sábado, 4 de outubro de 2025

The Fourth Turning is Here - O que as Estações da História nos dizem sobre como e quando esta crise vai acabar


Apesar de parecer muito natural hoje, a visão da história como uma trajetória contínua de avanço cumulativo, ou o “progresso”, é um construto relativamente novo. Antes do Iluminismo, a maioria das civilizações antigas e medievais não concebia a história como uma linha ascendente, mas sim como ciclos de nascimento, apogeu, declínio e morte. Assim como um organismo vivo ou as estações do ano, as sociedades passariam por fases inevitáveis de ascensão e queda, de florescimento e decadência.

Pensadores como Platão e Aristóteles desenvolveram concepções cíclicas do tempo - acreditavam que, embora pudesse haver melhorias dentro de uma determinada época, catástrofes periódicas ou a decadência natural levariam a humanidade de volta a um estado primitivo, reiniciando o ciclo. No pensamento chinês, o conceito do "ciclo dinástico" descrevia a ascensão e queda de dinastias de maneira recorrente. Nas tradições indianas, os "Yugas" representavam eras de progressiva deterioração moral e espiritual, seguidas por uma renovação. 

O Iluminismo, nos séculos XVII e XVIII, marcou uma ruptura fundamental com essas visões. Impulsionados pela Revolução Científica, os filósofos iluministas passaram a acreditar no poder da razão humana para compreender e transformar o mundo e a argumentar que a aplicação da razão e da ciência levaria a um avanço contínuo no conhecimento, na tecnologia, na moral e na organização social. 

Enquanto muitas culturas antigas lamentavam a perda de uma "Idade de Ouro" em um passado distante, um tempo de perfeição e virtude do qual a humanidade teria decaído e viam a história mais como um processo de degeneração, a ideia de progresso desenvolvida pelo Iluminismo deslocou a "Idade de Ouro" do passado para o futuro. A humanidade não estava mais fadada a repetir os mesmos erros, mas poderia aprender com eles e construir um futuro cada vez melhor. 

Nos últimos anos, entretanto, mais e mais autores começam a questionar essa noção de progresso contínuo. De filmes como Matrix, em que em uma fala icônica do Agente Smith situa o auge da humanidade no final do século XX a livros como “A Nova Idade das Trevas” de James Bridle, o sentimento de dúvida e uma sensação incômoda e crescente de que estamos começando a derrapar e andar para trás vêm se fazendo cada vez mais presentes. 

Em meio a esse debate, o livro “The Fourth Turning is Here” do americano Neil Howe (Simon & Schuster – 2023) traz uma abordagem extremamente interessante, construída sobre o seu trabalho sobre gerações sociais e a teoria geracional Strauss-Howe. Ele apresenta uma abordagem delimitando um movimento cíclico da história americana e ocidental dividido em quatro fases (equivalentes às quatro estações da natureza): uma era primaveril de crescimento, seguida por um verão de júbilo, uma era outonal de fragmentação e um inverno de morte e regeneração. 



Em conjunto, as quatro estações compõem um período denominado Saeculum, com uma duração aproximada de 85 anos, ou o tempo correspondente a uma vida humana longa (não o período de 100 anos fixos a que estamos habituados). O Saeculum é um conceito antigo de período de “memória viva”. A ideia original, vinda dos etruscos e adotada pelos romanos é a seguinte: 

Um Saeculum é o tempo que leva desde um evento importante (como a fundação de uma cidade) até o momento em que a última pessoa que testemunhou esse evento morre. 

Ou seja, quando não existe ninguém mais vivo para se lembrar do início, um Saeculum termina e um novo começa. Por isso, a duração de um Saeculum original não era fixa. Podia durar 80, 90 ou até 110 anos, dependendo da longevidade das pessoas daquela geração. 

As estações e os arquétipos geracionais: 

Dentro do ambiente da teoria geracional de Stauss-Howe, o Saeculum é usado para agrupar o padrão de quatro fases (estações) da história, cada uma com durações de 20 a 25 anos: 

- A Alta (Primavera): Um período de otimismo e união após uma grande crise. As instituições são fortes e a sociedade trabalha em conjunto. 

- O Despertar (Verão): A geração que cresceu na "Alta" começa a questionar as regras e valores. Há um foco em espiritualidade e individualismo. 

- A Desintegração (Outono): As instituições enfraquecem e a confiança nelas diminui. O individualismo é forte e a cultura é cínica. 

- A Crise (Inverno): Um período de grande perigo ou dificuldade (guerra, crise econômica, pandemia) que destrói a ordem antiga e força a sociedade a se unir para criar uma nova. 

Longe de se basear em algum conceito esotérico, o ciclo determinado pelo Saeculum tem um vínculo íntimo com as sucessões de gerações humanas e o bem documentado movimento natural de conflitos intergeracionais. Para Howe, os movimentos históricos são associados a quatro arquétipos geracionais bem definidos e que se manifestam de forma cíclica e fundamentalmente relacionada ao clima social, político, econômico e espiritual de cada estação do Saeculum (ou “turning”, do título). São eles:

- Profeta (Prophet): Geração de visionários e focados em valores. Nascem após uma grande crise, em um período de conformidade social (Primavera), e amadurecem liderando um grande despertar cultural e espiritual (Verão). São os idealistas que questionam o mundo em sua juventude. No Saeculum atual, correspondem aos Boomers (nascidos de ~ 46 a 64). 

- Nômade (Nomad): Pragmáticos e sobreviventes. Nascem durante um despertar cultural (Verão), e amadurecem como jovens alienados e céticos em um período de desintegração social (Outono). São realistas que aprendem a não depender de instituições. No Saeculum atual, correspondem à geração X (nascidos de ~ 65 a 80).

- Herói (Hero): Cívicos e orientados à equipe. Nascem durante a desintegração (Outono), e amadurecem como jovens otimistas e cheios de energia durante uma grande crise (Inverno). São a geração que se une para resolver os grandes problemas e construir o futuro. Atualmente, correspondem aos Millenials (nascidos de ~ 81 a 96).

- Artista (Artist): Sensíveis e conformistas. Nascem durante uma grande crise (Inverno), superprotegidos pela sociedade, e amadurecem em um mundo pós-crise (Primavera). São justos, de raciocínio complexo e focados em refinar o mundo que a geração Herói construiu. Hoje, correspondem à Geração Z (nascidos de ~ 97 a 2012). 

Os Saeculum na história americana:

Certo. E quais então foram estas crises que marcaram os últimos Saeculum na história americana? Até onde é possível retrocedermos para validar esse modelo da história? A abordagem de Howe delimita e analisa as crises (invernos) que encerraram os últimos 4 Saeculums:

1 - A Crise da Revolução Americana 
• Período Aproximado: 1773 – 1794 
• Eventos Principais: A Festa do Chá de Boston, a Guerra Revolucionária contra a Grã-Bretanha, a criação da Declaração de Independência e a caótica formação de uma nova nação sob a Constituição. Foi a crise que deu origem aos Estados Unidos. 
• Geração Herói: A Geração Republicana. Eram os jovens soldados continentais e os jovens delegados que lutaram pela independência e depois ajudaram a projetar a nova república. 

2. A Crise da Guerra Civil Americana 
• Período Aproximado: 1860 – 1865 
• Eventos Principais: A eleição de Abraham Lincoln, a secessão dos estados do Sul e a brutal Guerra Civil que ameaçou desfazer o país. Foi a crise existencial máxima da nação, que forçou uma redefinição sangrenta de sua identidade e aboliu a escravidão. 
• Geração Herói: A Geração Dourada (Gilded Generation). Eram os jovens que formaram os exércitos da União e dos Confederados. Os sobreviventes se tornaram a geração que liderou a reconstrução do país e a expansão industrial do final do século XIX. 

3. A Crise da Grande Depressão e Segunda Guerra Mundial 
• Período Aproximado: 1929 – 1945 
• Eventos Principais: A quebra da bolsa de valores de 1929, a Grande Depressão que paralisou a economia mundial, o programa de reconstrução do New Deal e, finalmente, a mobilização total do país para lutar na Segunda Guerra Mundial. 
• Geração Herói: A Geração G.I. (Geração Grandiosa). Eles eram as crianças da Depressão e os jovens soldados e trabalhadores que lutaram na guerra e depois construíram a próspera América do pós-guerra, criando as instituições contra as quais os Baby Boomers mais tarde se rebelariam contra. 

E, finalmente: 

4. A Crise do Milênio (The Millennial Crisis) 
• Período Aproximado: 2008 – presente (previsão de término por volta de 2030) 
• Eventos Principais: A crise financeira global de 2008, a crescente polarização política e "guerras culturais", a ascensão do populismo, a pandemia de COVID-19 e a instabilidade geopolítica. A sociedade enfrenta uma perda de confiança total nas instituições estabelecidas (governo, mídia, finanças). 
• Geração Herói: Millennials. Nascidos durante a "desintegração" dos anos 80 e 90, eles são a geração de jovens adultos que estão na linha de frente para enfrentar esses desafios e construir a nova ordem que emergirá desta crise. 

