Página em Blanco
Literatura, comentários sobre a vida e posts sobre o que me der na veneta.
domingo, 29 de setembro de 2024
A Geração Ansiosa / The Anxious Generation – How the Great Rewiring of Childhood Is Causing an Epidemic of Mental Illness
sexta-feira, 21 de abril de 2023
A Era do Capitalismo de Vigilância – A Luta por um Futuro Humano na Nova Fronteira do Poder
Tenho uma amiga de escola que até hoje tem o costume de enviar SMS (!) para os amigos em aniversários, Natal e outras datas importantes. Não usa WhatsApp. Não tem, nem nunca teve nenhuma conta em redes sociais. Deve ter um endereço de e-mail, mas não tenho certeza. Ela vive de forma quase analógica e é provavelmente a única pessoa que conheço com mais de 7 anos de idade que consegue operar de forma off-line no mundo de hoje. Também é, provavelmente, uma das últimas pessoas imunes à mineração de seu comportamento pelas Big Tech, ou, como denominados por Shoshana Zuboff em sua obra mais famosa, pelos “Capitalistas de Vigilância”.
“A Era do Capitalismo de Vigilância” (Intrínseca, 2021) é um
tapa na cara dividido em 3 partes, ao longo de 800 páginas e é, em síntese, um
alerta sobre o modelo de negócio inédito adotado pelas grandes empresas de
tecnologia (principalmente Facebook, Microsoft e Google) ao longo dos últimos
20 anos e as mudanças sociais profundas que este modelo está operando de forma incremental
e sutil, quase imperceptível, mas cujo impacto tem potencial para ser tão
significativo quanto os efeitos da revolução causada pelo advento do capitalismo
industrial no final do século XIX.
A primeira parte é dedicada a detalhar como emergiu o modelo
atual de receita destas empresas, que utiliza como matéria-prima o que Zuboff
batizou de “superávit comportamental”. É mais um dos vários termos novos introduzidos
no livro. Na verdade, muitos conceitos apresentados são novos e navegam por temas
ainda muito pouco explorados, de modo que a sensação da leitura é muito parecida
com a de ler-se o “Gene Egoísta” de Dawkins, por exemplo – traz a certeza de
que temos nas mãos um texto que apenas começa a arranhar um tema, mas que está
destinado a se tornar sua obra de referência.
Superávit comportamental refere-se a todos os dados colaterais
ou subprodutos gerados por nossa atividade digital. Por exemplo, no caso de uma
busca feita no Google, seriam dados como as palavras usadas, a forma como a
busca é formulada, pontuação, localização, padrão de cliques ou tempo de
visualização. Inicialmente eram dados coletados e armazenados a esmo sem um objetivo
específico, mas que passaram a ser insumos para a construção de perfis detalhados
dos usuários, valiosos do ponto de vista comercial e cuja mineração, em última
instância, tornou-se a base do modelo de negócios das Big Tech.
“(...) com frequência as pessoas declaram que o usuário é
o “produto”. Isso também é incorreto (...), os usuários não são produtos (...),
são fontes de suprimento de matéria-prima.”
Zuboff correlaciona o momento da descoberta do valor do
superávit comportamental com o estouro da bolha das ponto-com em 2000, quando a
pressão do mercado por resultados no Vale do Silício impôs uma espécie de “estado
de exceção” ao Google e lhe conferiu uma espécie de carta-branca moral para
justificar o abandono de sua antipatia histórica por anúncios e sua posição
contrária ao financiamento de mecanismos de busca por meio de publicidade (que
implicaria em parcialidade), bem como legitimar perante equipe e mercado uma etapa
de busca ativa de novas fontes de receita e de um diferencial competitivo que
garantisse sua lucratividade e perpetuação.
Para tanto, a empresa recorreu no final de 2000 à até então
minúscula equipe de 7 pessoas do AdWords e deu o primeiro passo na captura de valor
do superávit comportamental através da vinculação dos anúncios não mais a
simples palavras-chave, mas sim ao banco de dados individuais de cada usuário
que somente o Google tinha à disposição. Essa abordagem única foi identificada
como a melhor maneira de garantir relevância aos usuários e proporcionar um valor
inédito aos seus verdadeiros clientes, os anunciantes.
A partir deste ponto chave na história das Big Tech, o livro
prossegue detalhando o aumento da sofisticação e da profundidade dos mecanismos
de coleta / mineração do superávit comportamental ao longo dos anos seguintes,
bem como descrevendo o contexto histórico que possibilitou o florescimento e
fortalecimento praticamente incontestado deste mecanismo até chegar ao próximo
estágio da evolução do modelo, descrito na parte II do livro, que trata da migração
do mesmo do ambiente on-line puro para o mundo real.
“(...) o superávit comportamental deve ser vasto, mas
também variado. Esse esforço deve ser elaborado tendo em vista duas dimensões:
a primeira, extensão das operações de extração do mundo virtual para o “real”
(...). Os capitalistas de vigilância compreenderam que sua riqueza futura
dependeria de novas rotas de suprimento (...). A extensão quer estar na sua
corrente sanguínea e na sua cama, na sua conversa do café da manhã, no seu meio
de transporte, na sua corrida, na sua geladeira, na sua vaga de estacionamento,
na sua sala de estar”
Inicialmente a mineração de dados comportamentais ocorria
apenas no ambiente da internet e destinava-se especificamente ao direcionamento
de publicidade. Entretanto, com o aumento da sofisticação da tecnologia e da
difusão da prática da extração destes dados para fora da internet
tradicional, através de dispositivos do mundo real agora conectados à rede, um
novo imperativo de diferenciação surgiu como forma de resposta à pressão por
receitas sobre as empresas do setor, o da predição de comportamento. Pense
em como hoje você entra no seu carro e seu celular já sabe para onde você
costuma ir em determinados horários a cada dia da semana e já lhe mostra o
tempo previsto para seu destino sem que você precise introduzir nenhuma informação
no sistema de GPS, por exemplo. Agora imagine o valor comercial desta
informação.
