domingo, 29 de setembro de 2024

A Geração Ansiosa / The Anxious Generation – How the Great Rewiring of Childhood Is Causing an Epidemic of Mental Illness

Alguns meses atrás, indiquei para alguns amigos próximos o novo livro do Jonathan Haidt, “The Anxious Generation” (A Geração Ansiosa), que estava para ser lançado no Brasil e que achei que pudesse vir a fazer algum barulho. Coincidência ou não, algumas semanas após a publicação do livro por aqui, a discussão sobre o seu tópico principal (o uso de celulares por crianças e adolescentes), esquentou a ponto de se tornar tema de cartilhas do governo e de projetos de lei visando a proibição nas escolas. O tema é controverso, mas o livro de Haidt trata-o de forma bem clara e objetiva. O que segue é um breve resumo dos seus pontos principais e que imagino/espero que possam servir como um incentivo à sua leitura, pelo menos para aqueles com filhos ainda pequenos – não é o meu caso, mas afirmo com sinceridade que realmente gostaria de ter tido acesso a ele uns 10/12 anos atrás. 


Para dar algum contexto: comentei anteriormente 2 livros de Haidt muito interessantes: “A Mente Moralista”  e “The Coddling of the American Mind”. Neste segundo em particular (ainda pré-pandemia), Haidt já abordava como a cultura moderna de superproteção de crianças e adolescentes poderia ser danosa. Agora, em “A Geração Ansiosa” o ponto central evolui para como a combinação entre a superproteção no mundo real com a contraditória completa ausência de proteção no mundo virtual vem afetando uma geração inteira, apresentando uma análise bastante criteriosa dos efeitos desse binômio sobre as crianças e adolescentes nascidos após 1995 (a Geração Z), a primeira a conviver ainda na puberdade com a convergência de 4 movimentos tecnológicos: 

- A disseminação da internet de banda larga; 

- A introdução do iPhone em 2007 e a revolução dos smartphones; 

- O advento de uma nova era hiperviral das mídias sociais a partir de 2009, especificamente após a inclusão e disseminação dos botões de “like” e “share”; 

- A introdução das câmeras frontais nos celulares em 2010 e a aquisição do Instagram pelo Facebook em 2012, com o consequente aumento exponencial do número de adolescentes postando selfies cuidadosamente editadas. 

Haidt vê a geração Z como a cobaia em um processo de mudança radical da forma de crescer, um experimento social global em que crianças e adolescentes de repente passaram a carregar de forma constante em seus bolsos um portal de acesso a um mundo de interações complexas e instantâneas, completamente diferentes das proporcionadas de forma gradativa pela experiência tradicional de crescer em um mundo de relações reais. Um portal para um ambiente potencialmente muito tóxico, em que o menor deslize pode ser visto e criticado por uma infinidade de pessoas muito rapidamente, resultando em uma sensação de ansiedade permanente. 

O livro é dividido em 4 partes: na primeira, Haidt apresenta e explica as tendências relacionadas à degradação da saúde mental entre os adolescentes a partir de 2010; a segunda parte trata da natureza da infância e de como conseguimos estragá-la; a terceira detalha os malefícios da nova infância baseada em telefones; e a quarta parte apresenta sugestões práticas sobre o que devemos fazer, já, se pretendemos tentar reverter ou pelo menos parar de aprofundar os danos nas nossas famílias, escolas e sociedade. 

A primeira parte inclui uma gama bastante ampla de dados e gráficos de evolução da saúde mental dos adolescentes e jovens americanos e retrata um aumento muito significativo dos diagnósticos de ansiedade e depressão nesta faixa etária. Mais grave ainda, indicam um acréscimo nítido nas taxas de suicídio de meninos e meninas americanos de 10 a 14 anos entre 2010 e 2020 (alarmantes 91% no caso dos meninos e 167% no caso das meninas). Mais do que correlação, Haidt supõe uma relação direta de causalidade entre a evolução dos smartphones com acesso contínuo a mídias sociais e jogos online e a degradação da saúde mental dos adolescentes. Foca especialmente nos efeitos sobre as meninas, cujas taxas de ansiedade, depressão e automutilação aumentaram de forma bem mais acentuada que as dos meninos, uma diferença relacionada diretamente com o tipo de experiência digital dos dois gêneros, sendo meninas usuárias mais intensivas de redes sociais, enquanto meninos usuários mais intensos de jogos, mas também muito afetados pelo consumo de outros tipos de conteúdo como pornografia online. 

Apesar dos dados quantitativos apresentados serem majoritariamente referentes aos EUA, Haidt também analisa resultados de pesquisas similares feitas em diversos outros países, extrapolando o problema para um fenômeno global e não restrito aos países de língua inglesa. A segunda parte explica e defende a importância do aprendizado social e da brincadeira livre na infância, mas também retoma a condenação de Haidt à cultura de superproteção (“safetyism”) disseminada desde os anos 90 e que vem limitando o acesso das crianças a uma série de experiências necessárias para seu crescimento saudável. 

É um tema de que tratou de forma extensa em “The Coddling of the American Mind”, mas que aqui ganha o reforço de uma abordagem nova e bem interessante de correlação da infância com o conceito de antifragilidade cunhado por Nassim Nicolas Taleb em “Antifrágil”. Por “antifrágil” entenda-se um grupo de especial de entidades que não quebram quando submetidas a esforços ou impactos externos (como as frágeis) e nem simplesmente resistem a eles (como as resilentes), mas que, por outro lado, beneficiam-se da exposição a esforços e impactos e saem melhores que antes da experiência; precisam, mesmo, desta exposição para desenvolverem-se. É neste grupo que Haidt inclui as crianças e adolescentes. 

