Alguns meses atrás, indiquei para alguns amigos próximos o novo livro do Jonathan Haidt, “The Anxious Generation” (A Geração Ansiosa), que estava para ser lançado no Brasil e que achei que pudesse vir a fazer algum barulho. Coincidência ou não, algumas semanas após a publicação do livro por aqui, a discussão sobre o seu tópico principal (o uso de celulares por crianças e adolescentes), esquentou a ponto de se tornar tema de cartilhas do governo e de projetos de lei visando a proibição nas escolas. O tema é controverso, mas o livro de Haidt trata-o de forma bem clara e objetiva. O que segue é um breve resumo dos seus pontos principais e que imagino/espero que possam servir como um incentivo à sua leitura, pelo menos para aqueles com filhos ainda pequenos – não é o meu caso, mas afirmo com sinceridade que realmente gostaria de ter tido acesso a ele uns 10/12 anos atrás.
Para dar algum contexto: comentei anteriormente 2 livros de Haidt muito interessantes: “A Mente Moralista” e “The Coddling of the American Mind”. Neste segundo em particular (ainda pré-pandemia), Haidt já abordava como a cultura moderna de superproteção de crianças e adolescentes poderia ser danosa. Agora, em “A Geração Ansiosa” o ponto central evolui para como a combinação entre a superproteção no mundo real com a contraditória completa ausência de proteção no mundo virtual vem afetando uma geração inteira, apresentando uma análise bastante criteriosa dos efeitos desse binômio sobre as crianças e adolescentes nascidos após 1995 (a Geração Z), a primeira a conviver ainda na puberdade com a convergência de 4 movimentos tecnológicos:
- A disseminação da internet de banda larga;
- A introdução do iPhone em 2007 e a revolução dos smartphones;
- O advento de uma nova era hiperviral das mídias sociais a partir de 2009, especificamente após a inclusão e disseminação dos botões de “like” e “share”;
- A introdução das câmeras frontais nos celulares em 2010 e a aquisição do Instagram pelo Facebook em 2012, com o consequente aumento exponencial do número de adolescentes postando selfies cuidadosamente editadas.
Haidt vê a geração Z como a cobaia em um processo de mudança radical da forma de crescer, um experimento social global em que crianças e adolescentes de repente passaram a carregar de forma constante em seus bolsos um portal de acesso a um mundo de interações complexas e instantâneas, completamente diferentes das proporcionadas de forma gradativa pela experiência tradicional de crescer em um mundo de relações reais. Um portal para um ambiente potencialmente muito tóxico, em que o menor deslize pode ser visto e criticado por uma infinidade de pessoas muito rapidamente, resultando em uma sensação de ansiedade permanente.
O livro é dividido em 4 partes: na primeira, Haidt apresenta e explica as tendências relacionadas à degradação da saúde mental entre os adolescentes a partir de 2010; a segunda parte trata da natureza da infância e de como conseguimos estragá-la; a terceira detalha os malefícios da nova infância baseada em telefones; e a quarta parte apresenta sugestões práticas sobre o que devemos fazer, já, se pretendemos tentar reverter ou pelo menos parar de aprofundar os danos nas nossas famílias, escolas e sociedade.
A primeira parte inclui uma gama bastante ampla de dados e gráficos de evolução da saúde mental dos adolescentes e jovens americanos e retrata um aumento muito significativo dos diagnósticos de ansiedade e depressão nesta faixa etária. Mais grave ainda, indicam um acréscimo nítido nas taxas de suicídio de meninos e meninas americanos de 10 a 14 anos entre 2010 e 2020 (alarmantes 91% no caso dos meninos e 167% no caso das meninas).
Mais do que correlação, Haidt supõe uma relação direta de causalidade entre a evolução dos smartphones com acesso contínuo a mídias sociais e jogos online e a degradação da saúde mental dos adolescentes. Foca especialmente nos efeitos sobre as meninas, cujas taxas de ansiedade, depressão e automutilação aumentaram de forma bem mais acentuada que as dos meninos, uma diferença relacionada diretamente com o tipo de experiência digital dos dois gêneros, sendo meninas usuárias mais intensivas de redes sociais, enquanto meninos usuários mais intensos de jogos, mas também muito afetados pelo consumo de outros tipos de conteúdo como pornografia online.