A parte II prossegue abordando a terceira e mais audaciosa fase
da evolução do modelo: a de modificação do comportamento. São fornecidos
diversos exemplos e apresentados casos como, por exemplo, o de um teste
conduzido pelo Facebook nas eleições americanas de 2010, em que um grupo de
pesquisadores manipulou os feeds de notícias de 61 milhões de usuários exibindo
uma mensagem incentivando os mesmos a votar. Esta mensagem incluía um botão “Eu
Votei”, com contador, mas em duas diferentes versões. Parte dos usuários recebeu
a mensagem com o botão e um contador simples, enquanto parte recebeu o contador
acompanhado de fotos de amigos que já haviam clicado no botão. Os resultados
demonstraram uma probabilidade 2% maior destes últimos clicarem no botão e a
estimativa foi de que esta ação tenha levado cerca de 340.000 pessoas
adicionais a votar nesta eleição específica. (O estudo é descrito no artigo “A61-Million-Person Experiment in Social Influence and Political Mobilization”)
Finalmente, a parte III se dedica a acompanhar a fase seguinte, em que não mais o indivíduo, mas a própria sociedade passa a ser o novo objeto de extração e controle e a analisar as consequências do avanço deste novo poder “instrumentário” (como denominado por Zuboff), traçando um paralelo entre a evolução do Capitalismo Industrial ao longo do século XX e seus impactos em diversas dimensões (social, política, ambiental, econômica, etc.), e a evolução já percebida e a esperada do Capitalismo de Vigilância e suas possíveis consequências.
É um texto longo, profundo e muito bem construído, que busca
alertar a sociedade para o ineditismo da situação que temos enfrentado ao longo
dos últimos 20 anos e que nos pegou de surpresa, sem termos ainda arcabouços éticos,
morais ou legais capazes de lidar adequadamente com os graves desafios que a
emergência deste novo modelo de negócio nos impõe, mas que temos assimilado com
surpreendente naturalidade e sido induzidos a aceitar como normal e inevitável.
A humanidade se depara com uma situação inédita, que está evoluindo de forma
muito acelerada e o livro propõe justamente o questionamento de sua suposta “normalidade”.
Para tanto, faz um trabalho extraordinário dando nome e forma a muitos aspectos
e conceitos envolvidos nesse novo modelo econômico e nos equipa com um
ferramental conceitual poderoso, que abre caminho através da fumaça dos supostos
benefícios de um mundo hiperconectado e possibilita vermos com clareza o que
estamos realmente queimando nesse processo.
PS – Ao escrever o último parágrafo, abri o meu navegador para checar a grafia correta de uma palavra. Recebi a mensagem abaixo. Aparentemente sigo forte na minha condição de matéria-prima...
sábado, 10 de abril de 2021
Hello, Brasil! e outros ensaios
sábado, 17 de outubro de 2020
Everybody Lies – Big Data, new data and what the Internet can tell us about who we really are
Uns 15 anos atrás, Steven Levitt e Stephen Dubner publicaram "Freakonomics", um best-seller que aplicava a abordagem dos economistas a análise de assuntos do dia a dia, do comportamento de corretores de imóveis e lutadores de sumô, a causas não-convencionais para queda da criminalidade em Nova York. Foi um grande sucesso e influenciou o cientista de dados Seth Stephens-Davidowitz a buscar dar o passo seguinte com "Everybody Lies", basicamente uma versão turbinada de "Freakonomics".
Uma das fontes utilizadas nas análises de Davidowitz, por
exemplo, está nos dados consolidados de buscas realizadas no Google – ele avalia
os números de perguntas similares feitas sobre um determinado tema em diferentes
regiões e momentos para analisar tópicos como a eficácia de discursos do Obama
em diminuir o preconceito contra muçulmanos, a prevalência do racismo em
diferentes regiões americanas ou as neuras sexuais dos internautas.
Mas porque o título “Everybody Lies”? Bom, a grande sacada
de Davidowitz foi perceber que a tela de consulta do Google e o comportamento
on-line em parte dos sites funcionam como um grande “soro da verdade”. Todo
mundo (normal) se preocupa com a própria imagem no dia a dia, no Facebook, no
médico ou mesmo ao responder uma pesquisa de opinião, mas se comporta de forma
bem mais livre e autêntica quando não tem ninguém olhando, inclusive quando faz
suas buscas no Google ou navega de forma anônima. Cruzar os dados de uma rede
social com outras bases que não sejam enviesadas pela preocupação com imagem pode
resultar em incoerências surpreendentes e bem interessantes. Por exemplo: é
muito provável que ao pesquisar a sua rede de amigos no Facebook, você vá
encontrar mais gente seguindo publicações como “The Economist” ou “Harvard Business
Review” do que “Caras”, mas quando você for até a casa deles, qual revista vai
encontrar?
O livro foi publicado em 2017, ou seja, antes do sucesso
atual de “The Social Dilemma” na Netflix. Entretanto, um de seus insights mais
interessantes é justamente com relação ao consenso de que a internet e as redes
sociais estariam agravando a polarização política. Com base em um estudo
realizado pelos economistas Matt Gentzkow e Jesse Shapiro em 2011, que coletou
dados sobre o comportamento de um grande número de americanos de diferentes linhas
ideológicas e avaliou o grau da segregação política na internet, Davidowitz sugere
uma abordagem diferente:
Nós tendemos a ter um número muito maior de amigos no Facebook do que na vida real. Nossa lista de contatos nas redes sociais incluem pessoas como aqueles conhecidos do tempo de escola com quem nunca mais falamos, vizinhos de condomínio, ex-colegas de trabalho, o amigo do primo que conhecemos 10 anos atrás e mais um monte de gente que nunca convidaríamos para jantar em casa ou para um churrasco no final de semana. Entretanto, todo esse pessoal publica seus comentários e links e frequenta a nossa timeline diariamente, fazendo com que sejamos expostos a opiniões e assuntos a que dificilmente teríamos acesso dentro da nossa bolha de relacionamentos próximos, que tendem naturalmente a ser muito mais alinhados com as nossas próprias posições e realidade. Em suma, a internet acaba se tornando um ponto de contato entre pessoas com perfis muito mais diversos do aquelas com quem temos contato diário no mundo físico. Você pode ser um liberal que passa sua manhã com uma esposa e filhos liberais, a tarde com seus colegas de trabalho liberais, volta para casa ouvindo a rádio liberal a que se acostumou, mas à noite, quando acessa o Facebook, tem contato com os posts conservadores radicais de seu ex-colega de escola. Esta será provavelmente sua maior exposição a opiniões conservadoras no dia todo e este contraponto não é algo necessariamente ruim.
