domingo, 28 de agosto de 2011

O argumento da simulação

Na última quinta-feira eu voltei para casa ouvindo uma entrevista de um professor da faculdade de filosofia de Oxford, Nick Bostrom, sobre um de seus artigos: "Are you living in a computer simulation?", publicado originalmente em Philosophical Quaterly (2003) Vol. 53, No. 211. A entrevista foi curta, mas muito boa e acabei baixando e lendo o artigo original.

O que segue é um resumo das ideias apresentadas no artigo, sendo que devo esclarecer que o crédito por tudo que for apresentado a partir do próximo parágrafo é do Sr. Bostrom, numa tradução livre minha. Devo também esclarecer que, ao contrário do que possa aparentar, eu não estou maluco o suficiente para acreditar na hipótese proposta (nem o Sr. Bostrom, como deixou claro na entrevista), mas é um exercício interessante e traz algumas conseqüências e deduções não-triviais que valem a leitura.

A argumentação do artigo é a de que pelo menos uma das três proposições a seguir é verdade: (1) a espécie humana tem uma alta probabilidade de ser extinta antes de atingir um estágio "pós-humano" de evolução (não se aflija; o termo "pós-humano" será explicado a seguir); (2) qualquer civilização pós-humana apresenta uma probabilidade extremamente baixa de executar simulações computacionais de sua história evolutiva ou variantes; (3) é quase certo que nós estamos vivendo em uma simulação computacional.

Para efeito do artigo, o estágio pós-humano de civilização é aquele em que a humanidade já terá adquirido a maior parte das capacidades tecnológicas que seriam possíveis de se obter dentro das limitações das leis da física, da disponibilidade de materiais e da disponibilidade de energia a que está sujeita.

Existem pelo menos duas premissas básicas que precisam ser aceitas para que a discussão possa se desenvolver: a primeira é a da "independência de substrato", que é o conceito comumente aceito na filosofia da mente (não sem deixar de gerar alguma controvérsia), que propõe que estados mentais conscientes poderiam emergir em um grupo amplo de substratos além das redes neurais naturais do cérebro, como, por exemplo, em sistemas computacionais suficientemente complexos.

A segunda é de que, apesar de atualmente não dispormos de hardware ou software suficientemente poderosos para possibilitar a criação de mentes conscientes em computadores, há argumentos bastante persuasivos de que se o progresso tecnológico continuar, estas limitações serão eventualmente superadas (e assim estarão no estágio pós-humano de evolução). O artigo apresenta uma estimativa detalhada da capacidade de processamento necessária para se rodar uma simulação realista de toda a história mental da humanidade (ao que chama de "simulação de ancestrais") e conclui que esta capacidade de processamento estará eventualmente disponível, mesmo com base apenas no que nós já sabemos sobre projetos com nanotecnologia. Uma civilização pós-humana poderia, portanto, construir um número muito grande destes computadores e estaria a seu alcance rodar simulações de ancestrais consumindo uma parcela bastante pequena dos recursos computacionais à sua disposição.

Consideradas estas duas premissas, podemos passar agora ao núcleo da argumentação do artigo: Se há uma chance considerável de que nossa civilização um dia atingirá o estágio pós-humano e rodará simulações de ancestrais, você não estaria vivendo em uma destas simulações? Esta ideia foi desenvolvida com base na argumentação abaixo:
Considerando-se que (desculpem pela notação pouco rigorosa, mas estou redigindo em html puro e não sei como conseguir subscritos, sobrescritos, etc.):

Fp = Fração de todas as civilizações tecnológicas do nível da humanidade que sobrevivem o suficiente para chegar a um estágio pós-humano;

N = Número médio de simulações de ancestrais executadas por uma civilização pós-humana;

H = Número médio de indivíduos reais que viveram em uma civilização antes dela atingir o estágio pós-humano (ou seja, o número de ancestrais);

Teríamos que a fração de observadores simulados (Fsim) com experiências humanas que vivem em simulações é igual a:

Fsim = (Fp * N * H) / [(Fp * N * H) + H]