A cronologia das crises: 

Como já deve ter ficado claro a esta altura, estamos numa era de inverno, de crise. Dentro de um período de Crise, é possível identificar-se algumas etapas (fases) que ajudam no seu mapeamento e na compreensão de sua evolução: 

Fase 1: O Período Precursor (Final do Outono) - Antes do início oficial da Crise, a sociedade já mostra sinais de decadência. O período anterior, a "Desintegração" (Outono), termina com um clima de: 

• Pessimismo e cinismo: A confiança nas instituições está em seu ponto mais baixo. 
• Individualismo extremo: O senso de comunidade está fraco. 
• Ansiedade crescente: Há uma sensação generalizada de que o sistema está quebrado e que uma grande provação se aproxima. 

Fase 2: O Catalisador (O Início do Inverno) - A Crise começa com um evento catalisador. 

• O que é: Um evento chocante e urgente (geralmente uma crise financeira, uma ameaça geopolítica ou um grande conflito social) que expõe a fragilidade da ordem existente. 
• Exemplos históricos: A Quebra da Bolsa de 1929; a eleição de Abraham Lincoln em 1860 (que levou à secessão); para a crise atual, a Crise Financeira de 2008 é vista como o catalisador definitivo. 
• A resposta: A liderança existente tenta resolver o problema com as ferramentas do velho sistema, mas falha, aprofundando a desconfiança e acelerando o colapso da velha ordem. 

Fase 3: A Regeneração (A Escalada da Crise) - Após o choque inicial, a sociedade começa a se reagrupar de novas maneiras. 

• O que é: As pessoas perdem a fé nas instituições nacionais e começam a fortalecer identidades locais, tribais e comunitárias. As linhas de batalha políticas e culturais tornam-se extremamente nítidas e intransponíveis. 
• A dinâmica: O conflito se intensifica. O debate político deixa de ser sobre pequenas reformas e passa a ser sobre a sobrevivência e a identidade fundamental da nação. A urgência aumenta a cada novo evento que agrava a crise. 
• Na crise atual: A década de 2010 e o início da década de 2020, com a extrema polarização política, os grandes movimentos sociais e a pandemia, representam perfeitamente esta fase. 

Fase 4: O Clímax (O Coração do Inverno) - Esta é a fase de perigo máximo, onde a sobrevivência da nação está em jogo. 

• O que é: A Crise atinge seu ponto de ebulição. Geralmente, isso se manifesta como uma grande guerra (externa ou civil), uma convulsão econômica total ou uma perseguição autoritária que ameaça as liberdades fundamentais. 
• A resposta da sociedade: O individualismo é suprimido. A nação exige sacrifício e união em torno de um objetivo comum para sobreviver. A geração Herói (neste caso, os Millennials), agora em sua juventude e início da vida adulta, é mobilizada para a ação. 
• Exemplos históricos: A Segunda Guerra Mundial; os anos mais sangrentos da Guerra Civil (1863-1865). 
• Status atual: Segundo a linha do tempo da teoria, nós estamos atualmente (em outubro de 2025) entrando nesta fase de clímax. 

Fase 5: A Resolução (O Fim do Inverno, Início da Primavera) A Crise termina com uma resolução clara. 

• O que é: O conflito principal é resolvido. Há vencedores e perdedores. Novas instituições são construídas sobre as cinzas das antigas, e um novo consenso social e cívico é estabelecido. 
• O resultado: Esta resolução define os termos da nova ordem que durará pelo próximo ciclo de 80 anos, dando início a uma nova "Alta" (Primavera). 
• Exemplos históricos: A ratificação da Constituição Americana; o fim da Segunda Guerra Mundial e a criação da ordem do pós-guerra (ONU, Bretton Woods); o fim da Guerra Civil e as emendas da Reconstrução. 
• Na crise atual: A resolução ainda está no futuro, prevista para ocorrer por volta do início da década de 2030. 

O Clímax da crise – a Epkyrosis: 

A fase final de cada crise / inverno evoca o conceito estoico de Epkyrosis - originalmente, uma conflagração universal cíclica em que o cosmos inteiro seria consumido por um fogo ou inundação purificadores, marcando o fim de um ciclo e o começo do próximo. 

No modelo de Howe, a resolução da crise culmina obrigatoriamente por um momento em que os eventos se sucedem em velocidade máxima, completando a “combustão” do Saeculum velho e abrindo o caminho para o novo. Vishnu (o Preservador) se rendendo a Shiva (o Destruidor). Ou a Fase 4, acima.

Este é o momento em que estamos agora. O momento da resolução de toda essa tensão e sentimento de estagnação ou retrocesso que muitos de nós temos sentido, ainda que sem conseguir nomear. 

O foco de Howe é, evidentemente, a crise americana. Para ele, a sua resolução passaria necessariamente por uma de duas vias: um grande conflito externo ou um grande conflito interno. Não há como prever como os eventos irão se desenrolar e qual serão os resultados, a Howe afirma que a América está prestes a passar por mais um momento crucial de sua história e, seja qual for o resultado, os efeitos dos eventos dos próximos anos terão reflexos profundos nas vidas de todos nós, americanos ou não. 

Por fim, fica a pergunta: há como se evitar a Ekpyrosis? No modelo de Howe, uma Crise (Inverno) não é apenas sofrimento. É um "mal necessário". É o mecanismo pelo qual uma sociedade se livra de suas instituições corruptas e disfuncionais para forjar uma nova ordem cívica, mais forte e coesa. O imenso sacrifício tem um objetivo: comprar um futuro melhor e um novo ciclo de estabilidade. O resultado, no entanto, não é garantido. A teoria, baseada na agência humana, permite a possibilidade de falha. Uma crise "sem solução" significaria que a sociedade não conseguiu se unir e superar o desafio. 

Isso não seria um "reset". Seria a desintegração total. O conflito não terminaria, a economia não se recuperaria, a ordem social entraria em colapso permanente. O resultado seria um estado de anarquia duradoura, uma "idade das trevas" localizada. Todo o sofrimento da crise teria sido em vão. 

A Ekpyrosis, por mais terrível que seja, ocorre dentro de um sistema racional e com a promessa de uma restauração perfeita. Uma crise sem solução, na visão de Howe, é o pesadelo máximo: todo o horror de uma destruição, mas sem a redenção de um novo começo. É o sacrifício de uma geração inteira no altar do nada. 

Esperemos que os líderes do mundo estejam à altura do desafio.

domingo, 29 de setembro de 2024

A Geração Ansiosa / The Anxious Generation – How the Great Rewiring of Childhood Is Causing an Epidemic of Mental Illness

Alguns meses atrás, indiquei para alguns amigos próximos o novo livro do Jonathan Haidt, “The Anxious Generation” (A Geração Ansiosa), que estava para ser lançado no Brasil e que achei que pudesse vir a fazer algum barulho. Coincidência ou não, algumas semanas após a publicação do livro por aqui, a discussão sobre o seu tópico principal (o uso de celulares por crianças e adolescentes), esquentou a ponto de se tornar tema de cartilhas do governo e de projetos de lei visando a proibição nas escolas. O tema é controverso, mas o livro de Haidt trata-o de forma bem clara e objetiva. O que segue é um breve resumo dos seus pontos principais e que imagino/espero que possam servir como um incentivo à sua leitura, pelo menos para aqueles com filhos ainda pequenos – não é o meu caso, mas afirmo com sinceridade que realmente gostaria de ter tido acesso a ele uns 10/12 anos atrás. 


Para dar algum contexto: comentei anteriormente 2 livros de Haidt muito interessantes: “A Mente Moralista”  e “The Coddling of the American Mind”. Neste segundo em particular (ainda pré-pandemia), Haidt já abordava como a cultura moderna de superproteção de crianças e adolescentes poderia ser danosa. Agora, em “A Geração Ansiosa” o ponto central evolui para como a combinação entre a superproteção no mundo real com a contraditória completa ausência de proteção no mundo virtual vem afetando uma geração inteira, apresentando uma análise bastante criteriosa dos efeitos desse binômio sobre as crianças e adolescentes nascidos após 1995 (a Geração Z), a primeira a conviver ainda na puberdade com a convergência de 4 movimentos tecnológicos: 

- A disseminação da internet de banda larga; 

- A introdução do iPhone em 2007 e a revolução dos smartphones; 

- O advento de uma nova era hiperviral das mídias sociais a partir de 2009, especificamente após a inclusão e disseminação dos botões de “like” e “share”; 

- A introdução das câmeras frontais nos celulares em 2010 e a aquisição do Instagram pelo Facebook em 2012, com o consequente aumento exponencial do número de adolescentes postando selfies cuidadosamente editadas. 

Haidt vê a geração Z como a cobaia em um processo de mudança radical da forma de crescer, um experimento social global em que crianças e adolescentes de repente passaram a carregar de forma constante em seus bolsos um portal de acesso a um mundo de interações complexas e instantâneas, completamente diferentes das proporcionadas de forma gradativa pela experiência tradicional de crescer em um mundo de relações reais. Um portal para um ambiente potencialmente muito tóxico, em que o menor deslize pode ser visto e criticado por uma infinidade de pessoas muito rapidamente, resultando em uma sensação de ansiedade permanente. 