segunda-feira, 21 de setembro de 2020
The Righteous Mind – Why Good People are Divided by Politics and Religion
Ainda em 2012, o doutor em psicologia Jonathan Haidt publicou um livro extraordinário buscando responder à pergunta que hoje todos nós nos fazemos diariamente ao navegar pelas timelines de nossas redes sociais: Por que tanta gente inteligente e bem intencionada pode ter posições tão diferentes sobre temas fundamentais como política? E, principalmente, por que essas pessoas desenvolvem com tanta facilidade a plena convicção de que os de posição diferente da sua são completos idiotas?
“The Righteous Mind – Why Good People are Divided by Politics and Religion” (Vintage, 2013), tem um título particularmente difícil de traduzir. A edição brasileira recebeu o título de “A Mente Moralista”, embora eu considere que “Righteous” tenha um sentido um pouco mais forte do que “Moralista”. Segundo o dicionário de Cambridge, por exemplo, se refere a “pessoas que se comportam de uma forma moralmente correta”, mas acho que a intenção de Haidt no título era dar uma abordagem mais próxima de “self-righteous”... ou “pessoas que acreditam que suas ideias e comportamentos são moralmente superiores ao de outras pessoas”. Para quem leu Pollyanna, um bom exemplo seria a tia solteirona de Pollyanna. Ela é “self-righteous” até os ossos. Imagine-a vivendo hoje no Brasil com uma conta de Whatsapp na mão...
O livro é dividido em três partes, cada uma associada a uma
metáfora diferente desenvolvida para resumir um conceito fundamental.
PARTE I - “Intuições vêm primeiro, raciocínio vem depois”
A primeira parte é “Intuições vêm primeiro, raciocínio vem
depois”. Ela compara a mente humana a um elefante enorme com um “condutor”
(um cavaleiro) em cima dele, mas cujo trabalho é servir ao elefante e não
vice-versa. Nessa metáfora, o elefante representa nosso pensamento intuitivo,
enquanto o condutor representa o pensamento racional. Esta dualidade é bastante similar à defendida por Daniel
Kahneman em “Rápido e Devagar”,
mas a abordagem é um pouco diferente. Para Haidt, é nítido que o chefe é o
elefante (emoção / intuição) e que o condutor (razão) existe para servi-lo.
“Portanto, se você quer mudar a opinião de alguém com
relação a um tema moral ou político, fale primeiro com o elefante. Se você
pedir às pessoas para acreditar em algo que viola as suas intuições, elas irão
dedicar todos os seus esforços a encontrar uma saída – uma razão para duvidar
de seus argumentos ou conclusões. E vão conseguir quase sempre.”
Especialmente quando as discussões se tornam hostis, o
elefante começa a se inclinar para longe do oponente e o condutor (seu servo)
vai trabalhar freneticamente para encontrar dados e motivos “racionais” para refutar
todos os argumentos que receber. Inclusive no Google.
Um dos insights mais importantes apresentados nesta parte é
justamente neste sentido e é bem pouco intuitivo: apesar de gostarmos de nos
ver como criatura racionais, nossa consciência opera em grande medida com o
objetivo descarado de persuadir em vez de analisar. A conclusão deprimente de
cientistas cognitivos que pesquisaram o raciocínio humano ao longo de anos é que
ele se desenvolveu como uma ferramenta para nos ajudar a argumentar, persuadir
e manipular outras pessoas e não para nos ajudar a “descobrir a verdade”. Esta
conclusão se aplica inclusive no nosso auto convencimento, ou seja, o condutor
trabalha muito também para justificar e nos convencer da validade e moralidade de
nossas próprias ações, preservando nossa autoimagem de boas pessoas mesmo
quando temos atitudes bastante questionáveis. É por isso que o chamado “viés de
confirmação” é tão poderoso e difícil de combater.
“Nosso pensamento moral é muito mais como um político
caçando votos do que um cientista buscando a verdade.”
Ter esse conceito em mente é fundamental para se ter uma
conversa minimamente produtiva com alguém cujo elefante está apontado para um
lado oposto ao seu: argumentos puramente racionais não falam ao elefante – ele
responde à emoção, não à razão. Enquanto o elefante do outro não estiver
sensibilizado e disposto a se inclinar pelo menos um pouco para o seu lado, não
adianta nem tentar argumentar com o condutor.
Especialmente quando se trata de temas morais ou políticos a
situação se agrava um pouco mais. Nestes temas temos também uma tendência a um
comportamento mais grupal do que individualista – nós aplicamos nossas
habilidades de raciocínio para apoiar a posição de nosso time e para demonstrar
nosso compromisso com ele, de modo que a chance de se convencer alguém em uma
discussão pública na internet a mudar de ideia com relação a um ponto
importante na estrutura moral de seu grupo político é completamente impossível.
Desista. (especificamente sobre esse comportamento tribal, pode ser
interessante conhecer também os argumentos de Joshua Greene em “Moral Tribes”
PARTE II - “Há mais na moralidade do que apenas cuidado e
justiça”
Nesta parte são apresentadas seis diferentes dimensões ou
fundamentos do pensamento moral e a metáfora usada é a de que a mente moralista
é como uma língua capaz de sentir seis tipos diferentes de gostos ou sabores.