Utilizando-se agora Fi para indicar a fração de civilizações pós-humanas que estariam efetivamente interessadas em rodar simulações de ancestrais (ou que contenham pelo menos alguns indivíduos interessados e com recursos suficientes para rodar um número significativo destas simulações), e Ni para o número médio de simulações rodadas por estas civilizações, teríamos:

N = Ni * Fi

Fsim = (Fp * Ni * Fi * H) / [( Fp * Ni * Fi * H) + H)]

e portanto:

Fsim = (Fp * Ni * Fi) / [( Fp * Ni * Fi) + 1)]

Ou seja, pelo menos uma das três proposições deve ser verdade:

(1) Fp = 0 (a notação correta é "aproximadamente igual a 0")
(2) Fi = 0 (a notação correta é "aproximadamente igual a 0")
(3) Fsim = 1 (a notação correta é "aproximadamente igual a 1")

Como pode-se ver, estas três possibilidades correspondem às três proposições iniciais do artigo. Vamos avaliar, portanto, o que significariam cada uma delas:

Se (1) for verdade, significa que a humanidade seria muito provavelmente extinta antes de atingir o estágio de desenvolvimento pós-humano (o que, me parece, pode efetivamente acontecer ).

Para que (2) seja verdade, é necessário que haja uma enorme convergência no curso da história de civilizações avançadas que as levem a não se interessar absolutamente por estas simulações, ou bani-las, por exemplo por razões éticas ou morais.

Já a proposição (3) é a mais intrigante e perturbadora, pois, se verdadeira, implicaria que a chance de você ser um ser humano simulado em uma simulação de ancestrais seria de praticamente 100%, com todas as demais conseqüências:

- A física do universo em que o computador rodando a simulação se situa pode ser ou não ser análoga à do mundo que observamos;

- Apesar de percebermos o mundo como "real", ele não estaria localizado no nível fundamental de realidade;

- Seria possível para uma sociedade simulada se tornar pós-humana? Se sim, o computador rodando a simulação original teria capacidade para empilhar uma segunda ou terceira camadas de simulação ou o programa precisaria ser encerrado antes deste estágio ser atingido? (afinal a necessidade de processamento cresceria exponencialmente para se simular uma civilização pós-humana);

- No caso de sua morte dentro da simulação, a sua consciência poderia ser transferida para uma nova simulação, não poderia? Vida após a morte?

- Os indivíduos executando a simulação teriam onisciência e onipotência sobre ela e seriam capazes de intervir recompensando ou punindo comportamentos, talvez com base em critérios morais. Em função da incerteza fundamental que permeia o pensamento desenvolvido neste artigo, mesmo a civilização-base original teria então razões para se comportar eticamente. O fato de que haveria uma razão forte como esta para o comportamento moral poderia, portanto, gerar um círculo virtuoso e, em última instância, uma espécie de imperativo moral universal.

Devidamente compreendida, portanto, a possibilidade de (3) ser verdade não deveria nos fazer "ficar malucos" ou largar nossos trabalhos e planos para o futuro. A principal importância empírica de (3) parece estar no seu papel quando consideradas as outras duas alternativas. Podemos esperar que (3) seja verdade, pois reduziria a possibilidade de (1), mas, como as restrições computacionais fazem com que seja provável que uma simulação seja abortada antes de atingir o estágio pós-humano, nossa melhor esperança seria de que (2) seja a hipótese verdadeira.

De qualquer modo, a não ser que nós estejamos realmente vivendo em uma simulação, nossos descendentes quase que certamente jamais rodarão uma simulação de ancestrais.

Alguns links sobre o assunto:

Nick Bostrom: http://www.nickbostrom.com/

Artigo "Are you linving in a computer simulation?": http://www.simulation-argument.com/

Entrevista (disponível em mp3): http://philosophybites.com/2011/08/nick-bostrom-on-the-simulation-argument.html

Finalmente, se você gostou deste texto, dê uma olhada no que escrevi sobre a hipótese de Boltzmann em: http://paginaemblanco.blogspot.com/2009/07/boltzmann-e-dilbert.html

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Dia dos Pais

Mais uma vez o presentinho do Leo de Dia dos Pais prova que ele está no caminho certo para ser o novo Leonardo da Vinci:



Bom, o desenho pode não estar lá uma Mona Lisa, mas que ele escreve ao contrário como o da Vinci, isso escreve!