O livro é dividido em 4 partes: na primeira, Haidt apresenta e explica as tendências relacionadas à degradação da saúde mental entre os adolescentes a partir de 2010; a segunda parte trata da natureza da infância e de como conseguimos estragá-la; a terceira detalha os malefícios da nova infância baseada em telefones; e a quarta parte apresenta sugestões práticas sobre o que devemos fazer, já, se pretendemos tentar reverter ou pelo menos parar de aprofundar os danos nas nossas famílias, escolas e sociedade. 

A primeira parte inclui uma gama bastante ampla de dados e gráficos de evolução da saúde mental dos adolescentes e jovens americanos e retrata um aumento muito significativo dos diagnósticos de ansiedade e depressão nesta faixa etária. Mais grave ainda, indicam um acréscimo nítido nas taxas de suicídio de meninos e meninas americanos de 10 a 14 anos entre 2010 e 2020 (alarmantes 91% no caso dos meninos e 167% no caso das meninas). Mais do que correlação, Haidt supõe uma relação direta de causalidade entre a evolução dos smartphones com acesso contínuo a mídias sociais e jogos online e a degradação da saúde mental dos adolescentes. Foca especialmente nos efeitos sobre as meninas, cujas taxas de ansiedade, depressão e automutilação aumentaram de forma bem mais acentuada que as dos meninos, uma diferença relacionada diretamente com o tipo de experiência digital dos dois gêneros, sendo meninas usuárias mais intensivas de redes sociais, enquanto meninos usuários mais intensos de jogos, mas também muito afetados pelo consumo de outros tipos de conteúdo como pornografia online. 

Apesar dos dados quantitativos apresentados serem majoritariamente referentes aos EUA, Haidt também analisa resultados de pesquisas similares feitas em diversos outros países, extrapolando o problema para um fenômeno global e não restrito aos países de língua inglesa. A segunda parte explica e defende a importância do aprendizado social e da brincadeira livre na infância, mas também retoma a condenação de Haidt à cultura de superproteção (“safetyism”) disseminada desde os anos 90 e que vem limitando o acesso das crianças a uma série de experiências necessárias para seu crescimento saudável. 

É um tema de que tratou de forma extensa em “The Coddling of the American Mind”, mas que aqui ganha o reforço de uma abordagem nova e bem interessante de correlação da infância com o conceito de antifragilidade cunhado por Nassim Nicolas Taleb em “Antifrágil”. Por “antifrágil” entenda-se um grupo de especial de entidades que não quebram quando submetidas a esforços ou impactos externos (como as frágeis) e nem simplesmente resistem a eles (como as resilentes), mas que, por outro lado, beneficiam-se da exposição a esforços e impactos e saem melhores que antes da experiência; precisam, mesmo, desta exposição para desenvolverem-se. É neste grupo que Haidt inclui as crianças e adolescentes. 

A cultura de superproteção (ou “safetyism” na terminologia do livro) e a consequente privação das crianças das experiências necessárias no mundo real para seu pleno desenvolvimento, já era denunciada por Haidt como uma das causas fundamentais da crise de saúde mental da Geração Z. Entretanto, ela não é nova e cabe dizer que os Millenials também foram submetidos a este mesmo bloqueio de experiências, embora sem as mesmas consequências. Seria apenas após o advento de um segundo grande bloqueador de experiências – o smartphone – e a combinação de ambos os efeitos, que o problema começaria a ficar realmente grave. 

Na terceira parte, Haidt detalha as formas pelas quais a experiência da infância mudou radicalmente com o advento dos smartphones e indica quatro consequências danosas de seu uso por crianças:

- Privação social – o uso dos telefones derrubou de forma gritante a quantidade de tempo de interação dos adolescentes com amigos no mundo real, de uma média de 122 minutos por dia em 2012 nos EUA para 67 minutos em 2019; 

- Privação de sono – o sono dos adolescentes piorou em termos de quantidade e qualidade em todo o mundo desenvolvido, diretamente associado ao uso dos smartphones e tendo como efeitos depressão, irritabilidade, ansiedade e déficit cognitivo; 

- Fragmentação da atenção – com notificações constantes na tela, muitos adolescentes são incapazes de ter mais do que 5 ou 10 minutos para pensar sem serem interrompidos; 

- Vício – as técnicas avançadas de captura de atenção e retenção do tráfico online aplicadas nos sistemas das mídias sociais transformam crianças e adolescentes em “heavy users” muito rapidamente. 

São detalhadas em profundidade as especificidades dos efeitos do uso excessivo de celulares e mídias sociais sobre meninas e meninos e os impactos em aprendizado escolar e social. É também estabelecida a já mencionada relação causal entre as mídias sociais e o incremento dos casos de ansiedade e depressão. 

Até aqui, o livro pode ser visto como uma contribuição complementar a outras obras anteriores que abordam o problema, como “A Era do Capitalismo de Vigilância” de Shoshana Zuboff ou “Nação Dopamina” de Anna Lembke, mas é finalmente na quarta e última parte, que chega-se ao ponto em que o texto abandona a passividade de um simples relato e passa a apresentar a suas propostas práticas para a reversão deste cenário. 

Qualquer pai que já tenha tentado resistir a dar a seus filhos um primeiro celular sabe exatamente a armadilha que enfrentou: ninguém quer ver seu pré-adolescente afundado em um telefone, mas o argumento de que “Todo mundo tem celular. Preciso de um. Se eu não tiver o meu estarei excluído de tudo.” é simplesmente forte demais – o medo de ver seu filho convertido em um pária social faz com que mesmo os pais mais relutantes acabem cedendo e dando a seus filhos celulares em idades cada vez mais baixas. 

A saída sugerida por Haidt para essa armadilha passa por diversas dimensões: do estabelecimento de leis e normas governamentais que protejam menores no ambiente online e forcem as empresas de tecnologia a estabelecer mecanismos eficientes de verificação etária, até a ação coletiva e coordenada dos pais com a comunidade escolar no sentido de banir telefones nas escolas e abrir espaços para brincadeiras livres, sem supervisão. Haidt apresenta recomendações detalhadas para diferentes faixas etárias: 

- de 0 a 24 meses – uso limitado a chat com parentes distantes, sendo que dos 18 aos 24 meses pode ser feita a introdução limitada de programação educacional com supervisão adulta. 

- de 2 a 5 anos – Limite de tempo de tela não-educacional a 1 hora por dia de semana e máximo de 3 horas nos finais de semana. Telas desligadas em todas as refeições e passeios e não utilização de telas como “chupetas eletrônicas”. Telas desligadas e removidas do quarto entre 30 a 60 minutos antes da hora de dormir. 

- de 6 a 12 anos – Em linhas gerais, não mais do que 2 horas por dia de tempo de tela recreacional, mas o foco deve ser mais em maximizar o tempo de atividades presenciais e no tempo de sono do que em minimizar o tempo de tela, mantendo-se uma observação constante com relação a sinais de uso problemático de tecnologia. 

- de 13 a 18 anos – Celulares devem ser dados apenas a partir do ensino médio. Contas em mídias sociais não devem ser abertas antes dos 16 anos. Escolas devem ser ambientes sem telefones. 

Note que alguns parágrafos atrás eu mencionei um binômio: enquanto parte da crise de saúde mental da geração Z é relacionada com o advento e onipresença dos smartphones, o outro pilar está na cultura de superproteção. Esse ponto é bastante estressado por Haidt no livro e muitas de suas sugestões sobre como lidar com o problema envolvem intervenções visando o aumento da autonomia e independência das crianças e adolescentes, como oferecer aos filhos oportunidades de se deslocar de forma autônoma pela cidade, dar responsabilidades nas atividades domésticas, oferecer às crianças espaços para brincadeiras livres e sem supervisão e encorajar nos adolescentes viagens e passeios com os amigos. 

É aí, a meu ver que a questão se complica. Embora imagine ser relativamente fácil chegar-se a um consenso sobre proibição de celulares em escolas (como pode ser visto hoje na facilidade com que o projeto de lei a respeito do tema une bancadas de campos ideológicos opostos e deva ser aprovado com alguma rapidez), quando se aborda as questões relacionadas à cultura de superproteção, a conversa azeda. É um tema muito mais controverso e que suscita discussões acaloradas mesmo dentro do ambiente familiar: você pode ser completamente a favor de conceder autonomia a seus filhos e sugerir que sua filha vá à escola de bicicleta alguns dias na semana, enquanto seu parceiro pode ser radicalmente contrário, por exemplo. Você pode achar uma boa ideia seu filho de 12 anos sair da escola para almoçar fora alguns dias, mas os pais dos amigos dele podem não concordar. São opiniões que têm a ver desde com a forma como você foi criado até com os medos e fobias que foi incorporando aos poucos, ao longo da sua experiência de vida. Têm a ver com legislações bem intencionadas, mas mal interpretadas. Têm a ver com a sua preocupação com as opiniões de seus vizinhos e amigos. 

