de expressão em seus ambientes. Esforços para proteger estudantes por meio da criação de estruturas burocráticas formais para resolução de problemas e conflitos podem ter consequências não intencionais no sentido de ampliar dependência moral dos alunos e solapar as suas habilidades de resolver conflitos de forma direta e independente tanto ao longo dos cursos como após a graduação. 

- A busca por justiça – Eventos políticos ocorridos nos últimos anos tiveram um forte impacto emocional sobre os adolescentes em formação que estão hoje chegando às faculdades. Estes estudantes respondem a estes eventos com um forte compromisso com o ativismo em prol de justiça social. As noções intuitivas de justiça são de duas naturezas: distributiva (a percepção de que as pessoas estão recebendo o que merecem) e procedural (a percepção de que o processo e as regras são justos e confiáveis). O tema da justiça social é um conceito central nos campi hoje e assume várias formas, em particular de esforços no sentido da igualdade de oportunidades e de que todos sejam tratados com dignidade. Entretanto, quando ativistas estão dispostos a violar as regras e mudar o foco de igualdade de oportunidades para igualdade de resultados, movidos por um senso de justiça distorcido, eles passam a aderir a movimentos e campanhas contraproducentes, indo inclusive contra pessoas que compartilham seus objetivos. Deixam de compreender a verdadeira natureza dos problemas e perdem a legitimidade em seus esforços para resolvê-los. 

4 – Como solucionar o problema? 

Na parte IV são oferecidos conselhos sobre como pais e professores podem criar e educar crianças mais sábias, fortes e independentes e sugeridas formas pelas quais professores, administradores e estudantes universitários podem melhorar suas universidades e adaptá-las ao nosso cenário atual de “revolta turbinada por tecnologia”. Com relação às crianças, as principais sugestões dos autores podem ser resumidas da seguinte forma (incluí apenas 4 das 6 presentes no livro): 

- Prepare a criança para a estrada e não a estrada para a criança – você não vai conseguir ensinar antifragilidade para suas crianças diretamente, mas pode lhes dar o presente da experiência – as milhares de pequenas experiências diárias de que elas precisam para tornarem-se adultos resilientes e autônomos. Este presente começa ao se reconhecer que crianças precisam de tempo livre para brincar sem supervisão, em brincadeiras sem regras formais, para conseguirem aprender a como avaliar riscos por conta própria e a lidar com situações de frustração, tédio e conflitos interpessoais. Elas precisam brincar ao ar livre, com outras crianças. Em algumas situações a supervisão de um adulto pode ser necessária para garantir a segurança física, mas ele não deve interferir em disputas e conflitos. 

- Seu pior inimigo não vai conseguir prejudicá-lo tanto quanto seus próprios pensamentos, se não tomar cuidado com eles – Crianças, assim como adultos, são muito propensos a abraçar a falácia da Racionalização Emocional. Elas precisam aprender habilidades cognitivas e sociais que vão ajudar a limitar a prevalência das emoções sobre a razão e a lidar de forma mais produtiva com as provocações e desafios da vida. Especialmente hoje, quando a internet garante que elas serão expostas a um monte de lixo e frustrações diariamente, é vital que aprendam a interpretar e gerenciar suas respostas emocionais. A principal ferramenta proposta pelos autores é a chamada CBT (Terapia Cognitivo-comportamental), uma forma de psicoterapia que se baseia no conhecimento empírico da psicologia e que é de aplicação extremamente simples, podendo ser aprendida facilmente. Um dos livros que recomendam sobre o assunto é “Feeling Good: The New Mood Therapy” de David Burns), mas fornecem também um guia básico de aplicação de CBT em um dos apêndices do próprio livro. 

 - A linha que divide o bem e o mal corta ao meio o coração de todos os seres humanos – Ajude suas crianças a não cair na falácia dos “nós contra eles”. Não incentive nem propague discursos de ódio. Conceda às pessoas o benefícios da dúvida e pratique humildade intelectual (ou seja, reconheça que pode não estar certo e que o outro pode ter argumentos relevantes para refutar ou reforçar a sua posição). Observe como a escola de seus filhos lida com a questão de identidade política e se não incentiva a internalização da falácia do “nós contra -eles”. 

