quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Tribos Morais: Emoção, Razão e o Abismo entre Nós e Eles

Qualquer cidadão brasileiro já está cansado de discussões sobre a polarização que se instalou na política e na sociedade brasileira. Não é um fenômeno exclusivamente nacional: situações análogas são claramente percebidas por exemplo na Argentina, EUA, Inglaterra, França e Venezuela, ao ponto do assunto já ter se tornado lugar-comum em boa parte do mundo. Um dos principais problemas acarretados por este fenômeno é a politização de temas graves e técnicos, que deixam de ser tratado com a frieza e seriedade necessária e passam a ser olhados com a profundidade de uma discussão entre torcidas de futebol. 

Tome-se o exemplo da questão do aquecimento global: em 1998, pesquisas indicavam que eleitores Republicanos e Democratas apresentavam probabilidades praticamente iguais de concordar com o argumento de que a mudança climática estava realmente ocorrendo. De lá para cá, ao mesmo tempo em que as evidências científicas sobre o tema apenas aumentaram, surgiu uma curiosa divergência entre eleitores Republicanos e Democratas com relação ao assunto, a ponto de em 2010 um Democrata ter passado a ter uma probabilidade duas vezes maior de afirmar acreditar na mudança climática do que um Republicano. Isso não ocorreu por questões técnicas ou por um eventual menor acesso às informações científicas por parte dos Republicanos, mas simplesmente pelo fato do assunto ter tomado contornos políticos que levaram os dois partidos a se posicionar em campos opostos, forçando um grande número de eleitores Republicanos a ter de optar (até de forma inconsciente) entre aceitar racionalmente as opiniões dos especialistas no assunto ou simplesmente recusá-las e se comportar, então, como um bom e confiável membro de sua “tribo” política. 

A compreensão desse comportamento tribal inerente ao ser humano e a proposição de um ferramental prático que possibilite a formação de consensos mínimos entre as diferentes tribos modernas é o foco do excelente livro “Moral Tribes – Emotion, Reason and the Gap Between Us and Them”, de Joshua Greene (Penguin Books, 2013). Por ser um assunto excepcionalmente denso, é um tanto complicado resumir os conceitos desenvolvidos ao longo das 360 páginas uma forma acessível sem perder os pontos principais, mas como a imensa maioria das pessoas dificilmente terá acesso a ele, acho que vale a pena fazer uma tentativa de transmitir pelo menos a ideia básica. 



1. Moral como adaptação evolutiva

Depois de Darwin, a moral humana mostrou-se um enigma científico. A teoria da seleção natural podia explicar muitas coisas sobre os seres humanos: a inteligência, a fala e o caminhar sobre duas pernas são adaptações evolutivas com benefícios claros. Entretanto, alguns aspectos de comportamento inatos observados não só nos seres humanos, mas também em nossos parentes mais próximos (chimpanzés), pareciam especialmente intrigantes, como a capacidade para empatia desde a primeira infância, um determinado grau de altruísmo e a disposição para a cooperação com outros indivíduos. Se o objetivo final de um organismo seria a máxima propagação de seus genes (ver os comentários sobre o clássico de Richard Dawkins, “O Gene Egoísta”, em https://paginaemblanco.blogspot.com/2016/04/genes-memes-e-richard-dawkins.html), qual o papel evolutivo desse tipo de comportamento cooperativo? A resposta é que, tanto humanos quanto chimpanzés, são seres eminentemente sociais - grande parte do sucesso da raça humana deriva justamente de sua capacidade de cooperação. Nesse sentido, tanto a fala quanto as noções básicas de não-agressão, altruísmo e empatia passam a fazer sentido, viabilizando a formação de grupos relativamente amplos e aumentando as chances de sobrevivência e reprodução dos membros quando comparadas às de indivíduos isolados. Na interpretação de Greene, é justamente a esse conjunto de comportamentos socialmente desejáveis (éticos) e que em grande medida possibilitam a convivência harmoniosa em grupos, que damos o nome genérico de “moral”: 

“Moral é um conjunto de adaptações psicológicas que possibilitam a indivíduos naturalmente egoístas capturar os benefícios da cooperação com outros.” 

Emerge como consequência imediata desse conceito de moral, portanto, a seguinte questão: As nossas noções básicas de comportamento moral são uma adaptação evolutiva, surgida como um sistema de freios contra comportamentos exclusivamente egoístas e que têm a importante função de orientar o comportamento em situações específicas em que é do interesse de um indivíduo colocar o “nós” à frente do “eu”. Deve, portanto, haver uma estrutura em nosso cérebro que tenha evoluído biologicamente para incorporar essa função, certo? Sim. 