A cultura de superproteção (ou “safetyism” na terminologia do livro) e a consequente privação das crianças das experiências necessárias no mundo real para seu pleno desenvolvimento, já era denunciada por Haidt como uma das causas fundamentais da crise de saúde mental da Geração Z. Entretanto, ela não é nova e cabe dizer que os Millenials também foram submetidos a este mesmo bloqueio de experiências, embora sem as mesmas consequências. Seria apenas após o advento de um segundo grande bloqueador de experiências – o smartphone – e a combinação de ambos os efeitos, que o problema começaria a ficar realmente grave. 

Na terceira parte, Haidt detalha as formas pelas quais a experiência da infância mudou radicalmente com o advento dos smartphones e indica quatro consequências danosas de seu uso por crianças:

- Privação social – o uso dos telefones derrubou de forma gritante a quantidade de tempo de interação dos adolescentes com amigos no mundo real, de uma média de 122 minutos por dia em 2012 nos EUA para 67 minutos em 2019; 

- Privação de sono – o sono dos adolescentes piorou em termos de quantidade e qualidade em todo o mundo desenvolvido, diretamente associado ao uso dos smartphones e tendo como efeitos depressão, irritabilidade, ansiedade e déficit cognitivo; 

- Fragmentação da atenção – com notificações constantes na tela, muitos adolescentes são incapazes de ter mais do que 5 ou 10 minutos para pensar sem serem interrompidos; 

- Vício – as técnicas avançadas de captura de atenção e retenção do tráfico online aplicadas nos sistemas das mídias sociais transformam crianças e adolescentes em “heavy users” muito rapidamente. 

São detalhadas em profundidade as especificidades dos efeitos do uso excessivo de celulares e mídias sociais sobre meninas e meninos e os impactos em aprendizado escolar e social. É também estabelecida a já mencionada relação causal entre as mídias sociais e o incremento dos casos de ansiedade e depressão. 

Até aqui, o livro pode ser visto como uma contribuição complementar a outras obras anteriores que abordam o problema, como “A Era do Capitalismo de Vigilância” de Shoshana Zuboff ou “Nação Dopamina” de Anna Lembke, mas é finalmente na quarta e última parte, que chega-se ao ponto em que o texto abandona a passividade de um simples relato e passa a apresentar a suas propostas práticas para a reversão deste cenário. 

Qualquer pai que já tenha tentado resistir a dar a seus filhos um primeiro celular sabe exatamente a armadilha que enfrentou: ninguém quer ver seu pré-adolescente afundado em um telefone, mas o argumento de que “Todo mundo tem celular. Preciso de um. Se eu não tiver o meu estarei excluído de tudo.” é simplesmente forte demais – o medo de ver seu filho convertido em um pária social faz com que mesmo os pais mais relutantes acabem cedendo e dando a seus filhos celulares em idades cada vez mais baixas. 

A saída sugerida por Haidt para essa armadilha passa por diversas dimensões: do estabelecimento de leis e normas governamentais que protejam menores no ambiente online e forcem as empresas de tecnologia a estabelecer mecanismos eficientes de verificação etária, até a ação coletiva e coordenada dos pais com a comunidade escolar no sentido de banir telefones nas escolas e abrir espaços para brincadeiras livres, sem supervisão. Haidt apresenta recomendações detalhadas para diferentes faixas etárias: 

- de 0 a 24 meses – uso limitado a chat com parentes distantes, sendo que dos 18 aos 24 meses pode ser feita a introdução limitada de programação educacional com supervisão adulta. 

- de 2 a 5 anos – Limite de tempo de tela não-educacional a 1 hora por dia de semana e máximo de 3 horas nos finais de semana. Telas desligadas em todas as refeições e passeios e não utilização de telas como “chupetas eletrônicas”. Telas desligadas e removidas do quarto entre 30 a 60 minutos antes da hora de dormir. 

- de 6 a 12 anos – Em linhas gerais, não mais do que 2 horas por dia de tempo de tela recreacional, mas o foco deve ser mais em maximizar o tempo de atividades presenciais e no tempo de sono do que em minimizar o tempo de tela, mantendo-se uma observação constante com relação a sinais de uso problemático de tecnologia. 

- de 13 a 18 anos – Celulares devem ser dados apenas a partir do ensino médio. Contas em mídias sociais não devem ser abertas antes dos 16 anos. Escolas devem ser ambientes sem telefones. 

Note que alguns parágrafos atrás eu mencionei um binômio: enquanto parte da crise de saúde mental da geração Z é relacionada com o advento e onipresença dos smartphones, o outro pilar está na cultura de superproteção. Esse ponto é bastante estressado por Haidt no livro e muitas de suas sugestões sobre como lidar com o problema envolvem intervenções visando o aumento da autonomia e independência das crianças e adolescentes, como oferecer aos filhos oportunidades de se deslocar de forma autônoma pela cidade, dar responsabilidades nas atividades domésticas, oferecer às crianças espaços para brincadeiras livres e sem supervisão e encorajar nos adolescentes viagens e passeios com os amigos. 

É aí, a meu ver que a questão se complica. Embora imagine ser relativamente fácil chegar-se a um consenso sobre proibição de celulares em escolas (como pode ser visto hoje na facilidade com que o projeto de lei a respeito do tema une bancadas de campos ideológicos opostos e deva ser aprovado com alguma rapidez), quando se aborda as questões relacionadas à cultura de superproteção, a conversa azeda. É um tema muito mais controverso e que suscita discussões acaloradas mesmo dentro do ambiente familiar: você pode ser completamente a favor de conceder autonomia a seus filhos e sugerir que sua filha vá à escola de bicicleta alguns dias na semana, enquanto seu parceiro pode ser radicalmente contrário, por exemplo. Você pode achar uma boa ideia seu filho de 12 anos sair da escola para almoçar fora alguns dias, mas os pais dos amigos dele podem não concordar. São opiniões que têm a ver desde com a forma como você foi criado até com os medos e fobias que foi incorporando aos poucos, ao longo da sua experiência de vida. Têm a ver com legislações bem intencionadas, mas mal interpretadas. Têm a ver com a sua preocupação com as opiniões de seus vizinhos e amigos. 