- Limite o tempo de uso dispositivos eletrônicos – Se as crianças puderem fazer sempre o que quiserem, vão gastar a maior parte do tempo olhando para telas. De acordo com a ONG Common Sense Media, nos EUA os adolescentes tendem a passar 9 horas (!) por dia em frente a telas e crianças de 8 a 12 anos tendem a passar 6 horas diárias. Isso ADICIONALMENTE ao tempo em que eles usam os dispositivos para tarefas e atividades escolares. Um número crescente de pesquisas indica que tal uso excessivo está associado a problemas mentais e sociais, mas o tema ainda precisa de muito estudo. Entretanto, a limitação de tempo a 2 horas diárias vem demonstrando ser um limite saudável e que aparenta evitar os efeitos mentais negativos. Para crianças pequenas, considere banir o uso de dispositivos eletrônicos durante os dias da semana e atrasar ao máximo a incorporação dos mesmos às rotinas diárias. Fique atento também a como as mídias sociais são usadas e sobre como seus filhos lidam com questões como FOMO (fear of missing out), comparações sociais e percepções irrealisticamente positivas sobre as vidas de seus colegas (especialmente sobre os que inundam seus perfis com fotos perfeitas de viagens, festas e passeios). Finalmente, proteja o tempo de sono de seus filhos e interrompa o uso de eletrônicos no mínimo entre 30 e 60 minutos antes da hora de dormir, além de deixar os dispositivos guardados fora do quarto das crianças. 

O livro inclui ainda recomendações às universidades e seus profissionais no estabelecimento de políticas que as fortaleçam em sua função fundamental de busca de conhecimento e da verdade e que também são bastante relevantes e práticas, incluindo um modelo de declaração de princípios de defesa da liberdade de expressão em suas dependências baseado no adotado pela Universidade de Chicago. 

Em suma, apesar de analisar um cenário não muito agradável no ambiente universitário de hoje, o livro oferece soluções práticas para ajudar a mudá-lo. Não é uma obra pessimista, pelo contrário. É bastante otimista com relação à nossa capacidade para resolver as dificuldades atuais e de evoluirmos com elas. Fecha com uma frase de 1830 de Thomas Babington Macaulay, um historiador e parlamentar britânico, que pode ser aplicada tranquilamente aos dias de hoje e a qualquer outro momento da história: 

“Nós não podemos absolutamente provar que estão errados aqueles que nos dizem que a sociedade atingiu um ponto de inflexão e que já vimos nossos melhores dias. Mas isso é a mesma coisa que disseram os que vieram antes de nós, com a mesma propriedade... Com base em que princípios nos baseamos para esperar nada além de deterioração à nossa frente, quando vemos nada além de progresso atrás de nós?”

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Tribos Morais: Emoção, Razão e o Abismo entre Nós e Eles

Qualquer cidadão brasileiro já está cansado de discussões sobre a polarização que se instalou na política e na sociedade brasileira. Não é um fenômeno exclusivamente nacional: situações análogas são claramente percebidas por exemplo na Argentina, EUA, Inglaterra, França e Venezuela, ao ponto do assunto já ter se tornado lugar-comum em boa parte do mundo. Um dos principais problemas acarretados por este fenômeno é a politização de temas graves e técnicos, que deixam de ser tratado com a frieza e seriedade necessária e passam a ser olhados com a profundidade de uma discussão entre torcidas de futebol. 

Tome-se o exemplo da questão do aquecimento global: em 1998, pesquisas indicavam que eleitores Republicanos e Democratas apresentavam probabilidades praticamente iguais de concordar com o argumento de que a mudança climática estava realmente ocorrendo. De lá para cá, ao mesmo tempo em que as evidências científicas sobre o tema apenas aumentaram, surgiu uma curiosa divergência entre eleitores Republicanos e Democratas com relação ao assunto, a ponto de em 2010 um Democrata ter passado a ter uma probabilidade duas vezes maior de afirmar acreditar na mudança climática do que um Republicano. Isso não ocorreu por questões técnicas ou por um eventual menor acesso às informações científicas por parte dos Republicanos, mas simplesmente pelo fato do assunto ter tomado contornos políticos que levaram os dois partidos a se posicionar em campos opostos, forçando um grande número de eleitores Republicanos a ter de optar (até de forma inconsciente) entre aceitar racionalmente as opiniões dos especialistas no assunto ou simplesmente recusá-las e se comportar, então, como um bom e confiável membro de sua “tribo” política. 