Alguns anos atrás eu publiquei nesse blog um comentário sobre o livro “Rápido e Devagar” de Daniel Kahneman (https://paginaemblanco.blogspot.com/2014/06/rapido-e-devagar.html). Kahneman demonstra como o cérebro humano opera em dois modos diferentes e complementares: um modo “automático” extremamente rápido e intuitivo e um modo “manual”, mais lento e racional. Segundo Greene, boa parte de nossas noções básicas de moral vêm justamente do modo “automático”: nosso repúdio natural a matar outra pessoa ou a deixar uma criança desconhecida se afogar, por exemplo. Ao ver uma criança se afogando em uma piscina, nenhum ser humano mentalmente saudável para e considera o estrago que um mergulho vai fazer no seu terno novo – simplesmente se joga na água para salvá-la. Esse reflexo que induz a algumas ações moralmente perfeitas é inerente ao ser humano e vem justamente do sistema de resposta rápida do cérebro. 

Assumamos, então, que a moralidade básica seja uma evolução biológica que emergiu como indutora de comportamento cooperativo entre os seres humana. Essa inovação biológica teria se estabelecido milhares de anos atrás, em um ambiente em que os seres humanos cooperavam ainda em pequena escala, em grupos reduzidos. Fazia sentido biológico para um indivíduo neste momento a cooperação dentro de seu grupo ou tribo, mas o que ocorria quando dois grupos se encontravam e disputavam um determinado espaço? Era de se esperar a deflagração de um conflito em que o grupo mais forte subjugaria o grupo mais fraco, tomando seus estoques de comida, suas mulheres e animais. 

Mas porque a cooperação entre grupos não faria sentido biológico? Ao mesmo tempo que um nível limitado de cooperação dentro de um grupo poderia ser benéfico para a difusão do pool de genes de seus membros, a cooperação mais ampla entre grupos (universal) já passa a ser claramente inconsistente com os princípios de competição e “sobrevivência do mais apto” que governam a evolução por seleção natural. Deste modo, uma vez que se aceita a moral como uma adaptação biológica, decorre que ela teria que evoluir de modo a incentivar dois tipos de comportamento aparentemente antagônicos, mas coerentes em termos evolutivos: como um dispositivo capaz de induzir comportamento que privilegie o “nós” em detrimento do “eu”, mas simultaneamente como um dispositivo para priorizar o “nós” contra o “eles”. Harmonia dentro do grupo. Conflito entre os grupos. 

2. Meta-moralidade 

Considere-se agora a explosão populacional dos seres humanos nos últimos poucos milhares de anos, em que passamos de menos de 10 milhões de caçadores/coletores para mais de 7 bilhões pessoas habitando um mundo industrializado e altamente conectado. É uma mudança ambiental radical e repentina (numa escala de tempo evolutivo), que os nossos dispositivos “morais” biológicos simplesmente não conseguem acompanhar. Em outras palavras, a moral “natural” que regula nosso comportamento dentro de nossas tribos e que por muito tempo regulou o comportamento entre nossas tribos, simplesmente não é mais adequada (por mais que torcidas organizadas teimem em achar o contrário). Faz-se necessária então, segundo Greene, o estabelecimento de uma meta-moralidade que possa ser considerada aceitável e lógica pelos diversos grupos e assim ajudar a regular as relações entre eles, facilitando os consensos mínimos a que já me referi acima. 

A visão defendida por Greene em seu livro é de que a solução está no Utilitarismo, uma doutrina ética desenvolvida por Jeremy Bentham e John Stuart Mill no século XIX. Basicamente, o Utilitarismo define uma ação como “boa” (moral) quando ela resulta em um aumento líquido do nível de “felicidade” no mundo e “má” quando suas consequências reduzem esse nível. Para um utilitarista, a ação correta a ser tomada em qualquer circunstância pode ser calculada examinando-se as prováveis consequências das várias linhas de ação possíveis, sendo a ação certa (moralmente preferível), aquela com maior probabilidade de resultar em maior “felicidade” líquida à humanidade, ou, como colocado por Greene, com maior probabilidade de melhorar a experiência humana. Em suma, em situações de disputa entre duas visões antagônicas de dois grupos diferentes, as pessoas deveriam simplesmente adotar a melhor solução mediante uma análise racional e isenta das consequências de ambas as opções. Ou seja, identificar e escolher a resposta que apresente a maior probabilidade de melhorar o nível geral de felicidade das pessoas. Fácil de dizer, mas extremamente difícil de implementar. 