Inicialmente, Haidt cuida de introduzir o leitor à noção de
que a ética ocidental a que estamos habituados é algo bastante particular e não
uma verdade universal, como somos inclinados a pensar. Para isso, nos apresenta
as três principais abordagens éticas (baseadas na teoria do antropologista
Richard Shweder), que permeiam o mundo contemporâneo com diferenças
fundamentais que não são facilmente percebidas pelas pessoas, mas que norteiam
boa parte do comportamento das comunidades que adotam cada uma delas:
- Ética da autonomia – é à qual estamos mais habituados, ou
seja, a ideia de que as pessoas são, acima de tudo, indivíduos autônomos que
devem ser livres para satisfazer seus desejos e preferências. Deste modo, estas
sociedades desenvolvem valores como direitos, liberdades e justiça, que
possibilitam às pessoas coexistir pacificamente sem interferir nas vidas uns
dos outros. É a ética dominante nas sociedades individualistas e nos textos
utilitaristas de John Stuart Mill e Peter Singer, por exemplo;
- Ética da comunidade – é baseada no princípio de que as
pessoas são, acima de tudo, membros de entidades maiores, como famílias, times,
empresas, tribos, exércitos e nações. Estas entidades são mais do que a soma de
seus membros; são reais, importam e precisam ser protegidas. As pessoas têm
obrigação de atuar conforme os papéis que lhe cabem nestas estruturas e,
portanto, os conceitos que emergem são os de dever, hierarquia, patriotismo,
respeito e reputação. Nestas sociedades (como nas orientais), o individualismo
ocidental é visto como egoísta e perigoso – uma forma de enfraquecer a trama da
sociedade e destruir as instituições das quais todos dependem;
- Ética da divindade – baseada na ideia de que as pessoas
são, acima de tudo, “recipientes” em que uma alma divina habita
temporariamente. Pessoas não são apenas animais com uma dose extra de
consciência, mas sim filhos e filhas de Deus e que, portanto, devem agir de
acordo. O corpo é um templo, não um playground e mesmo que uma ação ou
comportamento privado individual qualquer não cause nenhum dano a terceiros,
ele pode ser interpretado e condenado como imoral ou proibido se visto como
ofensivo ao Criador ou à ordem sagrada do universo. É a moral dominante em boa
parte do mundo muçulmano, por exemplo.
A moral dominante nas sociedades dos ocidentais países
ricos, democráticos e industrializados, costuma ser limitada à ética da
autonomia, mas ela pode ser bem mais ampla e incluir frequentemente as éticas
da comunidade e da divindade nas matrizes éticas de diversos subgrupos religiosos
ou conservadores e este é um ponto fundamental para se começar a compreender as
diferenças radicais entre as visões de mundo dos liberais e dos conservadores.
Haidt usa frequentemente a expressão “morality binds and
blinds” (a moralidade une e cega) para lembrar que matrizes éticas reforçam
de forma muito significativa a coesão dos grupos que as adotam, mas ao mesmo
tempo tornam seus membros praticamente cegos para a coerência ou a mera
existência de outras matrizes. Esse fenômeno torna muito difícil para uma
pessoa que tenha assimilado os valores de um determinado grupo de forma muito radical
sequer considerar a possibilidade de que possa existir mais de uma verdade
moral válida, parâmetros diferentes dos seus para se avaliar a conduta das outras
pessoas ou mesmo mais de uma forma legítima para se organizar e conduzir uma
sociedade.
Após a introdução das três éticas é a apresentada a Teoria
dos Fundamentos Morais e são apresentados cinco diferentes “sabores” que a
mente moralista consegue discernir, descritos como cinco diferentes fundamentos
morais inatos e comuns a todos os seres humanos, adaptações que foram sendo lentamente
incorporadas a nossos cérebros como respostas automáticas a uma série de ameaças
e oportunidades inerentes à vida em sociedade e que disparam reações intuitivas
e possivelmente algumas emoções específicas, como simpatia ou raiva:
- Fundamento do Cuidado / Dano – evoluiu em resposta ao
desafio evolutivo do cuidado para com crianças vulneráveis. Ele nos torna
sensíveis a sinais de sofrimento e necessidade e nos faz rejeitar a crueldade e
nos importar com os que sofrem;
- Fundamento da Justiça / Trapaça – evoluiu em resposta ao
desafio evolutivo de se extrair os benefícios da cooperação sem se deixar
explorar. Faz com que nos tornemos sensíveis a indícios de que outras pessoas
sejam potenciais bons parceiros para colaboração e altruísmo recíproco. Faz com
que desejemos punir trapaceiros e exploradores e pode estar intrinsicamente
ligado a um desejo por proporcionalidade (de que as pessoas recebam o que
mereçam na intensidade adequada);
- Fundamento da Lealdade / Traição – evoluiu em resposta ao
desafio evolutivo de formação e manutenção de alianças. Faz com que sejamos
sensíveis a sinais de que uma pessoa é um bom e confiável membro do time e nos
leva a confiar e recompensar tais pessoas na mesma medida em que nos leva a
punir e renegar os que nos traem ou traem o grupo;
- Fundamento da Autoridade / Subversão – resposta ao desafio
da formação de relacionamentos benéficos dentro de uma estrutura hierárquica.
Faz com que sejamos sensíveis a sinais de posição e de status, bem como a indícios
de que as outras pessoas estão (ou não) se comportando de acordo com suas
respectivas posições;
- Fundamento da Santidade (Pureza) / Degradação – evoluiu
inicialmente como resposta ao “dilema do onívoro” (o que um bicho que come de
tudo pode comer e o que deve evitar) e posteriormente ao desafio de se viver em
um mundo repleto de patógenos e parasitas. Trata-se de uma forma de “imunidade
comportamental” que nos leva a ter receio e evitar uma variedade de ameaças
reais ou simbólicas. Faz com que as pessoas atribuam arbitrariamente valores
extremamente positivos ou negativos a determinados objetos e comportamentos que
acabam servindo como mecanismos auxiliares para se manter os grupos unidos.
Olhando-se para os dois extremos do espectro político,
pode-se perceber que os partidários da esquerda têm suas doutrinas focadas
principalmente nos fundamentos do Cuidado e da Justiça, com pouca ou nenhuma ênfase
nos demais. Os partidários de direita, por sua vez, operam com um foco mais
abrangente, com doutrinas que abraçam os 5 fundamentos e incorporam uma ênfase
significativamente grande em Autoridade, Lealdade e Santidade. Assista a um
discurso de um candidato de direita e conte quantas vezes são mencionados temas
como patriotismo, forças armadas e religião, por exemplo.