O grande mérito de Haidt, à parte as observações e recomendações referentes ao uso de tecnologia, está justamente em trazer luz e questionar um tipo de comportamento superprotetor que poucos veem como um problema, mas que traz consequências sérias. É como sinaliza o subtítulo de “The Coddling of The American Mind”: boas intenções e péssimas ideias podem estar condenando uma geração ao fracasso e já passou da hora de agirmos. A proibição de celulares nas escolas, se aprovada, será um grande passo, mas não nos iludamos imaginando que será a solução por si só.

sexta-feira, 21 de abril de 2023

A Era do Capitalismo de Vigilância – A Luta por um Futuro Humano na Nova Fronteira do Poder

Tenho uma amiga de escola que até hoje tem o costume de enviar SMS (!) para os amigos em aniversários, Natal e outras datas importantes. Não usa WhatsApp. Não tem, nem nunca teve nenhuma conta em redes sociais. Deve ter um endereço de e-mail, mas não tenho certeza. Ela vive de forma quase analógica e é provavelmente a única pessoa que conheço com mais de 7 anos de idade que consegue operar de forma off-line no mundo de hoje. Também é, provavelmente, uma das últimas pessoas imunes à mineração de seu comportamento pelas Big Tech, ou, como denominados por Shoshana Zuboff em sua obra mais famosa, pelos “Capitalistas de Vigilância”.

“A Era do Capitalismo de Vigilância” (Intrínseca, 2021) é um tapa na cara dividido em 3 partes, ao longo de 800 páginas e é, em síntese, um alerta sobre o modelo de negócio inédito adotado pelas grandes empresas de tecnologia (principalmente Facebook, Microsoft e Google) ao longo dos últimos 20 anos e as mudanças sociais profundas que este modelo está operando de forma incremental e sutil, quase imperceptível, mas cujo impacto tem potencial para ser tão significativo quanto os efeitos da revolução causada pelo advento do capitalismo industrial no final do século XIX.


A primeira parte é dedicada a detalhar como emergiu o modelo atual de receita destas empresas, que utiliza como matéria-prima o que Zuboff batizou de “superávit comportamental”. É mais um dos vários termos novos introduzidos no livro. Na verdade, muitos conceitos apresentados são novos e navegam por temas ainda muito pouco explorados, de modo que a sensação da leitura é muito parecida com a de ler-se o “Gene Egoísta” de Dawkins, por exemplo – traz a certeza de que temos nas mãos um texto que apenas começa a arranhar um tema, mas que está destinado a se tornar sua obra de referência.

Superávit comportamental refere-se a todos os dados colaterais ou subprodutos gerados por nossa atividade digital. Por exemplo, no caso de uma busca feita no Google, seriam dados como as palavras usadas, a forma como a busca é formulada, pontuação, localização, padrão de cliques ou tempo de visualização. Inicialmente eram dados coletados e armazenados a esmo sem um objetivo específico, mas que passaram a ser insumos para a construção de perfis detalhados dos usuários, valiosos do ponto de vista comercial e cuja mineração, em última instância, tornou-se a base do modelo de negócios das Big Tech.

“(...) com frequência as pessoas declaram que o usuário é o “produto”. Isso também é incorreto (...), os usuários não são produtos (...), são fontes de suprimento de matéria-prima.”

Zuboff correlaciona o momento da descoberta do valor do superávit comportamental com o estouro da bolha das ponto-com em 2000, quando a pressão do mercado por resultados no Vale do Silício impôs uma espécie de “estado de exceção” ao Google e lhe conferiu uma espécie de carta-branca moral para justificar o abandono de sua antipatia histórica por anúncios e sua posição contrária ao financiamento de mecanismos de busca por meio de publicidade (que implicaria em parcialidade), bem como legitimar perante equipe e mercado uma etapa de busca ativa de novas fontes de receita e de um diferencial competitivo que garantisse sua lucratividade e perpetuação.

Para tanto, a empresa recorreu no final de 2000 à até então minúscula equipe de 7 pessoas do AdWords e deu o primeiro passo na captura de valor do superávit comportamental através da vinculação dos anúncios não mais a simples palavras-chave, mas sim ao banco de dados individuais de cada usuário que somente o Google tinha à disposição. Essa abordagem única foi identificada como a melhor maneira de garantir relevância aos usuários e proporcionar um valor inédito aos seus verdadeiros clientes, os anunciantes.

A partir deste ponto chave na história das Big Tech, o livro prossegue detalhando o aumento da sofisticação e da profundidade dos mecanismos de coleta / mineração do superávit comportamental ao longo dos anos seguintes, bem como descrevendo o contexto histórico que possibilitou o florescimento e fortalecimento praticamente incontestado deste mecanismo até chegar ao próximo estágio da evolução do modelo, descrito na parte II do livro, que trata da migração do mesmo do ambiente on-line puro para o mundo real.