O grande mérito de Haidt, à parte as observações e recomendações referentes ao uso de tecnologia, está justamente em trazer luz e questionar um tipo de comportamento superprotetor que poucos veem como um problema, mas que traz consequências sérias. É como sinaliza o subtítulo de “The Coddling of The American Mind”: boas intenções e péssimas ideias podem estar condenando uma geração ao fracasso e já passou da hora de agirmos. A proibição de celulares nas escolas, se aprovada, será um grande passo, mas não nos iludamos imaginando que será a solução por si só.

sexta-feira, 21 de abril de 2023

A Era do Capitalismo de Vigilância – A Luta por um Futuro Humano na Nova Fronteira do Poder

Tenho uma amiga de escola que até hoje tem o costume de enviar SMS (!) para os amigos em aniversários, Natal e outras datas importantes. Não usa WhatsApp. Não tem, nem nunca teve nenhuma conta em redes sociais. Deve ter um endereço de e-mail, mas não tenho certeza. Ela vive de forma quase analógica e é provavelmente a única pessoa que conheço com mais de 7 anos de idade que consegue operar de forma off-line no mundo de hoje. Também é, provavelmente, uma das últimas pessoas imunes à mineração de seu comportamento pelas Big Tech, ou, como denominados por Shoshana Zuboff em sua obra mais famosa, pelos “Capitalistas de Vigilância”.

“A Era do Capitalismo de Vigilância” (Intrínseca, 2021) é um tapa na cara dividido em 3 partes, ao longo de 800 páginas e é, em síntese, um alerta sobre o modelo de negócio inédito adotado pelas grandes empresas de tecnologia (principalmente Facebook, Microsoft e Google) ao longo dos últimos 20 anos e as mudanças sociais profundas que este modelo está operando de forma incremental e sutil, quase imperceptível, mas cujo impacto tem potencial para ser tão significativo quanto os efeitos da revolução causada pelo advento do capitalismo industrial no final do século XIX.


A primeira parte é dedicada a detalhar como emergiu o modelo atual de receita destas empresas, que utiliza como matéria-prima o que Zuboff batizou de “superávit comportamental”. É mais um dos vários termos novos introduzidos no livro. Na verdade, muitos conceitos apresentados são novos e navegam por temas ainda muito pouco explorados, de modo que a sensação da leitura é muito parecida com a de ler-se o “Gene Egoísta” de Dawkins, por exemplo – traz a certeza de que temos nas mãos um texto que apenas começa a arranhar um tema, mas que está destinado a se tornar sua obra de referência.

Superávit comportamental refere-se a todos os dados colaterais ou subprodutos gerados por nossa atividade digital. Por exemplo, no caso de uma busca feita no Google, seriam dados como as palavras usadas, a forma como a busca é formulada, pontuação, localização, padrão de cliques ou tempo de visualização. Inicialmente eram dados coletados e armazenados a esmo sem um objetivo específico, mas que passaram a ser insumos para a construção de perfis detalhados dos usuários, valiosos do ponto de vista comercial e cuja mineração, em última instância, tornou-se a base do modelo de negócios das Big Tech.

“(...) com frequência as pessoas declaram que o usuário é o “produto”. Isso também é incorreto (...), os usuários não são produtos (...), são fontes de suprimento de matéria-prima.”

Zuboff correlaciona o momento da descoberta do valor do superávit comportamental com o estouro da bolha das ponto-com em 2000, quando a pressão do mercado por resultados no Vale do Silício impôs uma espécie de “estado de exceção” ao Google e lhe conferiu uma espécie de carta-branca moral para justificar o abandono de sua antipatia histórica por anúncios e sua posição contrária ao financiamento de mecanismos de busca por meio de publicidade (que implicaria em parcialidade), bem como legitimar perante equipe e mercado uma etapa de busca ativa de novas fontes de receita e de um diferencial competitivo que garantisse sua lucratividade e perpetuação.

Para tanto, a empresa recorreu no final de 2000 à até então minúscula equipe de 7 pessoas do AdWords e deu o primeiro passo na captura de valor do superávit comportamental através da vinculação dos anúncios não mais a simples palavras-chave, mas sim ao banco de dados individuais de cada usuário que somente o Google tinha à disposição. Essa abordagem única foi identificada como a melhor maneira de garantir relevância aos usuários e proporcionar um valor inédito aos seus verdadeiros clientes, os anunciantes.

A partir deste ponto chave na história das Big Tech, o livro prossegue detalhando o aumento da sofisticação e da profundidade dos mecanismos de coleta / mineração do superávit comportamental ao longo dos anos seguintes, bem como descrevendo o contexto histórico que possibilitou o florescimento e fortalecimento praticamente incontestado deste mecanismo até chegar ao próximo estágio da evolução do modelo, descrito na parte II do livro, que trata da migração do mesmo do ambiente on-line puro para o mundo real.

“(...) o superávit comportamental deve ser vasto, mas também variado. Esse esforço deve ser elaborado tendo em vista duas dimensões: a primeira, extensão das operações de extração do mundo virtual para o “real” (...). Os capitalistas de vigilância compreenderam que sua riqueza futura dependeria de novas rotas de suprimento (...). A extensão quer estar na sua corrente sanguínea e na sua cama, na sua conversa do café da manhã, no seu meio de transporte, na sua corrida, na sua geladeira, na sua vaga de estacionamento, na sua sala de estar”

Inicialmente a mineração de dados comportamentais ocorria apenas no ambiente da internet e destinava-se especificamente ao direcionamento de publicidade. Entretanto, com o aumento da sofisticação da tecnologia e da difusão da prática da extração destes dados para fora da internet tradicional, através de dispositivos do mundo real agora conectados à rede, um novo imperativo de diferenciação surgiu como forma de resposta à pressão por receitas sobre as empresas do setor, o da predição de comportamento. Pense em como hoje você entra no seu carro e seu celular já sabe para onde você costuma ir em determinados horários a cada dia da semana e já lhe mostra o tempo previsto para seu destino sem que você precise introduzir nenhuma informação no sistema de GPS, por exemplo. Agora imagine o valor comercial desta informação.

A parte II prossegue abordando a terceira e mais audaciosa fase da evolução do modelo: a de modificação do comportamento. São fornecidos diversos exemplos e apresentados casos como, por exemplo, o de um teste conduzido pelo Facebook nas eleições americanas de 2010, em que um grupo de pesquisadores manipulou os feeds de notícias de 61 milhões de usuários exibindo uma mensagem incentivando os mesmos a votar. Esta mensagem incluía um botão “Eu Votei”, com contador, mas em duas diferentes versões. Parte dos usuários recebeu a mensagem com o botão e um contador simples, enquanto parte recebeu o contador acompanhado de fotos de amigos que já haviam clicado no botão. Os resultados demonstraram uma probabilidade 2% maior destes últimos clicarem no botão e a estimativa foi de que esta ação tenha levado cerca de 340.000 pessoas adicionais a votar nesta eleição específica. (O estudo é descrito no artigo “A61-Million-Person Experiment in Social Influence and Political Mobilization”)


Finalmente, a parte III se dedica a acompanhar a fase seguinte, em que não mais o indivíduo, mas a própria sociedade passa a ser o novo objeto de extração e controle e a analisar as consequências do avanço deste novo poder “instrumentário” (como denominado por Zuboff), traçando um paralelo entre a evolução do Capitalismo Industrial ao longo do século XX e seus impactos em diversas dimensões (social, política, ambiental, econômica, etc.), e a evolução já percebida e a esperada do Capitalismo de Vigilância e suas possíveis consequências.

É um texto longo, profundo e muito bem construído, que busca alertar a sociedade para o ineditismo da situação que temos enfrentado ao longo dos últimos 20 anos e que nos pegou de surpresa, sem termos ainda arcabouços éticos, morais ou legais capazes de lidar adequadamente com os graves desafios que a emergência deste novo modelo de negócio nos impõe, mas que temos assimilado com surpreendente naturalidade e sido induzidos a aceitar como normal e inevitável. A humanidade se depara com uma situação inédita, que está evoluindo de forma muito acelerada e o livro propõe justamente o questionamento de sua suposta “normalidade”. Para tanto, faz um trabalho extraordinário dando nome e forma a muitos aspectos e conceitos envolvidos nesse novo modelo econômico e nos equipa com um ferramental conceitual poderoso, que abre caminho através da fumaça dos supostos benefícios de um mundo hiperconectado e possibilita vermos com clareza o que estamos realmente queimando nesse processo.


PS – Ao escrever o último parágrafo, abri o meu navegador para checar a grafia correta de uma palavra. Recebi a mensagem abaixo. Aparentemente sigo forte na minha condição de matéria-prima...



sábado, 10 de abril de 2021

Hello, Brasil! e outros ensaios

Faleceu em 30 de março o psicanalista, ensaísta e escritor italiano Contardo Calligaris, autor de “Hello, Brasil! e outros ensaios – Psicanálise da estranha civilização brasileira” (Editora Três Estrelas, 2017), uma excepcional análise da sociedade brasileira feita a partir de sua condição de imigrante europeu do final dos anos 80. É um livro pequeno, mas repleto de insights muito interessantes sobre diversas peculiaridades do povo brasileiro que são ao mesmo tempo estranhas aos olhos de quem nos visita e invisíveis a nós mesmos, de tão enraizadas que estão em nosso comportamento. 