Aqui pode-se abrir parênteses e comentar-se um pouco sobre uma vantagem significativa que os conservadores levam quando falam ao público em geral. Considerando-se que os 6 fundamentos morais são inatos aos seres humanos e que estes podem dar maior ou menor importância a cada um deles, independente de sua formação ou posição social, é natural que um grupo político que aborde um número maior de fundamentos em sua doutrina e sua comunicação encontre ressonância do seu discurso em um número maior de pessoas do que um grupo que se restrinja a dois ou três fundamentos. Ou seja, se uma pessoa tem uma predisposição natural a priorizar os fundamentos da Autoridade e da Lealdade, mesmo que seja de uma camada desfavorecida da sociedade, não vai responder de forma positiva ao discurso centrado nos fundamentos de Cuidado e Justiça de um partido de esquerda, para a grande surpresa e indignação de boa parte dos liberais que são praticamente cegos aos demais fundamentos morais. Moralidade une e cega.
Posteriormente, Haidt acrescenta um sexto fundamento como
forma de complemento à sua Teoria dos Fundamentos Morais original:
- Fundamento da Liberdade / Opressão – faz com que as
pessoas percebam e se ressintam de qualquer sinal de uma tentativa de
dominação. Dispara um sentimento de desejo de união para resistir e derrotar
opressores e tiranos. Este fundamento suporta tanto a noção de equidade e de
“anti-autoritarismo” na esquerda quanto o sentimentos “anti-opressão” e de “defesa
da liberdade” na direita.
PARTE III - “Moralidade une e cega”
Em linhas gerais, é focada na demonstração do conceito de
que a natureza humana é majoritariamente egoísta e individualista, mas com uma
camada grupal que resulta do fato de que a seleção natural opera em diferentes
níveis simultaneamente e que resulta em comportamentos surpreendentes e a
princípio incoerentes com o interesse do indivíduo.
Indivíduos competem contra outros indivíduos e esta
competição recompensa o individualismo, mas ao mesmo tempo, os grupos humanos competem
contra outros grupos permanentemente e esta competição favorece os grupos
compostos por verdadeiros “team players” – aqueles cujos integrantes estão
dispostos a cooperar e trabalhar pelo bem do grupo mesmo em detrimento de seus
interesses pessoais imediatos. Estes dois processos evolutivos complementares empurraram
a natureza humana em direções diferentes e nos deram a estranha mistura de
egoísmo e altruísmo que conhecemos hoje. A metáfora central desta terceira
parte é: “nós somos 90% chimpanzés e 10% abelhas”.
O lado “chimpanzé” da metáfora refere-se ao fato de nossas
mentes terem sido moldadas pela competição incansável de cada indivíduo com seu
vizinho. Nós somos descendentes de uma longa linhagem de vencedores no jogo da
vida social. Entretanto, a natureza humana incorporou mais recentemente uma nova
camada, um comportamento grupal extremamente importante – apesar de
majoritariamente chimpanzés, somos também um pouco como abelhas, no sentido de
sermos criaturas ultra-sociais com mentes moldadas pela incansável competição entre
grupos. Nós descendemos de antepassados cujo comportamento grupal os ajudou a
cooperar e vencer outros grupos. Isso não significa que nossos ancestrais fossem
“team players” incondicionais, apenas que eram adequadamente seletivos: quando
as condições necessárias se apresentavam, eles podiam entrar em um estado
mental de “um por todos e todos por um” em que passavam a trabalhar abnegadamente
por um objetivo comum, aumentando de forma coletiva as chances de prevalência
de seu grupo.
Este sentimento de ativação do “modo colmeia” em um grupo se
manifesta ainda hoje na paixão ou êxtase que a participação em rituais grupais
como esportes, raves, danças ou rituais religiosos podem ocasionar. É o tipo de
efervescência coletiva ou “ressonância límbica” que foi tão bem descrita no
livro “A General Theory of Love”, que já comentei aqui anteriormente.
A combinação de nossos comportamentos individualistas e
grupais pode ser resumido no conceito de Homo Duplex: vivemos a maior parte de
nossas vidas no mundo ordinário (profano), mas alcançamos nossas maiores
alegrias naqueles breves momentos em que transcendemos a níveis mais elevados
(coletivos) da existência. Somos projetados (por seleção natural) para nos
locomover entre ambos os níveis de existência.
Voltando ao tema da Teoria dos Fundamentos Morais, uma ideia
curiosa defendida no livro é a de que as pessoas não adotam suas ideologias
políticas aleatoriamente. Aqueles a quem os genes deram cérebros com maior
afinidade a novidades, variedade e diversidade e uma menor sensibilidade a
sinais de ameaça seriam predispostos (mas não predestinados) a se tornarem
liberais e a reagir às narrativas dos movimentos de esquerda. Aqueles cujos
genes conferiram cérebros com afinidades opostas seriam predispostos a se
alinhar com as narrativas da direita.
Entretanto, a partir do momento que a pessoa adota qualquer
um dos lados políticos ela é rapidamente incorporada à sua respectiva matriz
moral. O condutor de seu elefante passa a encontrar confirmação da narrativa de
seu grupo em todo lugar e é extremamente difícil convencê-la de que está errada
se você tentar argumentar estando do lado de fora de sua matriz.
Dado o diferente enfoque que a esquerda e a direita dão aos seis
fundamentos morais, pode-se deduzir que deve ser mais difícil para liberais
(que em geral não se consideram relevantes os fundamentos de Autoridade,
Santidade e Lealdade) entender os conservadores do que vice-versa. Em
particular, liberais têm dificuldade em visualizar e compreender o conceito de
“capital moral”, ou seja, o valor intrínseco de alguns recursos que sustentam
uma comunidade moral, como valores, virtudes, normas, práticas, tradições,
costumes, identidades e instituições, o que faz com que seja difícil para seu discurso
ser assimilado por um público que aprecie estes valores na mesma medida em que os
faz ter dificuldade em entender este público.