A compreensão desse comportamento tribal inerente ao ser humano e a proposição de um ferramental prático que possibilite a formação de consensos mínimos entre as diferentes tribos modernas é o foco do excelente livro “Moral Tribes – Emotion, Reason and the Gap Between Us and Them”, de Joshua Greene (Penguin Books, 2013). Por ser um assunto excepcionalmente denso, é um tanto complicado resumir os conceitos desenvolvidos ao longo das 360 páginas uma forma acessível sem perder os pontos principais, mas como a imensa maioria das pessoas dificilmente terá acesso a ele, acho que vale a pena fazer uma tentativa de transmitir pelo menos a ideia básica. 



1. Moral como adaptação evolutiva

Depois de Darwin, a moral humana mostrou-se um enigma científico. A teoria da seleção natural podia explicar muitas coisas sobre os seres humanos: a inteligência, a fala e o caminhar sobre duas pernas são adaptações evolutivas com benefícios claros. Entretanto, alguns aspectos de comportamento inatos observados não só nos seres humanos, mas também em nossos parentes mais próximos (chimpanzés), pareciam especialmente intrigantes, como a capacidade para empatia desde a primeira infância, um determinado grau de altruísmo e a disposição para a cooperação com outros indivíduos. Se o objetivo final de um organismo seria a máxima propagação de seus genes (ver os comentários sobre o clássico de Richard Dawkins, “O Gene Egoísta”, em https://paginaemblanco.blogspot.com/2016/04/genes-memes-e-richard-dawkins.html), qual o papel evolutivo desse tipo de comportamento cooperativo? A resposta é que, tanto humanos quanto chimpanzés, são seres eminentemente sociais - grande parte do sucesso da raça humana deriva justamente de sua capacidade de cooperação. Nesse sentido, tanto a fala quanto as noções básicas de não-agressão, altruísmo e empatia passam a fazer sentido, viabilizando a formação de grupos relativamente amplos e aumentando as chances de sobrevivência e reprodução dos membros quando comparadas às de indivíduos isolados. Na interpretação de Greene, é justamente a esse conjunto de comportamentos socialmente desejáveis (éticos) e que em grande medida possibilitam a convivência harmoniosa em grupos, que damos o nome genérico de “moral”: 

“Moral é um conjunto de adaptações psicológicas que possibilitam a indivíduos naturalmente egoístas capturar os benefícios da cooperação com outros.” 

Emerge como consequência imediata desse conceito de moral, portanto, a seguinte questão: As nossas noções básicas de comportamento moral são uma adaptação evolutiva, surgida como um sistema de freios contra comportamentos exclusivamente egoístas e que têm a importante função de orientar o comportamento em situações específicas em que é do interesse de um indivíduo colocar o “nós” à frente do “eu”. Deve, portanto, haver uma estrutura em nosso cérebro que tenha evoluído biologicamente para incorporar essa função, certo? Sim. 

Alguns anos atrás eu publiquei nesse blog um comentário sobre o livro “Rápido e Devagar” de Daniel Kahneman (https://paginaemblanco.blogspot.com/2014/06/rapido-e-devagar.html). Kahneman demonstra como o cérebro humano opera em dois modos diferentes e complementares: um modo “automático” extremamente rápido e intuitivo e um modo “manual”, mais lento e racional. Segundo Greene, boa parte de nossas noções básicas de moral vêm justamente do modo “automático”: nosso repúdio natural a matar outra pessoa ou a deixar uma criança desconhecida se afogar, por exemplo. Ao ver uma criança se afogando em uma piscina, nenhum ser humano mentalmente saudável para e considera o estrago que um mergulho vai fazer no seu terno novo – simplesmente se joga na água para salvá-la. Esse reflexo que induz a algumas ações moralmente perfeitas é inerente ao ser humano e vem justamente do sistema de resposta rápida do cérebro. 