O livro não chega a ser extraordinariamente complexo, mas alguns dos ensaios requerem um certo esforço e não são simples de se resumir em alguns parágrafos, o que vou deliberadamente evitar fazer aqui. Os temas englobam colonização, os paralelos entre os processos colonizatórios nas Américas do Sul e do Norte, os desejos de emigração, criminalidade, corrupção, consumo, aniversários e filhos entre outros. Vou me limitar a reproduzir alguns pequenos trechos, como exemplo do que se pode esperar encontrar nas análises de Calligaris: 

Sobre a autoimagem do país: “Este país não presta”. É uma frase corriqueira (...). Causa-me estranheza ainda a facilidade com que, mesmo em situações que não são extremas, é enunciado – como prova e demonstração – um projeto de emigração: aqui não presta, vamos embora para um lugar que preste. (...) A frase pareceria natural se fosse dita por um estrangeiro, mas, como enunciação dos próprios brasileiros, ela surpreende.” 

Sobre a relação com as crianças: “O Brasil me aparece como o paraíso das crianças. (...) De um hotel cinco estrelas é exigido que haja uma sala de jogos eletrônicos para as crianças e que se prevejam atividades infantis. Assusta-me a insistência com que se defende a necessidade de “lúdico” na aprendizagem (...). Em algumas das melhores escolas privadas, decorar as lições é considerado um ato de tortura impingido às crianças. Assombra-me a importância que assume a programação das crianças na vida cotidiana (...). O adulto brasileiro parece constantemente preocupado com o prazer das crianças. Para ser breve: no Brasil, a criança é rei”. 

Sobre contracepção: “A primeira vez que uma paciente brasileira me falou da decisão, tomada de comum acordo pelo casal, de seu marido sofrer uma vasectomia, pensei que estava lidando com alguma patologia do laço conjugal. Aos poucos, como se sucedessem as vasectomias projetadas e feitas de fato, eu me daria conta de que tal cirurgia era uma prática culturalmente comum. Não sem que eu estranhasse.” 

Sobre a obsessão em “tirar a cidadania” de outros países: “O apelo ao pai antigo encontra sua expressão mais simples nas filas diante dos consulados para pedir nacionalidade e passaporte aos países da origem da linhagem que emigrou. É uma corrida de obstáculos burocráticos e um investimento considerável de tempo e dinheiro (...). Quase todos dizem que fazem isso para os filhos, de maneira que possam viajar mais facilmente, estudar “lá fora”, conseguir trabalho e sobretudo viver em segurança. O efeito mais provável é um enfraquecimento suplementar da identidade nacional dos filhos, os quais cresceriam com a sensação de que o que os pais querem para eles é que tenham uma chance de ir embora...” 

“Em 2005, produziu certo alvoroço a notícia de que a primeira-dama brasileira, Marisa Letícia, obtivera a cidadania italiana (...). Acrescentou, porém que tinha feito os trâmites por insistência dos filhos, para “dar uma oportunidade” aos meninos. Era no mínimo curioso: os filhos do presidente do Brasil confirmavam que a “oportunidade” para eles estava na Itália, não aqui”. 

E por aí vai. É uma obra sincera, sem meias-palavras, que chama à reflexão e abre os olhos para alguns vícios e vieses importantes de nosso comportamento como sociedade. Merece ser lido com atenção. 

OBS.: Contardo Calligaris participou da edição de 2019 do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, que versou sobre o tema “Os Sentidos da Vida”. O resumo de sua conferência e um vídeo curto podem ser acessados no link:

sábado, 17 de outubro de 2020

Everybody Lies – Big Data, new data and what the Internet can tell us about who we really are

Uns 15 anos atrás, Steven Levitt e Stephen Dubner publicaram "Freakonomics", um best-seller que aplicava a abordagem dos economistas a análise de assuntos do dia a dia, do comportamento de corretores de imóveis e lutadores de sumô, a causas não-convencionais para queda da criminalidade em Nova York. Foi um grande sucesso e influenciou o cientista de dados Seth Stephens-Davidowitz a buscar dar o passo seguinte com "Everybody Lies", basicamente uma versão turbinada de "Freakonomics".



A diferença fundamental entre eles, entretanto, é que Davidowitz tem hoje acesso a uma massa infinitamente maior de dados e ferramentas muito mais poderosas para analisá-los. E isso faz toda a diferença.

Uma das fontes utilizadas nas análises de Davidowitz, por exemplo, está nos dados consolidados de buscas realizadas no Google – ele avalia os números de perguntas similares feitas sobre um determinado tema em diferentes regiões e momentos para analisar tópicos como a eficácia de discursos do Obama em diminuir o preconceito contra muçulmanos, a prevalência do racismo em diferentes regiões americanas ou as neuras sexuais dos internautas.

Mas porque o título “Everybody Lies”? Bom, a grande sacada de Davidowitz foi perceber que a tela de consulta do Google e o comportamento on-line em parte dos sites funcionam como um grande “soro da verdade”. Todo mundo (normal) se preocupa com a própria imagem no dia a dia, no Facebook, no médico ou mesmo ao responder uma pesquisa de opinião, mas se comporta de forma bem mais livre e autêntica quando não tem ninguém olhando, inclusive quando faz suas buscas no Google ou navega de forma anônima. Cruzar os dados de uma rede social com outras bases que não sejam enviesadas pela preocupação com imagem pode resultar em incoerências surpreendentes e bem interessantes. Por exemplo: é muito provável que ao pesquisar a sua rede de amigos no Facebook, você vá encontrar mais gente seguindo publicações como “The Economist” ou “Harvard Business Review” do que “Caras”, mas quando você for até a casa deles, qual revista vai encontrar?

O livro foi publicado em 2017, ou seja, antes do sucesso atual de “The Social Dilemma” na Netflix. Entretanto, um de seus insights mais interessantes é justamente com relação ao consenso de que a internet e as redes sociais estariam agravando a polarização política. Com base em um estudo realizado pelos economistas Matt Gentzkow e Jesse Shapiro em 2011, que coletou dados sobre o comportamento de um grande número de americanos de diferentes linhas ideológicas e avaliou o grau da segregação política na internet, Davidowitz sugere uma abordagem diferente:

Nós tendemos a ter um número muito maior de amigos no Facebook do que na vida real. Nossa lista de contatos nas redes sociais incluem pessoas como aqueles conhecidos do tempo de escola com quem nunca mais falamos, vizinhos de condomínio, ex-colegas de trabalho, o amigo do primo que conhecemos 10 anos atrás e mais um monte de gente que nunca convidaríamos para jantar em casa ou para um churrasco no final de semana. Entretanto, todo esse pessoal publica seus comentários e links e frequenta a nossa timeline diariamente, fazendo com que sejamos expostos a opiniões e assuntos a que dificilmente teríamos acesso dentro da nossa bolha de relacionamentos próximos, que tendem naturalmente a ser muito mais alinhados com as nossas próprias posições e realidade. Em suma, a internet acaba se tornando um ponto de contato entre pessoas com perfis muito mais diversos do aquelas com quem temos contato diário no mundo físico. Você pode ser um liberal que passa sua manhã com uma esposa e filhos liberais, a tarde com seus colegas de trabalho liberais, volta para casa ouvindo a rádio liberal a que se acostumou, mas à noite, quando acessa o Facebook, tem contato com os posts conservadores radicais de seu ex-colega de escola. Esta será provavelmente sua maior exposição a opiniões conservadoras no dia todo e este contraponto não é algo necessariamente ruim. 

“Everybody Lies” apresenta diversas análises de dados similares a esta, que desafiam o senso comum em áreas como comportamento, esportes, educação e política. É uma obra curta, mas muito interessante. Vale a pena.  

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

The Righteous Mind – Why Good People are Divided by Politics and Religion

Ainda em 2012, o doutor em psicologia Jonathan Haidt publicou um livro extraordinário buscando responder à pergunta que hoje todos nós nos fazemos diariamente ao navegar pelas timelines de nossas redes sociais: Por que tanta gente inteligente e bem intencionada pode ter posições tão diferentes sobre temas fundamentais como política? E, principalmente, por que essas pessoas desenvolvem com tanta facilidade a plena convicção de que os de posição diferente da sua são completos idiotas?

“The Righteous Mind – Why Good People are Divided by Politics and Religion” (Vintage, 2013), tem um título particularmente difícil de traduzir. A edição brasileira recebeu o título de “A Mente Moralista”, embora eu considere que “Righteous” tenha um sentido um pouco mais forte do que “Moralista”. Segundo o dicionário de Cambridge, por exemplo, se refere a “pessoas que se comportam de uma forma moralmente correta”, mas acho que a intenção de Haidt no título era dar uma abordagem mais próxima de “self-righteous”... ou “pessoas que acreditam que suas ideias e comportamentos são moralmente superiores ao de outras pessoas”. Para quem leu Pollyanna, um bom exemplo seria a tia solteirona de Pollyanna. Ela é “self-righteous” até os ossos. Imagine-a vivendo hoje no Brasil com uma conta de Whatsapp na mão...



O livro é dividido em três partes, cada uma associada a uma metáfora diferente desenvolvida para resumir um conceito fundamental.

