Apesar de parecer muito natural hoje, a visão da história como uma trajetória contínua de avanço cumulativo, ou o “progresso”, é um construto relativamente novo. Antes do Iluminismo, a maioria das civilizações antigas e medievais não concebia a história como uma linha ascendente, mas sim como ciclos de nascimento, apogeu, declínio e morte. Assim como um organismo vivo ou as estações do ano, as sociedades passariam por fases inevitáveis de ascensão e queda, de florescimento e decadência.
Pensadores como Platão e Aristóteles desenvolveram concepções cíclicas do tempo - acreditavam que, embora pudesse haver melhorias dentro de uma determinada época, catástrofes periódicas ou a decadência natural levariam a humanidade de volta a um estado primitivo, reiniciando o ciclo. No pensamento chinês, o conceito do "ciclo dinástico" descrevia a ascensão e queda de dinastias de maneira recorrente. Nas tradições indianas, os "Yugas" representavam eras de progressiva deterioração moral e espiritual, seguidas por uma renovação.
O Iluminismo, nos séculos XVII e XVIII, marcou uma ruptura fundamental com essas visões. Impulsionados pela Revolução Científica, os filósofos iluministas passaram a acreditar no poder da razão humana para compreender e transformar o mundo e a argumentar que a aplicação da razão e da ciência levaria a um avanço contínuo no conhecimento, na tecnologia, na moral e na organização social.
Enquanto muitas culturas antigas lamentavam a perda de uma "Idade de Ouro" em um passado distante, um tempo de perfeição e virtude do qual a humanidade teria decaído e viam a história mais como um processo de degeneração, a ideia de progresso desenvolvida pelo Iluminismo deslocou a "Idade de Ouro" do passado para o futuro. A humanidade não estava mais fadada a repetir os mesmos erros, mas poderia aprender com eles e construir um futuro cada vez melhor.
Nos últimos anos, entretanto, mais e mais autores começam a questionar essa noção de progresso contínuo. De filmes como Matrix, em que em uma fala icônica do Agente Smith situa o auge da humanidade no final do século XX a livros como “A Nova Idade das Trevas” de James Bridle, o sentimento de dúvida e uma sensação incômoda e crescente de que estamos começando a derrapar e andar para trás vêm se fazendo cada vez mais presentes.
Em meio a esse debate, o livro “The Fourth Turning is Here” do americano Neil Howe (Simon & Schuster – 2023) traz uma abordagem extremamente interessante, construída sobre o seu trabalho sobre gerações sociais e a teoria geracional Strauss-Howe. Ele apresenta uma abordagem delimitando um movimento cíclico da história americana e ocidental dividido em quatro fases (equivalentes às quatro estações da natureza): uma era primaveril de crescimento, seguida por um verão de júbilo, uma era outonal de fragmentação e um inverno de morte e regeneração.
Em conjunto, as quatro estações compõem um período denominado Saeculum, com uma duração aproximada de 85 anos, ou o tempo correspondente a uma vida humana longa (não o período de 100 anos fixos a que estamos habituados). O Saeculum é um conceito antigo de período de “memória viva”. A ideia original, vinda dos etruscos e adotada pelos romanos é a seguinte:
Um Saeculum é o tempo que leva desde um evento importante (como a fundação de uma cidade) até o momento em que a última pessoa que testemunhou esse evento morre.
Ou seja, quando não existe ninguém mais vivo para se lembrar do início, um Saeculum termina e um novo começa. Por isso, a duração de um Saeculum original não era fixa. Podia durar 80, 90 ou até 110 anos, dependendo da longevidade das pessoas daquela geração.
As estações e os arquétipos geracionais:
Dentro do ambiente da teoria geracional de Stauss-Howe, o Saeculum é usado para agrupar o padrão de quatro fases (estações) da história, cada uma com durações de 20 a 25 anos:
- A Alta (Primavera): Um período de otimismo e união após uma grande crise. As instituições são fortes e a sociedade trabalha em conjunto.
- O Despertar (Verão): A geração que cresceu na "Alta" começa a questionar as regras e valores. Há um foco em espiritualidade e individualismo.