Assumamos, então, que a moralidade básica seja uma evolução biológica que emergiu como indutora de comportamento cooperativo entre os seres humana. Essa inovação biológica teria se estabelecido milhares de anos atrás, em um ambiente em que os seres humanos cooperavam ainda em pequena escala, em grupos reduzidos. Fazia sentido biológico para um indivíduo neste momento a cooperação dentro de seu grupo ou tribo, mas o que ocorria quando dois grupos se encontravam e disputavam um determinado espaço? Era de se esperar a deflagração de um conflito em que o grupo mais forte subjugaria o grupo mais fraco, tomando seus estoques de comida, suas mulheres e animais. 

Mas porque a cooperação entre grupos não faria sentido biológico? Ao mesmo tempo que um nível limitado de cooperação dentro de um grupo poderia ser benéfico para a difusão do pool de genes de seus membros, a cooperação mais ampla entre grupos (universal) já passa a ser claramente inconsistente com os princípios de competição e “sobrevivência do mais apto” que governam a evolução por seleção natural. Deste modo, uma vez que se aceita a moral como uma adaptação biológica, decorre que ela teria que evoluir de modo a incentivar dois tipos de comportamento aparentemente antagônicos, mas coerentes em termos evolutivos: como um dispositivo capaz de induzir comportamento que privilegie o “nós” em detrimento do “eu”, mas simultaneamente como um dispositivo para priorizar o “nós” contra o “eles”. Harmonia dentro do grupo. Conflito entre os grupos. 

2. Meta-moralidade 

Considere-se agora a explosão populacional dos seres humanos nos últimos poucos milhares de anos, em que passamos de menos de 10 milhões de caçadores/coletores para mais de 7 bilhões pessoas habitando um mundo industrializado e altamente conectado. É uma mudança ambiental radical e repentina (numa escala de tempo evolutivo), que os nossos dispositivos “morais” biológicos simplesmente não conseguem acompanhar. Em outras palavras, a moral “natural” que regula nosso comportamento dentro de nossas tribos e que por muito tempo regulou o comportamento entre nossas tribos, simplesmente não é mais adequada (por mais que torcidas organizadas teimem em achar o contrário). Faz-se necessária então, segundo Greene, o estabelecimento de uma meta-moralidade que possa ser considerada aceitável e lógica pelos diversos grupos e assim ajudar a regular as relações entre eles, facilitando os consensos mínimos a que já me referi acima. 

A visão defendida por Greene em seu livro é de que a solução está no Utilitarismo, uma doutrina ética desenvolvida por Jeremy Bentham e John Stuart Mill no século XIX. Basicamente, o Utilitarismo define uma ação como “boa” (moral) quando ela resulta em um aumento líquido do nível de “felicidade” no mundo e “má” quando suas consequências reduzem esse nível. Para um utilitarista, a ação correta a ser tomada em qualquer circunstância pode ser calculada examinando-se as prováveis consequências das várias linhas de ação possíveis, sendo a ação certa (moralmente preferível), aquela com maior probabilidade de resultar em maior “felicidade” líquida à humanidade, ou, como colocado por Greene, com maior probabilidade de melhorar a experiência humana. Em suma, em situações de disputa entre duas visões antagônicas de dois grupos diferentes, as pessoas deveriam simplesmente adotar a melhor solução mediante uma análise racional e isenta das consequências de ambas as opções. Ou seja, identificar e escolher a resposta que apresente a maior probabilidade de melhorar o nível geral de felicidade das pessoas. Fácil de dizer, mas extremamente difícil de implementar. 

Quando avaliavam leis e práticas comuns de sua época, Bentham e Mill consideravam apenas um ponto: isso aumenta ou diminui nossa felicidade e em que medida? Eles argumentaram, por exemplo, que a escravidão não é errada porque “Deus se opõe à escravidão”, mas sim porque qualquer benefício que ela possa trazer (em termos de produtividade econômica, por exemplo), é vastamente superado pela miséria que ela produz. Argumentaram do mesmo modo objetivo contra as restrições de direitos das mulheres, contra o tratamento brutal a animais, a favor do divórcio, a favor dos direitos dos homossexuais, pela separação entre Igreja e Estado, por acesso amplo a educação e assim por diante. Enfim, é uma filosofia de profundo pragmatismo e bastante avançada para seu tempo. 