PARTE I - “Intuições vêm primeiro, raciocínio vem depois”

A primeira parte é “Intuições vêm primeiro, raciocínio vem depois”. Ela compara a mente humana a um elefante enorme com um “condutor” (um cavaleiro) em cima dele, mas cujo trabalho é servir ao elefante e não vice-versa. Nessa metáfora, o elefante representa nosso pensamento intuitivo, enquanto o condutor representa o pensamento racional. Esta dualidade  é bastante similar à defendida por Daniel Kahneman em “Rápido e Devagar”, mas a abordagem é um pouco diferente. Para Haidt, é nítido que o chefe é o elefante (emoção / intuição) e que o condutor (razão) existe para servi-lo.

“Portanto, se você quer mudar a opinião de alguém com relação a um tema moral ou político, fale primeiro com o elefante. Se você pedir às pessoas para acreditar em algo que viola as suas intuições, elas irão dedicar todos os seus esforços a encontrar uma saída – uma razão para duvidar de seus argumentos ou conclusões. E vão conseguir quase sempre.”

Especialmente quando as discussões se tornam hostis, o elefante começa a se inclinar para longe do oponente e o condutor (seu servo) vai trabalhar freneticamente para encontrar dados e motivos “racionais” para refutar todos os argumentos que receber. Inclusive no Google.

Um dos insights mais importantes apresentados nesta parte é justamente neste sentido e é bem pouco intuitivo: apesar de gostarmos de nos ver como criatura racionais, nossa consciência opera em grande medida com o objetivo descarado de persuadir em vez de analisar. A conclusão deprimente de cientistas cognitivos que pesquisaram o raciocínio humano ao longo de anos é que ele se desenvolveu como uma ferramenta para nos ajudar a argumentar, persuadir e manipular outras pessoas e não para nos ajudar a “descobrir a verdade”. Esta conclusão se aplica inclusive no nosso auto convencimento, ou seja, o condutor trabalha muito também para justificar e nos convencer da validade e moralidade de nossas próprias ações, preservando nossa autoimagem de boas pessoas mesmo quando temos atitudes bastante questionáveis. É por isso que o chamado “viés de confirmação” é tão poderoso e difícil de combater.

Nosso pensamento moral é muito mais como um político caçando votos do que um cientista buscando a verdade.”

Ter esse conceito em mente é fundamental para se ter uma conversa minimamente produtiva com alguém cujo elefante está apontado para um lado oposto ao seu: argumentos puramente racionais não falam ao elefante – ele responde à emoção, não à razão. Enquanto o elefante do outro não estiver sensibilizado e disposto a se inclinar pelo menos um pouco para o seu lado, não adianta nem tentar argumentar com o condutor.   

Especialmente quando se trata de temas morais ou políticos a situação se agrava um pouco mais. Nestes temas temos também uma tendência a um comportamento mais grupal do que individualista – nós aplicamos nossas habilidades de raciocínio para apoiar a posição de nosso time e para demonstrar nosso compromisso com ele, de modo que a chance de se convencer alguém em uma discussão pública na internet a mudar de ideia com relação a um ponto importante na estrutura moral de seu grupo político é completamente impossível. Desista. (especificamente sobre esse comportamento tribal, pode ser interessante conhecer também os argumentos de Joshua Greene em “Moral Tribes

PARTE II - “Há mais na moralidade do que apenas cuidado e justiça”

Nesta parte são apresentadas seis diferentes dimensões ou fundamentos do pensamento moral e a metáfora usada é a de que a mente moralista é como uma língua capaz de sentir seis tipos diferentes de gostos ou sabores.

Inicialmente, Haidt cuida de introduzir o leitor à noção de que a ética ocidental a que estamos habituados é algo bastante particular e não uma verdade universal, como somos inclinados a pensar. Para isso, nos apresenta as três principais abordagens éticas (baseadas na teoria do antropologista Richard Shweder), que permeiam o mundo contemporâneo com diferenças fundamentais que não são facilmente percebidas pelas pessoas, mas que norteiam boa parte do comportamento das comunidades que adotam cada uma delas:

- Ética da autonomia – é à qual estamos mais habituados, ou seja, a ideia de que as pessoas são, acima de tudo, indivíduos autônomos que devem ser livres para satisfazer seus desejos e preferências. Deste modo, estas sociedades desenvolvem valores como direitos, liberdades e justiça, que possibilitam às pessoas coexistir pacificamente sem interferir nas vidas uns dos outros. É a ética dominante nas sociedades individualistas e nos textos utilitaristas de John Stuart Mill e Peter Singer, por exemplo;

- Ética da comunidade – é baseada no princípio de que as pessoas são, acima de tudo, membros de entidades maiores, como famílias, times, empresas, tribos, exércitos e nações. Estas entidades são mais do que a soma de seus membros; são reais, importam e precisam ser protegidas. As pessoas têm obrigação de atuar conforme os papéis que lhe cabem nestas estruturas e, portanto, os conceitos que emergem são os de dever, hierarquia, patriotismo, respeito e reputação. Nestas sociedades (como nas orientais), o individualismo ocidental é visto como egoísta e perigoso – uma forma de enfraquecer a trama da sociedade e destruir as instituições das quais todos dependem;

- Ética da divindade – baseada na ideia de que as pessoas são, acima de tudo, “recipientes” em que uma alma divina habita temporariamente. Pessoas não são apenas animais com uma dose extra de consciência, mas sim filhos e filhas de Deus e que, portanto, devem agir de acordo. O corpo é um templo, não um playground e mesmo que uma ação ou comportamento privado individual qualquer não cause nenhum dano a terceiros, ele pode ser interpretado e condenado como imoral ou proibido se visto como ofensivo ao Criador ou à ordem sagrada do universo. É a moral dominante em boa parte do mundo muçulmano, por exemplo.

A moral dominante nas sociedades dos ocidentais países ricos, democráticos e industrializados, costuma ser limitada à ética da autonomia, mas ela pode ser bem mais ampla e incluir frequentemente as éticas da comunidade e da divindade nas matrizes éticas de diversos subgrupos religiosos ou conservadores e este é um ponto fundamental para se começar a compreender as diferenças radicais entre as visões de mundo dos liberais e dos conservadores.

Haidt usa frequentemente a expressão “morality binds and blinds” (a moralidade une e cega) para lembrar que matrizes éticas reforçam de forma muito significativa a coesão dos grupos que as adotam, mas ao mesmo tempo tornam seus membros praticamente cegos para a coerência ou a mera existência de outras matrizes. Esse fenômeno torna muito difícil para uma pessoa que tenha assimilado os valores de um determinado grupo de forma muito radical sequer considerar a possibilidade de que possa existir mais de uma verdade moral válida, parâmetros diferentes dos seus para se avaliar a conduta das outras pessoas ou mesmo mais de uma forma legítima para se organizar e conduzir uma sociedade.

Após a introdução das três éticas é a apresentada a Teoria dos Fundamentos Morais e são apresentados cinco diferentes “sabores” que a mente moralista consegue discernir, descritos como cinco diferentes fundamentos morais inatos e comuns a todos os seres humanos, adaptações que foram sendo lentamente incorporadas a nossos cérebros como respostas automáticas a uma série de ameaças e oportunidades inerentes à vida em sociedade e que disparam reações intuitivas e possivelmente algumas emoções específicas, como simpatia ou raiva:

- Fundamento do Cuidado / Dano – evoluiu em resposta ao desafio evolutivo do cuidado para com crianças vulneráveis. Ele nos torna sensíveis a sinais de sofrimento e necessidade e nos faz rejeitar a crueldade e nos importar com os que sofrem;

- Fundamento da Justiça / Trapaça – evoluiu em resposta ao desafio evolutivo de se extrair os benefícios da cooperação sem se deixar explorar. Faz com que nos tornemos sensíveis a indícios de que outras pessoas sejam potenciais bons parceiros para colaboração e altruísmo recíproco. Faz com que desejemos punir trapaceiros e exploradores e pode estar intrinsicamente ligado a um desejo por proporcionalidade (de que as pessoas recebam o que mereçam na intensidade adequada);

- Fundamento da Lealdade / Traição – evoluiu em resposta ao desafio evolutivo de formação e manutenção de alianças. Faz com que sejamos sensíveis a sinais de que uma pessoa é um bom e confiável membro do time e nos leva a confiar e recompensar tais pessoas na mesma medida em que nos leva a punir e renegar os que nos traem ou traem o grupo;

- Fundamento da Autoridade / Subversão – resposta ao desafio da formação de relacionamentos benéficos dentro de uma estrutura hierárquica. Faz com que sejamos sensíveis a sinais de posição e de status, bem como a indícios de que as outras pessoas estão (ou não) se comportando de acordo com suas respectivas posições;

- Fundamento da Santidade (Pureza) / Degradação – evoluiu inicialmente como resposta ao “dilema do onívoro” (o que um bicho que come de tudo pode comer e o que deve evitar) e posteriormente ao desafio de se viver em um mundo repleto de patógenos e parasitas. Trata-se de uma forma de “imunidade comportamental” que nos leva a ter receio e evitar uma variedade de ameaças reais ou simbólicas. Faz com que as pessoas atribuam arbitrariamente valores extremamente positivos ou negativos a determinados objetos e comportamentos que acabam servindo como mecanismos auxiliares para se manter os grupos unidos.