- A Desintegração (Outono): As instituições enfraquecem e a confiança nelas diminui. O individualismo é forte e a cultura é cínica.
- A Crise (Inverno): Um período de grande perigo ou dificuldade (guerra, crise econômica, pandemia) que destrói a ordem antiga e força a sociedade a se unir para criar uma nova.
Longe de se basear em algum conceito esotérico, o ciclo determinado pelo Saeculum tem um vínculo íntimo com as sucessões de gerações humanas e o bem documentado movimento natural de conflitos intergeracionais. Para Howe, os movimentos históricos são associados a quatro arquétipos geracionais bem definidos e que se manifestam de forma cíclica e fundamentalmente relacionada ao clima social, político, econômico e espiritual de cada estação do Saeculum (ou “turning”, do título). São eles:
- Profeta (Prophet): Geração de visionários e focados em valores. Nascem após uma grande crise, em um período de conformidade social (Primavera), e amadurecem liderando um grande despertar cultural e espiritual (Verão). São os idealistas que questionam o mundo em sua juventude. No Saeculum atual, correspondem aos Boomers (nascidos de ~ 46 a 64).
- Nômade (Nomad): Pragmáticos e sobreviventes. Nascem durante um despertar cultural (Verão), e amadurecem como jovens alienados e céticos em um período de desintegração social (Outono). São realistas que aprendem a não depender de instituições. No Saeculum atual, correspondem à geração X (nascidos de ~ 65 a 80).
- Herói (Hero): Cívicos e orientados à equipe. Nascem durante a desintegração (Outono), e amadurecem como jovens otimistas e cheios de energia durante uma grande crise (Inverno). São a geração que se une para resolver os grandes problemas e construir o futuro. Atualmente, correspondem aos Millenials (nascidos de ~ 81 a 96).
- Artista (Artist): Sensíveis e conformistas. Nascem durante uma grande crise (Inverno), superprotegidos pela sociedade, e amadurecem em um mundo pós-crise (Primavera). São justos, de raciocínio complexo e focados em refinar o mundo que a geração Herói construiu. Hoje, correspondem à Geração Z (nascidos de ~ 97 a 2012).
- Herói (Hero): Cívicos e orientados à equipe. Nascem durante a desintegração (Outono), e amadurecem como jovens otimistas e cheios de energia durante uma grande crise (Inverno). São a geração que se une para resolver os grandes problemas e construir o futuro. Atualmente, correspondem aos Millenials (nascidos de ~ 81 a 96).
- Artista (Artist): Sensíveis e conformistas. Nascem durante uma grande crise (Inverno), superprotegidos pela sociedade, e amadurecem em um mundo pós-crise (Primavera). São justos, de raciocínio complexo e focados em refinar o mundo que a geração Herói construiu. Hoje, correspondem à Geração Z (nascidos de ~ 97 a 2012).
Os Saeculum na história americana:
Certo. E quais então foram estas crises que marcaram os últimos Saeculum na história americana? Até onde é possível retrocedermos para validar esse modelo da história? A abordagem de Howe delimita e analisa as crises (invernos) que encerraram os últimos 4 Saeculums:
Certo. E quais então foram estas crises que marcaram os últimos Saeculum na história americana? Até onde é possível retrocedermos para validar esse modelo da história? A abordagem de Howe delimita e analisa as crises (invernos) que encerraram os últimos 4 Saeculums:
1 - A Crise da Revolução Americana
• Período Aproximado: 1773 – 1794
• Eventos Principais: A Festa do Chá de Boston, a Guerra Revolucionária contra a Grã-Bretanha, a criação da Declaração de Independência e a caótica formação de uma nova nação sob a Constituição. Foi a crise que deu origem aos Estados Unidos.
• Geração Herói: A Geração Republicana. Eram os jovens soldados continentais e os jovens delegados que lutaram pela independência e depois ajudaram a projetar a nova república.