“(...) o superávit comportamental deve ser vasto, mas também variado. Esse esforço deve ser elaborado tendo em vista duas dimensões: a primeira, extensão das operações de extração do mundo virtual para o “real” (...). Os capitalistas de vigilância compreenderam que sua riqueza futura dependeria de novas rotas de suprimento (...). A extensão quer estar na sua corrente sanguínea e na sua cama, na sua conversa do café da manhã, no seu meio de transporte, na sua corrida, na sua geladeira, na sua vaga de estacionamento, na sua sala de estar”

Inicialmente a mineração de dados comportamentais ocorria apenas no ambiente da internet e destinava-se especificamente ao direcionamento de publicidade. Entretanto, com o aumento da sofisticação da tecnologia e da difusão da prática da extração destes dados para fora da internet tradicional, através de dispositivos do mundo real agora conectados à rede, um novo imperativo de diferenciação surgiu como forma de resposta à pressão por receitas sobre as empresas do setor, o da predição de comportamento. Pense em como hoje você entra no seu carro e seu celular já sabe para onde você costuma ir em determinados horários a cada dia da semana e já lhe mostra o tempo previsto para seu destino sem que você precise introduzir nenhuma informação no sistema de GPS, por exemplo. Agora imagine o valor comercial desta informação.

A parte II prossegue abordando a terceira e mais audaciosa fase da evolução do modelo: a de modificação do comportamento. São fornecidos diversos exemplos e apresentados casos como, por exemplo, o de um teste conduzido pelo Facebook nas eleições americanas de 2010, em que um grupo de pesquisadores manipulou os feeds de notícias de 61 milhões de usuários exibindo uma mensagem incentivando os mesmos a votar. Esta mensagem incluía um botão “Eu Votei”, com contador, mas em duas diferentes versões. Parte dos usuários recebeu a mensagem com o botão e um contador simples, enquanto parte recebeu o contador acompanhado de fotos de amigos que já haviam clicado no botão. Os resultados demonstraram uma probabilidade 2% maior destes últimos clicarem no botão e a estimativa foi de que esta ação tenha levado cerca de 340.000 pessoas adicionais a votar nesta eleição específica. (O estudo é descrito no artigo “A61-Million-Person Experiment in Social Influence and Political Mobilization”)


Finalmente, a parte III se dedica a acompanhar a fase seguinte, em que não mais o indivíduo, mas a própria sociedade passa a ser o novo objeto de extração e controle e a analisar as consequências do avanço deste novo poder “instrumentário” (como denominado por Zuboff), traçando um paralelo entre a evolução do Capitalismo Industrial ao longo do século XX e seus impactos em diversas dimensões (social, política, ambiental, econômica, etc.), e a evolução já percebida e a esperada do Capitalismo de Vigilância e suas possíveis consequências.

É um texto longo, profundo e muito bem construído, que busca alertar a sociedade para o ineditismo da situação que temos enfrentado ao longo dos últimos 20 anos e que nos pegou de surpresa, sem termos ainda arcabouços éticos, morais ou legais capazes de lidar adequadamente com os graves desafios que a emergência deste novo modelo de negócio nos impõe, mas que temos assimilado com surpreendente naturalidade e sido induzidos a aceitar como normal e inevitável. A humanidade se depara com uma situação inédita, que está evoluindo de forma muito acelerada e o livro propõe justamente o questionamento de sua suposta “normalidade”. Para tanto, faz um trabalho extraordinário dando nome e forma a muitos aspectos e conceitos envolvidos nesse novo modelo econômico e nos equipa com um ferramental conceitual poderoso, que abre caminho através da fumaça dos supostos benefícios de um mundo hiperconectado e possibilita vermos com clareza o que estamos realmente queimando nesse processo.


PS – Ao escrever o último parágrafo, abri o meu navegador para checar a grafia correta de uma palavra. Recebi a mensagem abaixo. Aparentemente sigo forte na minha condição de matéria-prima...



sábado, 10 de abril de 2021

Hello, Brasil! e outros ensaios

Faleceu em 30 de março o psicanalista, ensaísta e escritor italiano Contardo Calligaris, autor de “Hello, Brasil! e outros ensaios – Psicanálise da estranha civilização brasileira” (Editora Três Estrelas, 2017), uma excepcional análise da sociedade brasileira feita a partir de sua condição de imigrante europeu do final dos anos 80. É um livro pequeno, mas repleto de insights muito interessantes sobre diversas peculiaridades do povo brasileiro que são ao mesmo tempo estranhas aos olhos de quem nos visita e invisíveis a nós mesmos, de tão enraizadas que estão em nosso comportamento. 



O livro não chega a ser extraordinariamente complexo, mas alguns dos ensaios requerem um certo esforço e não são simples de se resumir em alguns parágrafos, o que vou deliberadamente evitar fazer aqui. Os temas englobam colonização, os paralelos entre os processos colonizatórios nas Américas do Sul e do Norte, os desejos de emigração, criminalidade, corrupção, consumo, aniversários e filhos entre outros. Vou me limitar a reproduzir alguns pequenos trechos, como exemplo do que se pode esperar encontrar nas análises de Calligaris: 

Sobre a autoimagem do país: “Este país não presta”. É uma frase corriqueira (...). Causa-me estranheza ainda a facilidade com que, mesmo em situações que não são extremas, é enunciado – como prova e demonstração – um projeto de emigração: aqui não presta, vamos embora para um lugar que preste. (...) A frase pareceria natural se fosse dita por um estrangeiro, mas, como enunciação dos próprios brasileiros, ela surpreende.” 

Sobre a relação com as crianças: “O Brasil me aparece como o paraíso das crianças. (...) De um hotel cinco estrelas é exigido que haja uma sala de jogos eletrônicos para as crianças e que se prevejam atividades infantis. Assusta-me a insistência com que se defende a necessidade de “lúdico” na aprendizagem (...). Em algumas das melhores escolas privadas, decorar as lições é considerado um ato de tortura impingido às crianças. Assombra-me a importância que assume a programação das crianças na vida cotidiana (...). O adulto brasileiro parece constantemente preocupado com o prazer das crianças. Para ser breve: no Brasil, a criança é rei”. 