Apesar dos dados quantitativos apresentados serem majoritariamente referentes aos EUA, Haidt também analisa resultados de pesquisas similares feitas em diversos outros países, extrapolando o problema para um fenômeno global e não restrito aos países de língua inglesa.
A segunda parte explica e defende a importância do aprendizado social e da brincadeira livre na infância, mas também retoma a condenação de Haidt à cultura de superproteção (“safetyism”) disseminada desde os anos 90 e que vem limitando o acesso das crianças a uma série de experiências necessárias para seu crescimento saudável.
É um tema de que tratou de forma extensa em “The Coddling of the American Mind”, mas que aqui ganha o reforço de uma abordagem nova e bem interessante de correlação da infância com o conceito de antifragilidade cunhado por Nassim Nicolas Taleb em “Antifrágil”.
Por “antifrágil” entenda-se um grupo de especial de entidades que não quebram quando submetidas a esforços ou impactos externos (como as frágeis) e nem simplesmente resistem a eles (como as resilentes), mas que, por outro lado, beneficiam-se da exposição a esforços e impactos e saem melhores que antes da experiência; precisam, mesmo, desta exposição para desenvolverem-se. É neste grupo que Haidt inclui as crianças e adolescentes.
A cultura de superproteção (ou “safetyism” na terminologia do livro) e a consequente privação das crianças das experiências necessárias no mundo real para seu pleno desenvolvimento, já era denunciada por Haidt como uma das causas fundamentais da crise de saúde mental da Geração Z. Entretanto, ela não é nova e cabe dizer que os Millenials também foram submetidos a este mesmo bloqueio de experiências, embora sem as mesmas consequências. Seria apenas após o advento de um segundo grande bloqueador de experiências – o smartphone – e a combinação de ambos os efeitos, que o problema começaria a ficar realmente grave.
Na terceira parte, Haidt detalha as formas pelas quais a experiência da infância mudou radicalmente com o advento dos smartphones e indica quatro consequências danosas de seu uso por crianças:
- Privação social – o uso dos telefones derrubou de forma gritante a quantidade de tempo de interação dos adolescentes com amigos no mundo real, de uma média de 122 minutos por dia em 2012 nos EUA para 67 minutos em 2019;
- Privação de sono – o sono dos adolescentes piorou em termos de quantidade e qualidade em todo o mundo desenvolvido, diretamente associado ao uso dos smartphones e tendo como efeitos depressão, irritabilidade, ansiedade e déficit cognitivo;
- Fragmentação da atenção – com notificações constantes na tela, muitos adolescentes são incapazes de ter mais do que 5 ou 10 minutos para pensar sem serem interrompidos;
- Vício – as técnicas avançadas de captura de atenção e retenção do tráfico online aplicadas nos sistemas das mídias sociais transformam crianças e adolescentes em “heavy users” muito rapidamente.
São detalhadas em profundidade as especificidades dos efeitos do uso excessivo de celulares e mídias sociais sobre meninas e meninos e os impactos em aprendizado escolar e social. É também estabelecida a já mencionada relação causal entre as mídias sociais e o incremento dos casos de ansiedade e depressão.
Até aqui, o livro pode ser visto como uma contribuição complementar a outras obras anteriores que abordam o problema, como “A Era do Capitalismo de Vigilância” de Shoshana Zuboff ou “Nação Dopamina” de Anna Lembke, mas é finalmente na quarta e última parte, que chega-se ao ponto em que o texto abandona a passividade de um simples relato e passa a apresentar a suas propostas práticas para a reversão deste cenário.
Qualquer pai que já tenha tentado resistir a dar a seus filhos um primeiro celular sabe exatamente a armadilha que enfrentou: ninguém quer ver seu pré-adolescente afundado em um telefone, mas o argumento de que “Todo mundo tem celular. Preciso de um. Se eu não tiver o meu estarei excluído de tudo.” é simplesmente forte demais – o medo de ver seu filho convertido em um pária social faz com que mesmo os pais mais relutantes acabem cedendo e dando a seus filhos celulares em idades cada vez mais baixas.