Quando avaliavam leis e práticas comuns de sua época, Bentham e Mill consideravam apenas um ponto: isso aumenta ou diminui nossa felicidade e em que medida? Eles argumentaram, por exemplo, que a escravidão não é errada porque “Deus se opõe à escravidão”, mas sim porque qualquer benefício que ela possa trazer (em termos de produtividade econômica, por exemplo), é vastamente superado pela miséria que ela produz. Argumentaram do mesmo modo objetivo contra as restrições de direitos das mulheres, contra o tratamento brutal a animais, a favor do divórcio, a favor dos direitos dos homossexuais, pela separação entre Igreja e Estado, por acesso amplo a educação e assim por diante. Enfim, é uma filosofia de profundo pragmatismo e bastante avançada para seu tempo. 

Uma das críticas que se faz ao utilitarismo, entretanto, é de que seu pragmatismo pode levar a conclusões absurdas e a potenciais violações de direitos básicos das pessoas. Sim, é verdade. No caso da escravidão mencionado acima, por exemplo: mesmo que um cálculo utilitarista chegasse à conclusão, pelo motivo que fosse, de que a escravidão de um determinado povo pudesse aumentar a felicidade líquida da humanidade, ninguém em sã consciência apoiaria tal barbaridade. Obviamente, o que Greene defende, portanto, não é um pragmatismo absoluto, mas sim o utilitarismo respeitando restrições óbvias no que se refere à violação de direitos humanos fundamentais. 

3. Direitos como argumentos 

Mencionei acima a restrição à teoria utilitarista no caso de situações em que a melhor solução calculada implica violação de direitos humanos. Obviamente, mesmo que matar e coletar os órgãos de uma pessoa possa salvar a vida de outras cinco que esperam por um transplante, é uma solução escandalosamente errada por implicar uma violação grotesca do direito à vida do “doador”. Entretanto, Greene alerta de forma muito enfática contra o uso de “direitos” como argumento em uma discussão, uma vez que os mesmos não são consenso entre as diversas tribos e simplesmente não há nenhuma teoria universalmente aceita para se estabelecer quem tem direito exatamente a quê. 

Tome-se o tema atualmente em discussão no Brasil sobre o direito à posse e porte de armas de fogo. É um assunto extremamente politizado, em que boa parte dos argumentos gira em torno do “direito à autodefesa”. Quando um debatedor pró-armas apela para esse argumento e introduz o “direito” na discussão, não está ajudando a resolver a questão. Pelo contrário, está simplesmente fingindo que o assunto já foi resolvido por uma entidade superior em algum reino abstrato ao qual apenas ele e sua tribo teriam acesso privilegiado. A partir daí, então, nenhum argumento, estudo ou estatística que possam ser colocados na mesa pela outra parte e que contradiga sua certeza será levado em consideração. A alegação de um suposto “direito” está, portanto, sendo usada descaradamente como uma arma para encerrar a discussão. 

Evidentemente, há direitos fundamentais que desempenham papel vital em nossa vida moral. Discutir sobre direitos pode ser inútil, mas algumas vezes as discussões são mesmo inúteis. Algumas vezes o que você precisa numa controvérsia moral não é de argumentos, mas justamente de armas. E essa é a hora para se levantar e defender seus direitos. Apenas tenha em mente de que os casos em que é realmente legítimo apelar para direitos em uma discussão são a absoluta exceção e sempre desconfie de quem entra com esse tipo de arma na sala. 

4. Moeda comum e soluções de compromisso 

A partir da introdução da proposta de adoção do Utilitarismo como a meta-moralidade mais adequada para resolver os conflitos do tipo “nós” contra “eles”, Greene passa ao detalhamento aprofundado de sua teoria, usando dados de experimentos de psicologia e neurociência, grande parte deles envolvendo o clássico “Dilema do Bonde”, que já mencionei aqui em um post mais antigo sobre moral (https://paginaemblanco.blogspot.com/2011/07/criancas-e-moral.html). Passa também a buscar um instrumento que possa funcionar como uma “moeda comum” entre os diversos grupos e que forneça uma base de comparação justa para os resultados das diferentes linhas de ação possíveis em uma dada situação de conflito entre grupos com opiniões opostas. Em outras palavras, tenta identificar um conjunto de conceitos comuns que possam ajudar a quantificar alternativas e identificar de forma objetiva qual solução funciona melhor em cada situação, levando a um comprometimento geral das partes envolvidas com ela. 