Sobre contracepção: “A primeira vez que uma paciente brasileira me falou da decisão, tomada de comum acordo pelo casal, de seu marido sofrer uma vasectomia, pensei que estava lidando com alguma patologia do laço conjugal. Aos poucos, como se sucedessem as vasectomias projetadas e feitas de fato, eu me daria conta de que tal cirurgia era uma prática culturalmente comum. Não sem que eu estranhasse.” 

Sobre a obsessão em “tirar a cidadania” de outros países: “O apelo ao pai antigo encontra sua expressão mais simples nas filas diante dos consulados para pedir nacionalidade e passaporte aos países da origem da linhagem que emigrou. É uma corrida de obstáculos burocráticos e um investimento considerável de tempo e dinheiro (...). Quase todos dizem que fazem isso para os filhos, de maneira que possam viajar mais facilmente, estudar “lá fora”, conseguir trabalho e sobretudo viver em segurança. O efeito mais provável é um enfraquecimento suplementar da identidade nacional dos filhos, os quais cresceriam com a sensação de que o que os pais querem para eles é que tenham uma chance de ir embora...” 

“Em 2005, produziu certo alvoroço a notícia de que a primeira-dama brasileira, Marisa Letícia, obtivera a cidadania italiana (...). Acrescentou, porém que tinha feito os trâmites por insistência dos filhos, para “dar uma oportunidade” aos meninos. Era no mínimo curioso: os filhos do presidente do Brasil confirmavam que a “oportunidade” para eles estava na Itália, não aqui”. 

E por aí vai. É uma obra sincera, sem meias-palavras, que chama à reflexão e abre os olhos para alguns vícios e vieses importantes de nosso comportamento como sociedade. Merece ser lido com atenção. 

OBS.: Contardo Calligaris participou da edição de 2019 do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, que versou sobre o tema “Os Sentidos da Vida”. O resumo de sua conferência e um vídeo curto podem ser acessados no link:

sábado, 17 de outubro de 2020

Everybody Lies – Big Data, new data and what the Internet can tell us about who we really are

Uns 15 anos atrás, Steven Levitt e Stephen Dubner publicaram "Freakonomics", um best-seller que aplicava a abordagem dos economistas a análise de assuntos do dia a dia, do comportamento de corretores de imóveis e lutadores de sumô, a causas não-convencionais para queda da criminalidade em Nova York. Foi um grande sucesso e influenciou o cientista de dados Seth Stephens-Davidowitz a buscar dar o passo seguinte com "Everybody Lies", basicamente uma versão turbinada de "Freakonomics".



A diferença fundamental entre eles, entretanto, é que Davidowitz tem hoje acesso a uma massa infinitamente maior de dados e ferramentas muito mais poderosas para analisá-los. E isso faz toda a diferença.

Uma das fontes utilizadas nas análises de Davidowitz, por exemplo, está nos dados consolidados de buscas realizadas no Google – ele avalia os números de perguntas similares feitas sobre um determinado tema em diferentes regiões e momentos para analisar tópicos como a eficácia de discursos do Obama em diminuir o preconceito contra muçulmanos, a prevalência do racismo em diferentes regiões americanas ou as neuras sexuais dos internautas.

Mas porque o título “Everybody Lies”? Bom, a grande sacada de Davidowitz foi perceber que a tela de consulta do Google e o comportamento on-line em parte dos sites funcionam como um grande “soro da verdade”. Todo mundo (normal) se preocupa com a própria imagem no dia a dia, no Facebook, no médico ou mesmo ao responder uma pesquisa de opinião, mas se comporta de forma bem mais livre e autêntica quando não tem ninguém olhando, inclusive quando faz suas buscas no Google ou navega de forma anônima. Cruzar os dados de uma rede social com outras bases que não sejam enviesadas pela preocupação com imagem pode resultar em incoerências surpreendentes e bem interessantes. Por exemplo: é muito provável que ao pesquisar a sua rede de amigos no Facebook, você vá encontrar mais gente seguindo publicações como “The Economist” ou “Harvard Business Review” do que “Caras”, mas quando você for até a casa deles, qual revista vai encontrar?

O livro foi publicado em 2017, ou seja, antes do sucesso atual de “The Social Dilemma” na Netflix. Entretanto, um de seus insights mais interessantes é justamente com relação ao consenso de que a internet e as redes sociais estariam agravando a polarização política. Com base em um estudo realizado pelos economistas Matt Gentzkow e Jesse Shapiro em 2011, que coletou dados sobre o comportamento de um grande número de americanos de diferentes linhas ideológicas e avaliou o grau da segregação política na internet, Davidowitz sugere uma abordagem diferente:

Nós tendemos a ter um número muito maior de amigos no Facebook do que na vida real. Nossa lista de contatos nas redes sociais incluem pessoas como aqueles conhecidos do tempo de escola com quem nunca mais falamos, vizinhos de condomínio, ex-colegas de trabalho, o amigo do primo que conhecemos 10 anos atrás e mais um monte de gente que nunca convidaríamos para jantar em casa ou para um churrasco no final de semana. Entretanto, todo esse pessoal publica seus comentários e links e frequenta a nossa timeline diariamente, fazendo com que sejamos expostos a opiniões e assuntos a que dificilmente teríamos acesso dentro da nossa bolha de relacionamentos próximos, que tendem naturalmente a ser muito mais alinhados com as nossas próprias posições e realidade. Em suma, a internet acaba se tornando um ponto de contato entre pessoas com perfis muito mais diversos do aquelas com quem temos contato diário no mundo físico. Você pode ser um liberal que passa sua manhã com uma esposa e filhos liberais, a tarde com seus colegas de trabalho liberais, volta para casa ouvindo a rádio liberal a que se acostumou, mas à noite, quando acessa o Facebook, tem contato com os posts conservadores radicais de seu ex-colega de escola. Esta será provavelmente sua maior exposição a opiniões conservadoras no dia todo e este contraponto não é algo necessariamente ruim. 