Em suma, a abordagem de Haidt é de que liberais e
conservadores, esquerda e direita são como yin e yang – ambos elementos
necessários para a vida política saudável de uma nação, como colocado por John
Stuart Mill. Liberais são especialistas no fundamento do Cuidado – eles
enxergam melhor as vítimas dos arranjos sociais e nos forçam a atualizar
continuamente esses arranjos. Por outro lado, conservadores oferecem um
contraponto fundamental aos movimentos de reforma liberal, em especial no que
tange à liberdade dos mercados e à proteção de estruturas e valores que são
caros a boa parte da sociedade.
Enfim, moralidade une e cega. Ela nos une a times
ideologicamente coesos que lutam entre si como se o destino do planeta estivesse
em jogo em cada batalha. Ela nos cega com relação ao fato de que ambos os times
são compostos por boas pessoas que podem ter algo importante a dizer. Ter esse
conceito em mente pode ajudar cada um de nós a compreender melhor o outro lado,
ou pelo menos a evitar entrar em discussões absolutamente inúteis no Facebook.
PS – na data em que escrevo este resumo, Jonathan Haidt pode
ser visto em uma participação rápida no documentário “The Social Dilemma”, que
acaba de ser lançado na Netflix
PS 2 – Haidt também será o convidado na segunda conferência
do Fronteiras do Pensamento, programada para o próximo dia 30 de setembro
PS 3 – Para uma obra mais recente dele, você pode acessar o
link para o meu texto sobre “The Coddling of the American Mind”.
É outro livro com um título incrivelmente difícil de traduzir, mas excelente...
sábado, 2 de maio de 2020
O Novo Iluminismo
“O novo Iluminismo – Em defesa da razão, da ciência e do humanismo” de Steven Pinker (Companhia das Letras, 2018) é exatamente o que o título indica: uma obra focada em fazer a defesa dos três pilares fundamentais do Iluminismo: a razão, a ciência e o humanismo, em um momento em que imaginaríamos não precisarem mais de defesa. Apesar de denso, com quase 700 páginas recheadas de excelentes referências bibliográficas, é surpreendentemente simples, direto e agradável de se ler. Logo nas primeiras páginas fica claro que Gates não estava exagerando quando fez seu comentário.
O último livro que abordei neste blog tratava de uma visão pessimista quanto aos rumos da humanidade ("A Nova Idade das Trevas"). Este é o extremo oposto. Nas palavras do próprio Pinker: “...essa avaliação desoladora do mundo é errada. E não apenas errada: erradíssima, espetacularmente errada, mais errada impossível.” e ele defende sua causa com uma clareza e um volume de dados impressionante distribuídos ao longo de 3 partes.
A 1ª parte trata da revisão do que consideramos em linhas gerais como o movimento do Iluminismo, bem como seu momento histórico e conceitos fundamentais. A 2ª parte foca em contestar, com dados objetivos, visões pessimistas ou catastrofistas do mundo contemporâneo em aspectos como riqueza, desigualdade, meio ambiente, saúde e segurança. A 3ª parte se concentra, finalmente, na defesa dos ideais iluministas. Iniciando com a 1ª parte, vamos assumir a definição de Iluminismo como apresentada atualmente pela Wikipedia:
“O iluminismo, também conhecido como século das luzes e ilustração, foi um movimento intelectual e filosófico que dominou o mundo das ideias na Europa durante o século XVIII, "O Século da Filosofia". O Iluminismo incluiu uma série de ideias centradas na razão como a principal fonte de autoridade e legitimidade e defendia ideais como liberdade, progresso, tolerância, fraternidade, governo constitucional e separação Igreja-Estado. Na França, as doutrinas centrais dos filósofos do Iluminismo eram a liberdade individual e a tolerância religiosa em oposição a uma monarquia absoluta e aos dogmas fixos da Igreja Católica Romana. O Iluminismo foi marcado por uma ênfase no método científico e no reducionismo, juntamente com o crescente questionamento da ortodoxia religiosa - uma atitude capturada pela frase Sapere aude (em português: "Atreva-se a conhecer").”
Para ter-se uma dimensão do que representou a Revolução Científica ocorrida neste período, tome-se a descrição do que o historiador David Wootton faz do que um inglês instruído “sabia” com toda segurança do mundo em 1.600, às vésperas da revolução industrial:
“Ele acredita que bruxas podem invocar tempestades para afundar navios no mar. [...] Acredita em lobisomens, ainda que por acaso essas criaturas não existam na Inglaterra – sabe que existem na Bélgica. [...] Acredita que camundongos surgem por geração espontânea em montes de palha. Acredita em magos contemporâneos. [...] Ele já viu um chifre de unicórnio, mas não um unicórnio. Ele acredita que o corpo de uma pessoa assassinada sangrará na presença do assassino. Acredita na existência de um unguento que, se for aplicado na adaga que causou um ferimento, curará o ferimento. [...] Acredita ser possível transformar metal sem valor em ouro [...] Acredita, obviamente, que a Terra é imóvel e que o Sol e as estrelas fazem um giro em torno dela a cada 24 horas.”
Apenas um século mais tarde, um descendente instruído deste inglês já não acreditaria em mais nada disso.
Além da razão e da ciência, o humanismo também tem um papel central no Iluminismo. Deixando para trás séculos de Cruzadas, Inquisição, guerras e caça às bruxas, os pensadores iluministas condenaram crueldades como escravidão, despotismo, punições sádicas e execuções por crimes triviais, colocando fim a práticas hoje consideradas bárbaras, mas extremamente comuns ao longo de milênios em diversas civilizações diferentes. Decorre ainda da fé na ciência e no humanismo o ideal iluminista de progresso, tanto em termos de evolução das leis e costumes, quanto da evolução científica. Todos aspectos que atuam em conjunto, levando a uma melhoria contínua do bem-estar das pessoas e uma gradual transformação do mundo em um lugar melhor.