Uma das críticas que se faz ao utilitarismo, entretanto, é de que seu pragmatismo pode levar a conclusões absurdas e a potenciais violações de direitos básicos das pessoas. Sim, é verdade. No caso da escravidão mencionado acima, por exemplo: mesmo que um cálculo utilitarista chegasse à conclusão, pelo motivo que fosse, de que a escravidão de um determinado povo pudesse aumentar a felicidade líquida da humanidade, ninguém em sã consciência apoiaria tal barbaridade. Obviamente, o que Greene defende, portanto, não é um pragmatismo absoluto, mas sim o utilitarismo respeitando restrições óbvias no que se refere à violação de direitos humanos fundamentais. 

3. Direitos como argumentos 

Mencionei acima a restrição à teoria utilitarista no caso de situações em que a melhor solução calculada implica violação de direitos humanos. Obviamente, mesmo que matar e coletar os órgãos de uma pessoa possa salvar a vida de outras cinco que esperam por um transplante, é uma solução escandalosamente errada por implicar uma violação grotesca do direito à vida do “doador”. Entretanto, Greene alerta de forma muito enfática contra o uso de “direitos” como argumento em uma discussão, uma vez que os mesmos não são consenso entre as diversas tribos e simplesmente não há nenhuma teoria universalmente aceita para se estabelecer quem tem direito exatamente a quê. 

Tome-se o tema atualmente em discussão no Brasil sobre o direito à posse e porte de armas de fogo. É um assunto extremamente politizado, em que boa parte dos argumentos gira em torno do “direito à autodefesa”. Quando um debatedor pró-armas apela para esse argumento e introduz o “direito” na discussão, não está ajudando a resolver a questão. Pelo contrário, está simplesmente fingindo que o assunto já foi resolvido por uma entidade superior em algum reino abstrato ao qual apenas ele e sua tribo teriam acesso privilegiado. A partir daí, então, nenhum argumento, estudo ou estatística que possam ser colocados na mesa pela outra parte e que contradiga sua certeza será levado em consideração. A alegação de um suposto “direito” está, portanto, sendo usada descaradamente como uma arma para encerrar a discussão. 

Evidentemente, há direitos fundamentais que desempenham papel vital em nossa vida moral. Discutir sobre direitos pode ser inútil, mas algumas vezes as discussões são mesmo inúteis. Algumas vezes o que você precisa numa controvérsia moral não é de argumentos, mas justamente de armas. E essa é a hora para se levantar e defender seus direitos. Apenas tenha em mente de que os casos em que é realmente legítimo apelar para direitos em uma discussão são a absoluta exceção e sempre desconfie de quem entra com esse tipo de arma na sala. 

4. Moeda comum e soluções de compromisso 

A partir da introdução da proposta de adoção do Utilitarismo como a meta-moralidade mais adequada para resolver os conflitos do tipo “nós” contra “eles”, Greene passa ao detalhamento aprofundado de sua teoria, usando dados de experimentos de psicologia e neurociência, grande parte deles envolvendo o clássico “Dilema do Bonde”, que já mencionei aqui em um post mais antigo sobre moral (https://paginaemblanco.blogspot.com/2011/07/criancas-e-moral.html). Passa também a buscar um instrumento que possa funcionar como uma “moeda comum” entre os diversos grupos e que forneça uma base de comparação justa para os resultados das diferentes linhas de ação possíveis em uma dada situação de conflito entre grupos com opiniões opostas. Em outras palavras, tenta identificar um conjunto de conceitos comuns que possam ajudar a quantificar alternativas e identificar de forma objetiva qual solução funciona melhor em cada situação, levando a um comprometimento geral das partes envolvidas com ela. 