“Everybody Lies” apresenta diversas análises de dados similares a esta, que desafiam o senso comum em áreas como comportamento, esportes, educação e política. É uma obra curta, mas muito interessante. Vale a pena.  

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

The Righteous Mind – Why Good People are Divided by Politics and Religion

Ainda em 2012, o doutor em psicologia Jonathan Haidt publicou um livro extraordinário buscando responder à pergunta que hoje todos nós nos fazemos diariamente ao navegar pelas timelines de nossas redes sociais: Por que tanta gente inteligente e bem intencionada pode ter posições tão diferentes sobre temas fundamentais como política? E, principalmente, por que essas pessoas desenvolvem com tanta facilidade a plena convicção de que os de posição diferente da sua são completos idiotas?

“The Righteous Mind – Why Good People are Divided by Politics and Religion” (Vintage, 2013), tem um título particularmente difícil de traduzir. A edição brasileira recebeu o título de “A Mente Moralista”, embora eu considere que “Righteous” tenha um sentido um pouco mais forte do que “Moralista”. Segundo o dicionário de Cambridge, por exemplo, se refere a “pessoas que se comportam de uma forma moralmente correta”, mas acho que a intenção de Haidt no título era dar uma abordagem mais próxima de “self-righteous”... ou “pessoas que acreditam que suas ideias e comportamentos são moralmente superiores ao de outras pessoas”. Para quem leu Pollyanna, um bom exemplo seria a tia solteirona de Pollyanna. Ela é “self-righteous” até os ossos. Imagine-a vivendo hoje no Brasil com uma conta de Whatsapp na mão...



O livro é dividido em três partes, cada uma associada a uma metáfora diferente desenvolvida para resumir um conceito fundamental.

PARTE I - “Intuições vêm primeiro, raciocínio vem depois”

A primeira parte é “Intuições vêm primeiro, raciocínio vem depois”. Ela compara a mente humana a um elefante enorme com um “condutor” (um cavaleiro) em cima dele, mas cujo trabalho é servir ao elefante e não vice-versa. Nessa metáfora, o elefante representa nosso pensamento intuitivo, enquanto o condutor representa o pensamento racional. Esta dualidade  é bastante similar à defendida por Daniel Kahneman em “Rápido e Devagar”, mas a abordagem é um pouco diferente. Para Haidt, é nítido que o chefe é o elefante (emoção / intuição) e que o condutor (razão) existe para servi-lo.

“Portanto, se você quer mudar a opinião de alguém com relação a um tema moral ou político, fale primeiro com o elefante. Se você pedir às pessoas para acreditar em algo que viola as suas intuições, elas irão dedicar todos os seus esforços a encontrar uma saída – uma razão para duvidar de seus argumentos ou conclusões. E vão conseguir quase sempre.”

Especialmente quando as discussões se tornam hostis, o elefante começa a se inclinar para longe do oponente e o condutor (seu servo) vai trabalhar freneticamente para encontrar dados e motivos “racionais” para refutar todos os argumentos que receber. Inclusive no Google.

Um dos insights mais importantes apresentados nesta parte é justamente neste sentido e é bem pouco intuitivo: apesar de gostarmos de nos ver como criatura racionais, nossa consciência opera em grande medida com o objetivo descarado de persuadir em vez de analisar. A conclusão deprimente de cientistas cognitivos que pesquisaram o raciocínio humano ao longo de anos é que ele se desenvolveu como uma ferramenta para nos ajudar a argumentar, persuadir e manipular outras pessoas e não para nos ajudar a “descobrir a verdade”. Esta conclusão se aplica inclusive no nosso auto convencimento, ou seja, o condutor trabalha muito também para justificar e nos convencer da validade e moralidade de nossas próprias ações, preservando nossa autoimagem de boas pessoas mesmo quando temos atitudes bastante questionáveis. É por isso que o chamado “viés de confirmação” é tão poderoso e difícil de combater.

Nosso pensamento moral é muito mais como um político caçando votos do que um cientista buscando a verdade.”

Ter esse conceito em mente é fundamental para se ter uma conversa minimamente produtiva com alguém cujo elefante está apontado para um lado oposto ao seu: argumentos puramente racionais não falam ao elefante – ele responde à emoção, não à razão. Enquanto o elefante do outro não estiver sensibilizado e disposto a se inclinar pelo menos um pouco para o seu lado, não adianta nem tentar argumentar com o condutor.   

Especialmente quando se trata de temas morais ou políticos a situação se agrava um pouco mais. Nestes temas temos também uma tendência a um comportamento mais grupal do que individualista – nós aplicamos nossas habilidades de raciocínio para apoiar a posição de nosso time e para demonstrar nosso compromisso com ele, de modo que a chance de se convencer alguém em uma discussão pública na internet a mudar de ideia com relação a um ponto importante na estrutura moral de seu grupo político é completamente impossível. Desista. (especificamente sobre esse comportamento tribal, pode ser interessante conhecer também os argumentos de Joshua Greene em “Moral Tribes

PARTE II - “Há mais na moralidade do que apenas cuidado e justiça”

Nesta parte são apresentadas seis diferentes dimensões ou fundamentos do pensamento moral e a metáfora usada é a de que a mente moralista é como uma língua capaz de sentir seis tipos diferentes de gostos ou sabores.