Infelizmente, como um típico ser humano do início do século XXI e mais do que habituado a ler barbaridades nas time-lines das redes sociais, você já deve ter se acostumado com a ideia de que mesmo as coisas mais obviamente benéficas (como vacinas) ou mesmo os conceitos mais obviamente evidentes (como a Terra ser redonda), precisam de defesa. O mesmo vale para o Iluminismo. Pinker passa um capítulo na primeira parte apresentando um assustador elenco de movimentos contrailuministas religiosos, nacionalistas, filosóficos e intelectuais que são bem explorados ao longo do livro, sempre com referências a trabalhos recentes e muito interessantes. Como exemplos destas referências, posso citar alguns livros relativamente novos que abordei aqui nos últimos meses e que analisam movimentos bem recentes como a emergência da polarização e sua relação com o fenômeno da formação de tribos morais (“Moral Tribes”, de Joshua Greene) ou os problemas da crescente rejeição à livre exposição de ideias em universidades (“The Coddling of the American Mind”, de Lukianoff e Haidt).
Como já dito, a 2ª parte do livro trata da refutação, com dados, de pontos de vista saudosistas, pessimistas ou decadentistas sobre o estado atual da humanidade. É a parte mais extensa do texto e também a que inclui o maior volume de informações interessantes e surpreendentes, que demonstram de forma incontestável a brutal evolução da condição humana no último século em aspectos como desigualdade, expectativa de vida, saúde, meio ambiente, segurança, paz, democracia, terrorismo, conhecimento, igualdade de direitos e felicidade. Não vou me ater a cada um destes aspectos, mas gostaria de chamar a atenção para apenas dois pontos realçados por Pinker e que servem como exemplos do tipo de insight que são encontrados no livro sobre os temas do meio ambiente e da desigualdade.
Em “Moral Tribes”, que citei acima, Joshua Greene detalha como a polarização entre esquerda e direita nos EUA (assim como no Brasil), fez com que o tema do aquecimento global tenha passado a ser associado a uma bandeira de esquerda:
“Em 1998, pesquisas indicavam que eleitores Republicanos e Democratas apresentavam probabilidades praticamente iguais de concordar com o argumento de que a mudança climática estava realmente ocorrendo. De lá para cá, ao mesmo tempo em que as evidências científicas sobre o tema apenas aumentaram, surgiu uma curiosa divergência entre eleitores Republicanos e Democratas com relação ao assunto, a ponto de em 2010 um Democrata ter passado a ter uma probabilidade duas vezes maior de afirmar acreditar na mudança climática do que um Republicano. Isso não ocorreu por questões técnicas ou por um eventual menor acesso às informações científicas por parte dos Republicanos, mas simplesmente pelo fato do assunto ter tomado contornos políticos que levaram os dois partidos a se posicionar em campos opostos, forçando um grande número de eleitores Republicanos a ter de optar (até de forma inconsciente) entre aceitar racionalmente as opiniões dos especialistas no assunto ou simplesmente recusá-las e se comportar, então, como um bom e confiável membro de sua “tribo” política.”
A abordagem de Pinker, entretanto, vai mais além: ele questiona se o fato do democrata Al Gore ter abraçado a causa do aquecimento global no documentário “Uma Verdade Inconveniente” em 2006 não teria sido uma dos fatores principais do recrudescimento desta polarização e, assim, causado um dano irreparável à causa. Questiona ainda a racionalidade de bandeiras muito tradicionais de ambientalistas contrários a alimentos transgênicos e energia nuclear e o prejuízo que estas posições radicais causam ao meio ambiente ao influenciar a opinião pública contra as opções comprovadamente mais eficientes de geração de energia e produção de alimentos.
Pinker encara de frente também a questão da desigualdade e a incensada obra de Thomas Piketty, “O Capital no Século XXI”. Ele dedica um capítulo inteiro ao tema e a demonstrar que a desigualdade humana não pode ser usada como um contraexemplo para o progresso humano. Argumenta também que não estamos vivendo, ao contrário do que alega Piketty e as esquerdas ao redor do globo, uma distopia de rendas declinantes que teria revertido séculos de aumento da prosperidade. Defende que a tendência de longo prazo desde o Iluminismo é, na verdade, o aumento de riqueza para todos e, desmonta com surpreendente elegância o livro de Piketty em apenas um parágrafo. (Não, não vou reproduzir aqui, mas lhe desafio a encontrar).
Finalmente, a 3ª parte é dedicada especificamente aos ideais da razão, ciência e humanismo, cabendo um capítulo para cada um. Como no restante do livro, os argumentos são claros, convincentes e, acima de tudo, necessários.
Já estávamos vivendo uma época de polarização, escalada de autoritarismo e tendência ao desmonte de conquistas que considerávamos mais do que consolidadas. Com a pandemia de COVID-19, estes movimentos parecem ter se acentuado. Neste cenário, a obra de Pinker é um testemunho muito oportuno de fé na humanidade e no progresso e um necessário sopro de otimismo em um momento de profunda crise global. O comentário de Gates sobre o livro não é, de forma alguma, descabido.
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PS – Por uma dessas coincidências malucas do mundo, no momento em que escrevo isso, às 18:30 do dia 02 de maio de 2020, Warren Buffett está fazendo ao vivo a sua apresentação na reunião de acionistas da Berkshire Hathaway e estou ouvindo ao fundo. A mensagem que está passando agora: apesar de tudo, não há época melhor para se estar vivo do que agora em termos de bem-estar, direitos, segurança, paz, etc.. Impressionante a clareza de raciocínio e a energia deste senhor de 89 anos. Bom, estando com Gates e Buffett, Pinker está muito bem acompanhado...
domingo, 2 de fevereiro de 2020
A Nova Idade das Trevas
Os reflexos indesejáveis dos avanços da técnica e suas consequências reais ou potenciais são o tema do livro “A Nova Idade das Trevas - a Tecnologia e o Fim do Futuro”, de James Bridle (Todavia, 2018). Bridle é jornalista e escritor e colabora com veículos como o The Guardian, Atlantic e a Wired e conseguiu escrever um livrinho bem interessante e perturbador sobre o assunto.