Olhando-se para os dois extremos do espectro político, pode-se perceber que os partidários da esquerda têm suas doutrinas focadas principalmente nos fundamentos do Cuidado e da Justiça, com pouca ou nenhuma ênfase nos demais. Os partidários de direita, por sua vez, operam com um foco mais abrangente, com doutrinas que abraçam os 5 fundamentos e incorporam uma ênfase significativamente grande em Autoridade, Lealdade e Santidade. Assista a um discurso de um candidato de direita e conte quantas vezes são mencionados temas como patriotismo, forças armadas e religião, por exemplo.


Aqui pode-se abrir parênteses e comentar-se um pouco sobre uma vantagem significativa que os conservadores levam quando falam ao público em geral. Considerando-se que os 6 fundamentos morais são inatos aos seres humanos e que estes podem dar maior ou menor importância a cada um deles, independente de sua formação ou posição social, é natural que um grupo político que aborde um número maior de fundamentos em sua doutrina e sua comunicação encontre ressonância do seu discurso em um número maior de pessoas do que um grupo que se restrinja a dois ou três fundamentos. Ou seja, se uma pessoa tem uma predisposição natural a priorizar os fundamentos da Autoridade e da Lealdade, mesmo que seja de uma camada desfavorecida da sociedade, não vai responder de forma positiva ao discurso centrado nos fundamentos de Cuidado e Justiça de um partido de esquerda, para a grande surpresa e indignação de boa parte dos liberais que são praticamente cegos aos demais fundamentos morais. Moralidade une e cega.

Posteriormente, Haidt acrescenta um sexto fundamento como forma de complemento à sua Teoria dos Fundamentos Morais original:

- Fundamento da Liberdade / Opressão – faz com que as pessoas percebam e se ressintam de qualquer sinal de uma tentativa de dominação. Dispara um sentimento de desejo de união para resistir e derrotar opressores e tiranos. Este fundamento suporta tanto a noção de equidade e de “anti-autoritarismo” na esquerda quanto o sentimentos “anti-opressão” e de “defesa da liberdade” na direita.

PARTE III - “Moralidade une e cega”

Em linhas gerais, é focada na demonstração do conceito de que a natureza humana é majoritariamente egoísta e individualista, mas com uma camada grupal que resulta do fato de que a seleção natural opera em diferentes níveis simultaneamente e que resulta em comportamentos surpreendentes e a princípio incoerentes com o interesse do indivíduo.

Indivíduos competem contra outros indivíduos e esta competição recompensa o individualismo, mas ao mesmo tempo, os grupos humanos competem contra outros grupos permanentemente e esta competição favorece os grupos compostos por verdadeiros “team players” – aqueles cujos integrantes estão dispostos a cooperar e trabalhar pelo bem do grupo mesmo em detrimento de seus interesses pessoais imediatos. Estes dois processos evolutivos complementares empurraram a natureza humana em direções diferentes e nos deram a estranha mistura de egoísmo e altruísmo que conhecemos hoje. A metáfora central desta terceira parte é: “nós somos 90% chimpanzés e 10% abelhas”.

O lado “chimpanzé” da metáfora refere-se ao fato de nossas mentes terem sido moldadas pela competição incansável de cada indivíduo com seu vizinho. Nós somos descendentes de uma longa linhagem de vencedores no jogo da vida social. Entretanto, a natureza humana incorporou mais recentemente uma nova camada, um comportamento grupal extremamente importante – apesar de majoritariamente chimpanzés, somos também um pouco como abelhas, no sentido de sermos criaturas ultra-sociais com mentes moldadas pela incansável competição entre grupos. Nós descendemos de antepassados cujo comportamento grupal os ajudou a cooperar e vencer outros grupos. Isso não significa que nossos ancestrais fossem “team players” incondicionais, apenas que eram adequadamente seletivos: quando as condições necessárias se apresentavam, eles podiam entrar em um estado mental de “um por todos e todos por um” em que passavam a trabalhar abnegadamente por um objetivo comum, aumentando de forma coletiva as chances de prevalência de seu grupo.

Este sentimento de ativação do “modo colmeia” em um grupo se manifesta ainda hoje na paixão ou êxtase que a participação em rituais grupais como esportes, raves, danças ou rituais religiosos podem ocasionar. É o tipo de efervescência coletiva ou “ressonância límbica” que foi tão bem descrita no livro “A General Theory of Love”, que já comentei aqui anteriormente.

A combinação de nossos comportamentos individualistas e grupais pode ser resumido no conceito de Homo Duplex: vivemos a maior parte de nossas vidas no mundo ordinário (profano), mas alcançamos nossas maiores alegrias naqueles breves momentos em que transcendemos a níveis mais elevados (coletivos) da existência. Somos projetados (por seleção natural) para nos locomover entre ambos os níveis de existência.  

Voltando ao tema da Teoria dos Fundamentos Morais, uma ideia curiosa defendida no livro é a de que as pessoas não adotam suas ideologias políticas aleatoriamente. Aqueles a quem os genes deram cérebros com maior afinidade a novidades, variedade e diversidade e uma menor sensibilidade a sinais de ameaça seriam predispostos (mas não predestinados) a se tornarem liberais e a reagir às narrativas dos movimentos de esquerda. Aqueles cujos genes conferiram cérebros com afinidades opostas seriam predispostos a se alinhar com as narrativas da direita.

Entretanto, a partir do momento que a pessoa adota qualquer um dos lados políticos ela é rapidamente incorporada à sua respectiva matriz moral. O condutor de seu elefante passa a encontrar confirmação da narrativa de seu grupo em todo lugar e é extremamente difícil convencê-la de que está errada se você tentar argumentar estando do lado de fora de sua matriz.

Dado o diferente enfoque que a esquerda e a direita dão aos seis fundamentos morais, pode-se deduzir que deve ser mais difícil para liberais (que em geral não se consideram relevantes os fundamentos de Autoridade, Santidade e Lealdade) entender os conservadores do que vice-versa. Em particular, liberais têm dificuldade em visualizar e compreender o conceito de “capital moral”, ou seja, o valor intrínseco de alguns recursos que sustentam uma comunidade moral, como valores, virtudes, normas, práticas, tradições, costumes, identidades e instituições, o que faz com que seja difícil para seu discurso ser assimilado por um público que aprecie estes valores na mesma medida em que os faz ter dificuldade em entender este público.

Em suma, a abordagem de Haidt é de que liberais e conservadores, esquerda e direita são como yin e yang – ambos elementos necessários para a vida política saudável de uma nação, como colocado por John Stuart Mill. Liberais são especialistas no fundamento do Cuidado – eles enxergam melhor as vítimas dos arranjos sociais e nos forçam a atualizar continuamente esses arranjos. Por outro lado, conservadores oferecem um contraponto fundamental aos movimentos de reforma liberal, em especial no que tange à liberdade dos mercados e à proteção de estruturas e valores que são caros a boa parte da sociedade.

Enfim, moralidade une e cega. Ela nos une a times ideologicamente coesos que lutam entre si como se o destino do planeta estivesse em jogo em cada batalha. Ela nos cega com relação ao fato de que ambos os times são compostos por boas pessoas que podem ter algo importante a dizer. Ter esse conceito em mente pode ajudar cada um de nós a compreender melhor o outro lado, ou pelo menos a evitar entrar em discussões absolutamente inúteis no Facebook.

 

PS – na data em que escrevo este resumo, Jonathan Haidt pode ser visto em uma participação rápida no documentário “The Social Dilemma”, que acaba de ser lançado na Netflix 

PS 2 – Haidt também será o convidado na segunda conferência do Fronteiras do Pensamento, programada para o próximo dia 30 de setembro

PS 3 – Para uma obra mais recente dele, você pode acessar o link para o meu texto sobre “The Coddling of the American Mind”. É outro livro com um título incrivelmente difícil de traduzir, mas excelente...

    

sábado, 2 de maio de 2020

O Novo Iluminismo

Várias das minhas opiniões mudaram bastante com o passar do tempo, mas poucas mudaram de forma tão radical quanto o meu conceito sobre Bill Gates. Tive lá a minha fase de adolescente anti-Microsoft e já critiquei bastante o seu fundador por suas práticas monopolistas na época da "guerra dos browsers", mas o meu conceito começou a mudar com os anos e, especialmente depois da fundação Bill e Melinda Gates, hoje eu sou um fã. Como fã, portanto, quando encontro um livro que ele recomenda como sendo “Meu novo livro favorito de todos os tempos.”, tenho que conferir. 

“O novo Iluminismo – Em defesa da razão, da ciência e do humanismo” de Steven Pinker (Companhia das Letras, 2018) é exatamente o que o título indica: uma obra focada em fazer a defesa dos três pilares fundamentais do Iluminismo: a razão, a ciência e o humanismo, em um momento em que imaginaríamos não precisarem mais de defesa. Apesar de denso, com quase 700 páginas recheadas de excelentes referências bibliográficas, é surpreendentemente simples, direto e agradável de se ler. Logo nas primeiras páginas fica claro que Gates não estava exagerando quando fez seu comentário. 