Inicialmente, Haidt cuida de introduzir o leitor à noção de que a ética ocidental a que estamos habituados é algo bastante particular e não uma verdade universal, como somos inclinados a pensar. Para isso, nos apresenta as três principais abordagens éticas (baseadas na teoria do antropologista Richard Shweder), que permeiam o mundo contemporâneo com diferenças fundamentais que não são facilmente percebidas pelas pessoas, mas que norteiam boa parte do comportamento das comunidades que adotam cada uma delas:

- Ética da autonomia – é à qual estamos mais habituados, ou seja, a ideia de que as pessoas são, acima de tudo, indivíduos autônomos que devem ser livres para satisfazer seus desejos e preferências. Deste modo, estas sociedades desenvolvem valores como direitos, liberdades e justiça, que possibilitam às pessoas coexistir pacificamente sem interferir nas vidas uns dos outros. É a ética dominante nas sociedades individualistas e nos textos utilitaristas de John Stuart Mill e Peter Singer, por exemplo;

- Ética da comunidade – é baseada no princípio de que as pessoas são, acima de tudo, membros de entidades maiores, como famílias, times, empresas, tribos, exércitos e nações. Estas entidades são mais do que a soma de seus membros; são reais, importam e precisam ser protegidas. As pessoas têm obrigação de atuar conforme os papéis que lhe cabem nestas estruturas e, portanto, os conceitos que emergem são os de dever, hierarquia, patriotismo, respeito e reputação. Nestas sociedades (como nas orientais), o individualismo ocidental é visto como egoísta e perigoso – uma forma de enfraquecer a trama da sociedade e destruir as instituições das quais todos dependem;

- Ética da divindade – baseada na ideia de que as pessoas são, acima de tudo, “recipientes” em que uma alma divina habita temporariamente. Pessoas não são apenas animais com uma dose extra de consciência, mas sim filhos e filhas de Deus e que, portanto, devem agir de acordo. O corpo é um templo, não um playground e mesmo que uma ação ou comportamento privado individual qualquer não cause nenhum dano a terceiros, ele pode ser interpretado e condenado como imoral ou proibido se visto como ofensivo ao Criador ou à ordem sagrada do universo. É a moral dominante em boa parte do mundo muçulmano, por exemplo.

A moral dominante nas sociedades dos ocidentais países ricos, democráticos e industrializados, costuma ser limitada à ética da autonomia, mas ela pode ser bem mais ampla e incluir frequentemente as éticas da comunidade e da divindade nas matrizes éticas de diversos subgrupos religiosos ou conservadores e este é um ponto fundamental para se começar a compreender as diferenças radicais entre as visões de mundo dos liberais e dos conservadores.

Haidt usa frequentemente a expressão “morality binds and blinds” (a moralidade une e cega) para lembrar que matrizes éticas reforçam de forma muito significativa a coesão dos grupos que as adotam, mas ao mesmo tempo tornam seus membros praticamente cegos para a coerência ou a mera existência de outras matrizes. Esse fenômeno torna muito difícil para uma pessoa que tenha assimilado os valores de um determinado grupo de forma muito radical sequer considerar a possibilidade de que possa existir mais de uma verdade moral válida, parâmetros diferentes dos seus para se avaliar a conduta das outras pessoas ou mesmo mais de uma forma legítima para se organizar e conduzir uma sociedade.

Após a introdução das três éticas é a apresentada a Teoria dos Fundamentos Morais e são apresentados cinco diferentes “sabores” que a mente moralista consegue discernir, descritos como cinco diferentes fundamentos morais inatos e comuns a todos os seres humanos, adaptações que foram sendo lentamente incorporadas a nossos cérebros como respostas automáticas a uma série de ameaças e oportunidades inerentes à vida em sociedade e que disparam reações intuitivas e possivelmente algumas emoções específicas, como simpatia ou raiva:

- Fundamento do Cuidado / Dano – evoluiu em resposta ao desafio evolutivo do cuidado para com crianças vulneráveis. Ele nos torna sensíveis a sinais de sofrimento e necessidade e nos faz rejeitar a crueldade e nos importar com os que sofrem;

- Fundamento da Justiça / Trapaça – evoluiu em resposta ao desafio evolutivo de se extrair os benefícios da cooperação sem se deixar explorar. Faz com que nos tornemos sensíveis a indícios de que outras pessoas sejam potenciais bons parceiros para colaboração e altruísmo recíproco. Faz com que desejemos punir trapaceiros e exploradores e pode estar intrinsicamente ligado a um desejo por proporcionalidade (de que as pessoas recebam o que mereçam na intensidade adequada);

- Fundamento da Lealdade / Traição – evoluiu em resposta ao desafio evolutivo de formação e manutenção de alianças. Faz com que sejamos sensíveis a sinais de que uma pessoa é um bom e confiável membro do time e nos leva a confiar e recompensar tais pessoas na mesma medida em que nos leva a punir e renegar os que nos traem ou traem o grupo;

- Fundamento da Autoridade / Subversão – resposta ao desafio da formação de relacionamentos benéficos dentro de uma estrutura hierárquica. Faz com que sejamos sensíveis a sinais de posição e de status, bem como a indícios de que as outras pessoas estão (ou não) se comportando de acordo com suas respectivas posições;

- Fundamento da Santidade (Pureza) / Degradação – evoluiu inicialmente como resposta ao “dilema do onívoro” (o que um bicho que come de tudo pode comer e o que deve evitar) e posteriormente ao desafio de se viver em um mundo repleto de patógenos e parasitas. Trata-se de uma forma de “imunidade comportamental” que nos leva a ter receio e evitar uma variedade de ameaças reais ou simbólicas. Faz com que as pessoas atribuam arbitrariamente valores extremamente positivos ou negativos a determinados objetos e comportamentos que acabam servindo como mecanismos auxiliares para se manter os grupos unidos.