Para tanto, precisamos olhar para coisas básicas que todos nós, participantes das diferentes tribos, temos em comum: em primeiro lugar, somos todos irremediavelmente unidos pelos altos e baixos da experiência humana. Todos queremos ser felizes e nenhum de nós deseja sofrer. Em segundo lugar, todos somos capazes de entender e aceitar a Regra de Ouro (não fazer aos outros o que não gostaria que fosse feito contra si) e que o bem-estar de cada um tem sempre o mesmo peso e importância dos demais. São dois conceitos básicos razoáveis e compreensíveis por todas as tribos. Juntando-se os dois, dá-se o primeiro passo na construção da “moeda comum” procurada por Greene. 

Em seguida, é necessária uma ferramenta, uma régua que ajude a determinar de forma efetiva qual é a melhor solução para uma dada questão. Existem muitas possíveis fontes de conhecimento, mas a mais confiável e aceita é, sem dúvida, a ciência. A ciência pode não ser infalível e certamente há pessoas dispostas a rejeitar de pronto o conhecimento científico quando ele vai contra suas crenças tribais. Do mesmo modo, entretanto, todo mundo adoraria apelar à ciência para legitimar suas crenças (imagine a felicidade dos criacionistas no dia em que um estudo hipotético venha a mostrar, por exemplo, que a Terra na verdade só tem alguns milhares de anos?). Nenhuma outra forma de conhecimento tem essa capacidade. Para o papel de definir qual é a “melhor solução”, portanto, devemos contar com a ciência. Isso significa buscar provas objetivas e observáveis, ter a honestidade de assumir nossa ignorância quando necessário e disposição para ouvir e aceitar a opinião tecnicamente embasada dos especialistas em assuntos que não dominamos. 

 5. Concluindo 

Apresentados estes conceitos, pode-se finalmente resumir de forma objetiva a ideia central defendida no livro: todos nós, participantes das diversas tribos (coxinhas ou mortadelas, cristãos ou ateus, carnívoros convictos ou vegetarianos), temos embutido em nossos cérebros um dispositivo moral “automático” moldado por influências biológicas, culturais e sociais variadas. Esse dispositivo fornece respostas imediatas que nos servem muito bem nos relacionamentos dentro de nossos grupos. Entretanto, nossas teias de relacionamento são hoje muito mais amplas e um comportamento obviamente moral para um determinado grupo não o é necessariamente para outro (imagine pontos como o direito ao aborto, casamento gay, ou direito à posse de armas, por exemplo). Para a resolução de conflitos morais entre grupos e a definição de políticas adequadas que tragam o melhor resultado em termos de felicidade líquida global, nosso dispositivo “automático” não nos serve na maior parte dos casos – podemos (e devemos), ouvi-lo, mas temos que estar preparados para ignorá-lo quando necessário e aprender a nos guiar pelo nosso mecanismo “manual” (lento e racional). Isso é fundamental se quisermos estabelecer comparações isentas e sem vieses entre possíveis linhas de ação, chegando a decisões embasadas, defensáveis e principalmente aceitáveis para todos os interessados. Proceder de tal modo significa o estabelecimento de soluções de compromisso, as quais podem (e normalmente irão) representar resultados sub-ótimos para cada tribo individualmente, mas que pelo menos viabilizarão os consensos mínimos de que tanto precisamos para progredir. 

Se você chegou até aqui, agradeço pela paciência. Quaisquer que sejam as tribos de que faz parte, espero que esse resumo lhe ajude a ter uma visão mais ampla dos mecanismos que estão em ação em qualquer discussão polarizada em que venha a se envolver, por exemplo, nas redes sociais. Lembre-se do exemplo da mudança climática e de como a “tribalização” de opiniões sobre fatos concretos pode levar à implantação de políticas erradas e potencialmente incoerentes em termos utilitaristas. Perceba as situações em que a sua resposta intuitiva possa estar levando a melhor sobre a sua análise racional. Informe-se. Escute os especialistas. Responda e argumente com fatos. Desconfie de quem usa “direitos” como arma em uma discussão. Mas, acima de tudo, esteja preparado também para ouvir, analisar e absorver evidências, especialmente aquelas que contradigam suas certezas mais arraigadas.