O último livro que abordei neste blog tratava de uma visão pessimista quanto aos rumos da humanidade ("A Nova Idade das Trevas"). Este é o extremo oposto. Nas palavras do próprio Pinker: ...essa avaliação desoladora do mundo é errada. E não apenas errada: erradíssima, espetacularmente errada, mais errada impossível.” e ele defende sua causa com uma clareza e um volume de dados impressionante distribuídos ao longo de 3 partes. 

A 1ª parte trata da revisão do que consideramos em linhas gerais como o movimento do Iluminismo, bem como seu momento histórico e conceitos fundamentais. A 2ª parte foca em contestar, com dados objetivos, visões pessimistas ou catastrofistas do mundo contemporâneo em aspectos como riqueza, desigualdade, meio ambiente, saúde e segurança. A 3ª parte se concentra, finalmente, na defesa dos ideais iluministas. Iniciando com a 1ª parte, vamos assumir a definição de Iluminismo como apresentada atualmente pela Wikipedia: 

“O iluminismo, também conhecido como século das luzes e ilustração, foi um movimento intelectual e filosófico que dominou o mundo das ideias na Europa durante o século XVIII, "O Século da Filosofia". O Iluminismo incluiu uma série de ideias centradas na razão como a principal fonte de autoridade e legitimidade e defendia ideais como liberdade, progresso, tolerância, fraternidade, governo constitucional e separação Igreja-Estado. Na França, as doutrinas centrais dos filósofos do Iluminismo eram a liberdade individual e a tolerância religiosa em oposição a uma monarquia absoluta e aos dogmas fixos da Igreja Católica Romana. O Iluminismo foi marcado por uma ênfase no método científico e no reducionismo, juntamente com o crescente questionamento da ortodoxia religiosa - uma atitude capturada pela frase Sapere aude (em português: "Atreva-se a conhecer").”

Para ter-se uma dimensão do que representou a Revolução Científica ocorrida neste período, tome-se a descrição do que o historiador David Wootton faz do que um inglês instruído “sabia” com toda segurança do mundo em 1.600, às vésperas da revolução industrial: 

“Ele acredita que bruxas podem invocar tempestades para afundar navios no mar. [...] Acredita em lobisomens, ainda que por acaso essas criaturas não existam na Inglaterra – sabe que existem na Bélgica. [...] Acredita que camundongos surgem por geração espontânea em montes de palha. Acredita em magos contemporâneos. [...] Ele já viu um chifre de unicórnio, mas não um unicórnio. Ele acredita que o corpo de uma pessoa assassinada sangrará na presença do assassino. Acredita na existência de um unguento que, se for aplicado na adaga que causou um ferimento, curará o ferimento. [...] Acredita ser possível transformar metal sem valor em ouro [...] Acredita, obviamente, que a Terra é imóvel e que o Sol e as estrelas fazem um giro em torno dela a cada 24 horas.” 

Apenas um século mais tarde, um descendente instruído deste inglês já não acreditaria em mais nada disso. 

Além da razão e da ciência, o humanismo também tem um papel central no Iluminismo. Deixando para trás séculos de Cruzadas, Inquisição, guerras e caça às bruxas, os pensadores iluministas condenaram crueldades como escravidão, despotismo, punições sádicas e execuções por crimes triviais, colocando fim a práticas hoje consideradas bárbaras, mas extremamente comuns ao longo de milênios em diversas civilizações diferentes. Decorre ainda da fé na ciência e no humanismo o ideal iluminista de progresso, tanto em termos de evolução das leis e costumes, quanto da evolução científica. Todos aspectos que atuam em conjunto, levando a uma melhoria contínua do bem-estar das pessoas e uma gradual transformação do mundo em um lugar melhor.

Infelizmente, como um típico ser humano do início do século XXI e mais do que habituado a ler barbaridades nas time-lines das redes sociais, você já deve ter se acostumado com a ideia de que mesmo as coisas mais obviamente benéficas (como vacinas) ou mesmo os conceitos mais obviamente evidentes (como a Terra ser redonda), precisam de defesa. O mesmo vale para o Iluminismo. Pinker passa um capítulo na primeira parte apresentando um assustador elenco de movimentos contrailuministas religiosos, nacionalistas, filosóficos e intelectuais que são bem explorados ao longo do livro, sempre com referências a trabalhos recentes e muito interessantes. Como exemplos destas referências, posso citar alguns livros relativamente novos que abordei aqui nos últimos meses e que analisam movimentos bem recentes como a emergência da polarização e sua relação com o fenômeno da formação de tribos morais (“Moral Tribes”, de Joshua Greene) ou os problemas da crescente rejeição à livre exposição de ideias em universidades (“The Coddling of the American Mind”, de Lukianoff e Haidt). 

Como já dito, a 2ª parte do livro trata da refutação, com dados, de pontos de vista saudosistas, pessimistas ou decadentistas sobre o estado atual da humanidade. É a parte mais extensa do texto e também a que inclui o maior volume de informações interessantes e surpreendentes, que demonstram de forma incontestável a brutal evolução da condição humana no último século em aspectos como desigualdade, expectativa de vida, saúde, meio ambiente, segurança, paz, democracia, terrorismo, conhecimento, igualdade de direitos e felicidade. Não vou me ater a cada um destes aspectos, mas gostaria de chamar a atenção para apenas dois pontos realçados por Pinker e que servem como exemplos do tipo de insight que são encontrados no livro sobre os temas do meio ambiente e da desigualdade. 

Em “Moral Tribes”, que citei acima, Joshua Greene detalha como a polarização entre esquerda e direita nos EUA (assim como no Brasil), fez com que o tema do aquecimento global tenha passado a ser associado a uma bandeira de esquerda: 

“Em 1998, pesquisas indicavam que eleitores Republicanos e Democratas apresentavam probabilidades praticamente iguais de concordar com o argumento de que a mudança climática estava realmente ocorrendo. De lá para cá, ao mesmo tempo em que as evidências científicas sobre o tema apenas aumentaram, surgiu uma curiosa divergência entre eleitores Republicanos e Democratas com relação ao assunto, a ponto de em 2010 um Democrata ter passado a ter uma probabilidade duas vezes maior de afirmar acreditar na mudança climática do que um Republicano. Isso não ocorreu por questões técnicas ou por um eventual menor acesso às informações científicas por parte dos Republicanos, mas simplesmente pelo fato do assunto ter tomado contornos políticos que levaram os dois partidos a se posicionar em campos opostos, forçando um grande número de eleitores Republicanos a ter de optar (até de forma inconsciente) entre aceitar racionalmente as opiniões dos especialistas no assunto ou simplesmente recusá-las e se comportar, então, como um bom e confiável membro de sua “tribo” política.” 

A abordagem de Pinker, entretanto, vai mais além: ele questiona se o fato do democrata Al Gore ter abraçado a causa do aquecimento global no documentário “Uma Verdade Inconveniente” em 2006 não teria sido uma dos fatores principais do recrudescimento desta polarização e, assim, causado um dano irreparável à causa. Questiona ainda a racionalidade de bandeiras muito tradicionais de ambientalistas contrários a alimentos transgênicos e energia nuclear e o prejuízo que estas posições radicais causam ao meio ambiente ao influenciar a opinião pública contra as opções comprovadamente mais eficientes de geração de energia e produção de alimentos. 

Pinker encara de frente também a questão da desigualdade e a incensada obra de Thomas Piketty, “O Capital no Século XXI”. Ele dedica um capítulo inteiro ao tema e a demonstrar que a desigualdade humana não pode ser usada como um contraexemplo para o progresso humano. Argumenta também que não estamos vivendo, ao contrário do que alega Piketty e as esquerdas ao redor do globo, uma distopia de rendas declinantes que teria revertido séculos de aumento da prosperidade. Defende que a tendência de longo prazo desde o Iluminismo é, na verdade, o aumento de riqueza para todos e, desmonta com surpreendente elegância o livro de Piketty em apenas um parágrafo. (Não, não vou reproduzir aqui, mas lhe desafio a encontrar). 

Finalmente, a 3ª parte é dedicada especificamente aos ideais da razão, ciência e humanismo, cabendo um capítulo para cada um. Como no restante do livro, os argumentos são claros, convincentes e, acima de tudo, necessários. 

Já estávamos vivendo uma época de polarização, escalada de autoritarismo e tendência ao desmonte de conquistas que considerávamos mais do que consolidadas. Com a pandemia de COVID-19, estes movimentos parecem ter se acentuado. Neste cenário, a obra de Pinker é um testemunho muito oportuno de fé na humanidade e no progresso e um necessário sopro de otimismo em um momento de profunda crise global. O comentário de Gates sobre o livro não é, de forma alguma, descabido. 

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PS – Por uma dessas coincidências malucas do mundo, no momento em que escrevo isso, às 18:30 do dia 02 de maio de 2020, Warren Buffett está fazendo ao vivo a sua apresentação na reunião de acionistas da Berkshire Hathaway e estou ouvindo ao fundo. A mensagem que está passando agora: apesar de tudo, não há época melhor para se estar vivo do que agora em termos de bem-estar, direitos, segurança, paz, etc.. Impressionante a clareza de raciocínio e a energia deste senhor de 89 anos. Bom, estando com Gates e Buffett, Pinker está muito bem acompanhado...