2. A Crise da Guerra Civil Americana
• Período Aproximado: 1860 – 1865
• Eventos Principais: A eleição de Abraham Lincoln, a secessão dos estados do Sul e a brutal Guerra Civil que ameaçou desfazer o país. Foi a crise existencial máxima da nação, que forçou uma redefinição sangrenta de sua identidade e aboliu a escravidão.
• Geração Herói: A Geração Dourada (Gilded Generation). Eram os jovens que formaram os exércitos da União e dos Confederados. Os sobreviventes se tornaram a geração que liderou a reconstrução do país e a expansão industrial do final do século XIX.
3. A Crise da Grande Depressão e Segunda Guerra Mundial
• Período Aproximado: 1929 – 1945
• Eventos Principais: A quebra da bolsa de valores de 1929, a Grande Depressão que paralisou a economia mundial, o programa de reconstrução do New Deal e, finalmente, a mobilização total do país para lutar na Segunda Guerra Mundial.
• Geração Herói: A Geração G.I. (Geração Grandiosa). Eles eram as crianças da Depressão e os jovens soldados e trabalhadores que lutaram na guerra e depois construíram a próspera América do pós-guerra, criando as instituições contra as quais os Baby Boomers mais tarde se rebelariam contra.
E, finalmente:
4. A Crise do Milênio (The Millennial Crisis)
• Período Aproximado: 2008 – presente (previsão de término por volta de 2030)
• Eventos Principais: A crise financeira global de 2008, a crescente polarização política e "guerras culturais", a ascensão do populismo, a pandemia de COVID-19 e a instabilidade geopolítica. A sociedade enfrenta uma perda de confiança total nas instituições estabelecidas (governo, mídia, finanças).
• Geração Herói: Millennials. Nascidos durante a "desintegração" dos anos 80 e 90, eles são a geração de jovens adultos que estão na linha de frente para enfrentar esses desafios e construir a nova ordem que emergirá desta crise.
A cronologia das crises:
Como já deve ter ficado claro a esta altura, estamos numa era de inverno, de crise. Dentro de um período de Crise, é possível identificar-se algumas etapas (fases) que ajudam no seu mapeamento e na compreensão de sua evolução:
Fase 1: O Período Precursor (Final do Outono) - Antes do início oficial da Crise, a sociedade já mostra sinais de decadência. O período anterior, a "Desintegração" (Outono), termina com um clima de:
• Pessimismo e cinismo: A confiança nas instituições está em seu ponto mais baixo.
• Individualismo extremo: O senso de comunidade está fraco.
• Ansiedade crescente: Há uma sensação generalizada de que o sistema está quebrado e que uma grande provação se aproxima.
Fase 2: O Catalisador (O Início do Inverno) - A Crise começa com um evento catalisador.
• O que é: Um evento chocante e urgente (geralmente uma crise financeira, uma ameaça geopolítica ou um grande conflito social) que expõe a fragilidade da ordem existente.
• Exemplos históricos: A Quebra da Bolsa de 1929; a eleição de Abraham Lincoln em 1860 (que levou à secessão); para a crise atual, a Crise Financeira de 2008 é vista como o catalisador definitivo.
• A resposta: A liderança existente tenta resolver o problema com as ferramentas do velho sistema, mas falha, aprofundando a desconfiança e acelerando o colapso da velha ordem.
Fase 3: A Regeneração (A Escalada da Crise) - Após o choque inicial, a sociedade começa a se reagrupar de novas maneiras.
• O que é: As pessoas perdem a fé nas instituições nacionais e começam a fortalecer identidades locais, tribais e comunitárias. As linhas de batalha políticas e culturais tornam-se extremamente nítidas e intransponíveis.
• A dinâmica: O conflito se intensifica. O debate político deixa de ser sobre pequenas reformas e passa a ser sobre a sobrevivência e a identidade fundamental da nação. A urgência aumenta a cada novo evento que agrava a crise.
• Na crise atual: A década de 2010 e o início da década de 2020, com a extrema polarização política, os grandes movimentos sociais e a pandemia, representam perfeitamente esta fase.
Fase 4: O Clímax (O Coração do Inverno) - Esta é a fase de perigo máximo, onde a sobrevivência da nação está em jogo.