Um dos pontos centrais do texto está na crítica à “opacidade” inerente aos sistemas de computação complexos, especialmente dos sistemas distribuídos (em rede). Como exemplo: um engenheiro mecânico que usa hoje uma ferramenta computacional de análise estrutural por elementos finitos para avaliar a resistência de uma peça automotiva que esteja projetando, compreende melhor ou pior os fenômenos físicos reais envolvidos na análise do que um engenheiro da década de 80 que não dispunha desse ferramental? Até que ponto o uso da ferramenta deixa a análise mais nítida e simples? Até que ponto o conhecimento fundamental envolvido na análise não passou a ficar concentrado apenas nas mãos dos poucos especialistas responsáveis projetar e implementar os algoritmos em que o software se baseia, em vez de compartilhado entre os milhares de usuários da ferramenta, que acabam tendo apenas uma noção superficial dos conceitos envolvidos? Um dos maiores especialistas brasileiros nesta área da engenharia costuma afirmar repetidamente que “se o engenheiro não sabe modelar o problema sem ter o computador, não deve fazê-lo tendo o computador”, mas receio que ele seja minoria. Nas palavras de Bridle:
“Aquilo que a computação busca mapear e modelar, ela acaba dominando. O Google se determinou a indexar todo o conhecimento humano e se tornou fonte e árbitro do conhecimento: tornou-se o que as pessoas pensam. O Facebook se determinou a mapear as conexões entre as pessoas – o grafo social – e se tornou a plataforma para essas conexões, reformatando irrevogavelmente as relações sociais. Assim como um sistema de controle aéreo que confunde uma revoada de pássaros com uma esquadra de bombardeiros, o software é incapaz de distinguir entre seu modelo de mundo e a realidade – e, uma vez condicionados, nós também não.”
Dado o grau de integração entre diferentes sistemas complexos e a intensidade destas interações, os sistemas computacionais são hoje complicados demais para que uma pessoa possa ter uma visão do panorama total – em grande medida, em qualquer projeto de sistema computacional, faz-se uso de componentes e módulos que operam como “caixas pretas”, que recebem entradas, resolvem problemas específicos e retornam saídas para o sistema principal, mas que não foram desenvolvidos e codificados pela mesma empresa que os aplica. Ou seja, a fé no desempenho adequado de cada módulo é um pré-requisito para o seu uso e para o sistema de forma geral. Esse modelo de pensamento de confiança a priori no software é a base para um viés cognitivo que nos leva a considerar que respostas automatizadas seriam inerentemente mais confiáveis que as não automatizadas – o viés da automação. Você já experimentou isso quando digitava um texto que sofreu uma correção ortográfica sobre a qual tinha dúvidas, mas que aceitou. Também experimentou quando deixou que o Waze o guiasse por um caminho pior do que o que faria normalmente. É o responsável, entre outras coisas, também por um número significativo de acidentes de aviação e motivo de preocupação crescente por parte das companhias aéreas.
O segundo ponto abordado por Bridle diz respeito ao clima, mais especificamente às consequências do aquecimento global e do aumento da concentração de CO2 na atmosfera. São abordadas algumas consequências pouco discutidas do aumento da temperatura e das quais poucas pessoas fora da comunidade científica têm conhecimento. Uma exemplo diz respeito ao derretimento de áreas congeladas a séculos, como o permafrost siberiano: no verão de 2016, o derretimento inédito de uma área na península de Yamal causou a exposição de carcaças de renas enterradas sob o permafrost. As carcaças estavam infectadas com bactérias antraz, que ficaram dormentes até serem novamente, causando um surto na região que levou à morte de uma criança e hospitalização de mais de 40 pessoas.
Outras consequências dizem respeito a aspectos tão variados quanto a queda no desempenho das transmissões sem fio, riscos para aviação em função do aumento de áreas de turbulência e um dos mais perturbadores de todos: a queda da capacidade cognitiva em função do aumento da concentração de CO2. A concentração de CO2 na atmosfera antes da revolução industrial variava entre 275 e 285 ppm, tendo começado a subir desde então e atingido 310 ppm em torno de 1950 e 400 ppm em 2015. Em um ambiente com uma concentração de 1.000 ppm de CO2, a capacidade cognitiva humana cai 21%. Pode-se considerar que ainda estaríamos longe disso e que não há garantias de que o ritmo de aumento irá se manter, mas fica a observação de que estamos falando de concentração em espaços abertos – em salas de aula de algumas escolas na California e no Texas já chegou-se a medir concentrações de 2.000 ppm ainda em 2012.
Segundo o filósofo Timothy Morton, o aquecimento global é um “hiperobjeto”: algo que nos envolve e afeta, mas que é tão grande que se torna impossível de ver por completo. Apenas podemos perceber os hiperobjetos por meio de suas influências nas coisas. Por estarem próximos demais e ainda assim tão difíceis de enxergar, são difíceis de dominar e controlar e requerem uma quantidade enorme de computação para modelar.
É um conceito interessante. Talvez ajude a explicar a ainda grande resistência em se aceitar a realidade do aquecimento global, mesmo dada a enorme quantidade de estudos indicando o fenômeno. Quando olhamos para a abundância de informações que nos foi tornada acessível pelo advento na Internet sobre esse e uma infinidade de outros temas, seria de se esperar que o acesso generalizado a vastos repositórios de conhecimento iluminaria o mundo e colaboraria para a solução dos problemas. Curiosamente, entretanto, em vez da emergência de um consenso coerente, o que se viu foi o despertar de narrativas fundamentalistas simplistas, teorias da conspiração e pós-verdades.
Além dos dois pontos que abordei acima (opacidade dos sistemas computacionais complexos e efeitos climáticos negativos da atividade humana), o livro aborda ainda uma série de outras questões, como a queda na eficiência no desenvolvimento de pesquisas de medicamentos, o aumento do poder das burocracias e o uso excessivo de dispositivos eletrônicos por crianças para traçar uma perspectiva preocupante de futuro, ao considerar a confluência de todos estes fenômenos em um mesmo momento histórico. É exageradamente pessimista em alguns trechos e faz algumas extrapolações questionáveis, mas traz uma visão diferente de alguns tópicos sobre os quais pensamos pouco no dia-a-dia, mas que realmente mereceriam pelo menos um pouco mais de atenção.