Feliz dia dos Pais (atrasado)!

sábado, 6 de agosto de 2011

O horror! O horror! Coração das Trevas e Apocalypse Now

"Coração das Trevas" (Heart of Darkness), de Joseph Conrad é um livro publicado originalmente em 1902, que narra a viagem de Marlow, um marinheiro inglês, por volta de 1890 no Congo Belga, em busca de um negociante de marfim chamado Kurtz. Apesar de continuar mandando grandes remessas de marfim regularmente, Kurtz está há tempo demais sem contato com a sua empresa contratante e Marlow comanda um barco a vapor pelo Rio Congo, a sua procura. Em boa parte, o livro é uma versão paralela de uma viagem que o próprio Conrad (que era marinheiro), fez pelo mesmo rio.



É um clássico que eu nunca havia lido antes, mas que peguei durante uma semana de férias em julho. Basta dizer que é fantástico. Está dividido em 3 partes, sendo que na primeira Marlow conta como foi contratado pela companhia para ser capitão de um barco a vapor no Rio Congo e seus primeiros meses na África; a segunda narra sua viagem complicada pelo rio até chegar à base de Kurtz; e a terceira finalmente descreve seu encontro com ele.

Visto apenas como uma narração de viagem, o texto já é espetacular, mas é a forma como evolui e como os personagens vão mudando ao longo da estória, bem como as questões éticas e morais envolvidas que fazem com que seja realmente excepcional. Imagine um sonho, em que as seus sentidos e percepções começam normais e aos poucos vão perdendo a lógica e a coerência (inclusive temporal), até que evolui para um pesadelo surreal. É mais ou menos esta a sensação que tive ao ler "Coração das Trevas".

O final do livro, em especial o encontro de Marlow com Kurtz, me deixou com uma sensação estranha de já ter visto a cena em algum lugar e aos poucos fui associando com o final de "Apocalypse Now". Bom, a Blockbuster não tinha o filme para alugar, então comprei uma cópia. Vou reproduzir aqui a sinopse da caixa:

"A história se passa em 1969 e acompanha a viagem do capitão Benjamin Willard (Martin Sheen) rumo ao universo paralelo e perturbador do coronel Walter Kurtz (Marlon Brando) (...)"

Kurtz e Kurtz? Dãã. E eu achando que tinha feito uma associação muito esperta. Mas continuei:

"(...) Baseado no livro de Joseph Conrad, Heart of Darkness, Apocalypse Now explora a insensatez, a insanidade, e o dilema moral da Guerra do Vietnã".

Ou seja, descobri o óbvio que todo mundo já sabia: Coppola fez uma versão do livro para o cinema. Pelo menos eu tenho a desculpa de que só tinha 5 anos quando o filme foi lançado, então não era obrigado a saber. Mas resolvi assistir a "Apocalypse Now" de novo, para comparar. O paralelo é nítido:

O choque de duas culturas diferentes; a dificuldade de Willard, assim como de Marlow em fazer o seu trabalho em um lugar em que ninguém parece levar nada a sério; a óbvia viagem por um rio numa selva hostil; o ataque com flechas aos barcos de ambos; o Arlequim; as cabeças; o horror.

Não vou entrar nos detalhes para não estragar o livro ou o filme para quem não viu, mas várias das falas são exatamente as mesmas e a semelhança deixa a experiência de ver o filme logo após a leitura do livro muito interessante.

Assim como dizer que "Coração das Trevas" é ótimo, elogiar "Apocalypse Now" é chover no molhado, mas a idéia de Coppola de pegar o livro e adaptar desta forma é uma prova de genialidade e merece os aplausos, Oscars e a Palma de Ouro que recebeu. Mesmo as cenas que não têm equivalência com passagens do livro são sensacionais, como o ataque de helicópteros ao som de "Cavalgada das Valquírias" ou a do encontro com o tigre. Difícil dizer o que é melhor: o livro ou o filme.

Fica a recomendação para a leitura de "Coração das Trevas", mas não deixe de ver "Apocalipse Now" logo em seguida. A experiência é única. E um desafio: veja se consegue identificar Harrison Ford e Laurence Fishburne no filme.