• O que é: A Crise atinge seu ponto de ebulição. Geralmente, isso se manifesta como uma grande guerra (externa ou civil), uma convulsão econômica total ou uma perseguição autoritária que ameaça as liberdades fundamentais.
• A resposta da sociedade: O individualismo é suprimido. A nação exige sacrifício e união em torno de um objetivo comum para sobreviver. A geração Herói (neste caso, os Millennials), agora em sua juventude e início da vida adulta, é mobilizada para a ação.
• Exemplos históricos: A Segunda Guerra Mundial; os anos mais sangrentos da Guerra Civil (1863-1865).
• Status atual: Segundo a linha do tempo da teoria, nós estamos atualmente (em outubro de 2025) entrando nesta fase de clímax.
Fase 5: A Resolução (O Fim do Inverno, Início da Primavera)
A Crise termina com uma resolução clara.
• O que é: O conflito principal é resolvido. Há vencedores e perdedores. Novas instituições são construídas sobre as cinzas das antigas, e um novo consenso social e cívico é estabelecido.
• O resultado: Esta resolução define os termos da nova ordem que durará pelo próximo ciclo de 80 anos, dando início a uma nova "Alta" (Primavera).
• Exemplos históricos: A ratificação da Constituição Americana; o fim da Segunda Guerra Mundial e a criação da ordem do pós-guerra (ONU, Bretton Woods); o fim da Guerra Civil e as emendas da Reconstrução.
• Na crise atual: A resolução ainda está no futuro, prevista para ocorrer por volta do início da década de 2030.
O Clímax da crise – a Epkyrosis:
A fase final de cada crise / inverno evoca o conceito estoico de Epkyrosis - originalmente, uma conflagração universal cíclica em que o cosmos inteiro seria consumido por um fogo ou inundação purificadores, marcando o fim de um ciclo e o começo do próximo.
No modelo de Howe, a resolução da crise culmina obrigatoriamente por um momento em que os eventos se sucedem em velocidade máxima, completando a “combustão” do Saeculum velho e abrindo o caminho para o novo. Vishnu (o Preservador) se rendendo a Shiva (o Destruidor). Ou a Fase 4, acima.
Este é o momento em que estamos agora. O momento da resolução de toda essa tensão e sentimento de estagnação ou retrocesso que muitos de nós temos sentido, ainda que sem conseguir nomear.
O foco de Howe é, evidentemente, a crise americana. Para ele, a sua resolução passaria necessariamente por uma de duas vias: um grande conflito externo ou um grande conflito interno. Não há como prever como os eventos irão se desenrolar e qual serão os resultados, a Howe afirma que a América está prestes a passar por mais um momento crucial de sua história e, seja qual for o resultado, os efeitos dos eventos dos próximos anos terão reflexos profundos nas vidas de todos nós, americanos ou não.
Por fim, fica a pergunta: há como se evitar a Ekpyrosis? No modelo de Howe, uma Crise (Inverno) não é apenas sofrimento. É um "mal necessário". É o mecanismo pelo qual uma sociedade se livra de suas instituições corruptas e disfuncionais para forjar uma nova ordem cívica, mais forte e coesa. O imenso sacrifício tem um objetivo: comprar um futuro melhor e um novo ciclo de estabilidade. O resultado, no entanto, não é garantido. A teoria, baseada na agência humana, permite a possibilidade de falha. Uma crise "sem solução" significaria que a sociedade não conseguiu se unir e superar o desafio.
Isso não seria um "reset". Seria a desintegração total. O conflito não terminaria, a economia não se recuperaria, a ordem social entraria em colapso permanente. O resultado seria um estado de anarquia duradoura, uma "idade das trevas" localizada. Todo o sofrimento da crise teria sido em vão.
A Ekpyrosis, por mais terrível que seja, ocorre dentro de um sistema racional e com a promessa de uma restauração perfeita. Uma crise sem solução, na visão de Howe, é o pesadelo máximo: todo o horror de uma destruição, mas sem a redenção de um novo começo. É o sacrifício de uma geração inteira no altar do nada.
Esperemos que os líderes do mundo estejam à altura do desafio.