Para tanto, precisamos olhar para coisas básicas que todos nós, participantes das diferentes tribos, temos em comum: em primeiro lugar, somos todos irremediavelmente unidos pelos altos e baixos da experiência humana. Todos queremos ser felizes e nenhum de nós deseja sofrer. Em segundo lugar, todos somos capazes de entender e aceitar a Regra de Ouro (não fazer aos outros o que não gostaria que fosse feito contra si) e que o bem-estar de cada um tem sempre o mesmo peso e importância dos demais. São dois conceitos básicos razoáveis e compreensíveis por todas as tribos. Juntando-se os dois, dá-se o primeiro passo na construção da “moeda comum” procurada por Greene. 

Em seguida, é necessária uma ferramenta, uma régua que ajude a determinar de forma efetiva qual é a melhor solução para uma dada questão. Existem muitas possíveis fontes de conhecimento, mas a mais confiável e aceita é, sem dúvida, a ciência. A ciência pode não ser infalível e certamente há pessoas dispostas a rejeitar de pronto o conhecimento científico quando ele vai contra suas crenças tribais. Do mesmo modo, entretanto, todo mundo adoraria apelar à ciência para legitimar suas crenças (imagine a felicidade dos criacionistas no dia em que um estudo hipotético venha a mostrar, por exemplo, que a Terra na verdade só tem alguns milhares de anos?). Nenhuma outra forma de conhecimento tem essa capacidade. Para o papel de definir qual é a “melhor solução”, portanto, devemos contar com a ciência. Isso significa buscar provas objetivas e observáveis, ter a honestidade de assumir nossa ignorância quando necessário e disposição para ouvir e aceitar a opinião tecnicamente embasada dos especialistas em assuntos que não dominamos. 

 5. Concluindo 

Apresentados estes conceitos, pode-se finalmente resumir de forma objetiva a ideia central defendida no livro: todos nós, participantes das diversas tribos (coxinhas ou mortadelas, cristãos ou ateus, carnívoros convictos ou vegetarianos), temos embutido em nossos cérebros um dispositivo moral “automático” moldado por influências biológicas, culturais e sociais variadas. Esse dispositivo fornece respostas imediatas que nos servem muito bem nos relacionamentos dentro de nossos grupos. Entretanto, nossas teias de relacionamento são hoje muito mais amplas e um comportamento obviamente moral para um determinado grupo não o é necessariamente para outro (imagine pontos como o direito ao aborto, casamento gay, ou direito à posse de armas, por exemplo). Para a resolução de conflitos morais entre grupos e a definição de políticas adequadas que tragam o melhor resultado em termos de felicidade líquida global, nosso dispositivo “automático” não nos serve na maior parte dos casos – podemos (e devemos), ouvi-lo, mas temos que estar preparados para ignorá-lo quando necessário e aprender a nos guiar pelo nosso mecanismo “manual” (lento e racional). Isso é fundamental se quisermos estabelecer comparações isentas e sem vieses entre possíveis linhas de ação, chegando a decisões embasadas, defensáveis e principalmente aceitáveis para todos os interessados. Proceder de tal modo significa o estabelecimento de soluções de compromisso, as quais podem (e normalmente irão) representar resultados sub-ótimos para cada tribo individualmente, mas que pelo menos viabilizarão os consensos mínimos de que tanto precisamos para progredir. 

Se você chegou até aqui, agradeço pela paciência. Quaisquer que sejam as tribos de que faz parte, espero que esse resumo lhe ajude a ter uma visão mais ampla dos mecanismos que estão em ação em qualquer discussão polarizada em que venha a se envolver, por exemplo, nas redes sociais. Lembre-se do exemplo da mudança climática e de como a “tribalização” de opiniões sobre fatos concretos pode levar à implantação de políticas erradas e potencialmente incoerentes em termos utilitaristas. Perceba as situações em que a sua resposta intuitiva possa estar levando a melhor sobre a sua análise racional. Informe-se. Escute os especialistas. Responda e argumente com fatos. Desconfie de quem usa “direitos” como arma em uma discussão. Mas, acima de tudo, esteja preparado também para ouvir, analisar e absorver evidências, especialmente aquelas que contradigam suas certezas mais arraigadas.