A saída sugerida por Haidt para essa armadilha passa por diversas dimensões: do estabelecimento de leis e normas governamentais que protejam menores no ambiente online e forcem as empresas de tecnologia a estabelecer mecanismos eficientes de verificação etária, até a ação coletiva e coordenada dos pais com a comunidade escolar no sentido de banir telefones nas escolas e abrir espaços para brincadeiras livres, sem supervisão. Haidt apresenta recomendações detalhadas para diferentes faixas etárias:
- de 0 a 24 meses – uso limitado a chat com parentes distantes, sendo que dos 18 aos 24 meses pode ser feita a introdução limitada de programação educacional com supervisão adulta.
- de 2 a 5 anos – Limite de tempo de tela não-educacional a 1 hora por dia de semana e máximo de 3 horas nos finais de semana. Telas desligadas em todas as refeições e passeios e não utilização de telas como “chupetas eletrônicas”. Telas desligadas e removidas do quarto entre 30 a 60 minutos antes da hora de dormir.
- de 6 a 12 anos – Em linhas gerais, não mais do que 2 horas por dia de tempo de tela recreacional, mas o foco deve ser mais em maximizar o tempo de atividades presenciais e no tempo de sono do que em minimizar o tempo de tela, mantendo-se uma observação constante com relação a sinais de uso problemático de tecnologia.
- de 13 a 18 anos – Celulares devem ser dados apenas a partir do ensino médio. Contas em mídias sociais não devem ser abertas antes dos 16 anos. Escolas devem ser ambientes sem telefones.
Note que alguns parágrafos atrás eu mencionei um binômio: enquanto parte da crise de saúde mental da geração Z é relacionada com o advento e onipresença dos smartphones, o outro pilar está na cultura de superproteção. Esse ponto é bastante estressado por Haidt no livro e muitas de suas sugestões sobre como lidar com o problema envolvem intervenções visando o aumento da autonomia e independência das crianças e adolescentes, como oferecer aos filhos oportunidades de se deslocar de forma autônoma pela cidade, dar responsabilidades nas atividades domésticas, oferecer às crianças espaços para brincadeiras livres e sem supervisão e encorajar nos adolescentes viagens e passeios com os amigos.
É aí, a meu ver que a questão se complica. Embora imagine ser relativamente fácil chegar-se a um consenso sobre proibição de celulares em escolas (como pode ser visto hoje na facilidade com que o projeto de lei a respeito do tema une bancadas de campos ideológicos opostos e deva ser aprovado com alguma rapidez), quando se aborda as questões relacionadas à cultura de superproteção, a conversa azeda.
É um tema muito mais controverso e que suscita discussões acaloradas mesmo dentro do ambiente familiar: você pode ser completamente a favor de conceder autonomia a seus filhos e sugerir que sua filha vá à escola de bicicleta alguns dias na semana, enquanto seu parceiro pode ser radicalmente contrário, por exemplo. Você pode achar uma boa ideia seu filho de 12 anos sair da escola para almoçar fora alguns dias, mas os pais dos amigos dele podem não concordar. São opiniões que têm a ver desde com a forma como você foi criado até com os medos e fobias que foi incorporando aos poucos, ao longo da sua experiência de vida. Têm a ver com legislações bem intencionadas, mas mal interpretadas. Têm a ver com a sua preocupação com as opiniões de seus vizinhos e amigos.
O grande mérito de Haidt, à parte as observações e recomendações referentes ao uso de tecnologia, está justamente em trazer luz e questionar um tipo de comportamento superprotetor que poucos veem como um problema, mas que traz consequências sérias.
É como sinaliza o subtítulo de “The Coddling of The American Mind”: boas intenções e péssimas ideias podem estar condenando uma geração ao fracasso e já passou da hora de agirmos. A proibição de celulares nas escolas, se aprovada, será um grande passo, mas não nos iludamos imaginando que será a solução por si só.
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