Olhando-se para os dois extremos do espectro político, pode-se perceber que os partidários da esquerda têm suas doutrinas focadas principalmente nos fundamentos do Cuidado e da Justiça, com pouca ou nenhuma ênfase nos demais. Os partidários de direita, por sua vez, operam com um foco mais abrangente, com doutrinas que abraçam os 5 fundamentos e incorporam uma ênfase significativamente grande em Autoridade, Lealdade e Santidade. Assista a um discurso de um candidato de direita e conte quantas vezes são mencionados temas como patriotismo, forças armadas e religião, por exemplo.


Aqui pode-se abrir parênteses e comentar-se um pouco sobre uma vantagem significativa que os conservadores levam quando falam ao público em geral. Considerando-se que os 6 fundamentos morais são inatos aos seres humanos e que estes podem dar maior ou menor importância a cada um deles, independente de sua formação ou posição social, é natural que um grupo político que aborde um número maior de fundamentos em sua doutrina e sua comunicação encontre ressonância do seu discurso em um número maior de pessoas do que um grupo que se restrinja a dois ou três fundamentos. Ou seja, se uma pessoa tem uma predisposição natural a priorizar os fundamentos da Autoridade e da Lealdade, mesmo que seja de uma camada desfavorecida da sociedade, não vai responder de forma positiva ao discurso centrado nos fundamentos de Cuidado e Justiça de um partido de esquerda, para a grande surpresa e indignação de boa parte dos liberais que são praticamente cegos aos demais fundamentos morais. Moralidade une e cega.

Posteriormente, Haidt acrescenta um sexto fundamento como forma de complemento à sua Teoria dos Fundamentos Morais original:

- Fundamento da Liberdade / Opressão – faz com que as pessoas percebam e se ressintam de qualquer sinal de uma tentativa de dominação. Dispara um sentimento de desejo de união para resistir e derrotar opressores e tiranos. Este fundamento suporta tanto a noção de equidade e de “anti-autoritarismo” na esquerda quanto o sentimentos “anti-opressão” e de “defesa da liberdade” na direita.

PARTE III - “Moralidade une e cega”

Em linhas gerais, é focada na demonstração do conceito de que a natureza humana é majoritariamente egoísta e individualista, mas com uma camada grupal que resulta do fato de que a seleção natural opera em diferentes níveis simultaneamente e que resulta em comportamentos surpreendentes e a princípio incoerentes com o interesse do indivíduo.

Indivíduos competem contra outros indivíduos e esta competição recompensa o individualismo, mas ao mesmo tempo, os grupos humanos competem contra outros grupos permanentemente e esta competição favorece os grupos compostos por verdadeiros “team players” – aqueles cujos integrantes estão dispostos a cooperar e trabalhar pelo bem do grupo mesmo em detrimento de seus interesses pessoais imediatos. Estes dois processos evolutivos complementares empurraram a natureza humana em direções diferentes e nos deram a estranha mistura de egoísmo e altruísmo que conhecemos hoje. A metáfora central desta terceira parte é: “nós somos 90% chimpanzés e 10% abelhas”.

O lado “chimpanzé” da metáfora refere-se ao fato de nossas mentes terem sido moldadas pela competição incansável de cada indivíduo com seu vizinho. Nós somos descendentes de uma longa linhagem de vencedores no jogo da vida social. Entretanto, a natureza humana incorporou mais recentemente uma nova camada, um comportamento grupal extremamente importante – apesar de majoritariamente chimpanzés, somos também um pouco como abelhas, no sentido de sermos criaturas ultra-sociais com mentes moldadas pela incansável competição entre grupos. Nós descendemos de antepassados cujo comportamento grupal os ajudou a cooperar e vencer outros grupos. Isso não significa que nossos ancestrais fossem “team players” incondicionais, apenas que eram adequadamente seletivos: quando as condições necessárias se apresentavam, eles podiam entrar em um estado mental de “um por todos e todos por um” em que passavam a trabalhar abnegadamente por um objetivo comum, aumentando de forma coletiva as chances de prevalência de seu grupo.

Este sentimento de ativação do “modo colmeia” em um grupo se manifesta ainda hoje na paixão ou êxtase que a participação em rituais grupais como esportes, raves, danças ou rituais religiosos podem ocasionar. É o tipo de efervescência coletiva ou “ressonância límbica” que foi tão bem descrita no livro “A General Theory of Love”, que já comentei aqui anteriormente.

A combinação de nossos comportamentos individualistas e grupais pode ser resumido no conceito de Homo Duplex: vivemos a maior parte de nossas vidas no mundo ordinário (profano), mas alcançamos nossas maiores alegrias naqueles breves momentos em que transcendemos a níveis mais elevados (coletivos) da existência. Somos projetados (por seleção natural) para nos locomover entre ambos os níveis de existência.  

Voltando ao tema da Teoria dos Fundamentos Morais, uma ideia curiosa defendida no livro é a de que as pessoas não adotam suas ideologias políticas aleatoriamente. Aqueles a quem os genes deram cérebros com maior afinidade a novidades, variedade e diversidade e uma menor sensibilidade a sinais de ameaça seriam predispostos (mas não predestinados) a se tornarem liberais e a reagir às narrativas dos movimentos de esquerda. Aqueles cujos genes conferiram cérebros com afinidades opostas seriam predispostos a se alinhar com as narrativas da direita.

Entretanto, a partir do momento que a pessoa adota qualquer um dos lados políticos ela é rapidamente incorporada à sua respectiva matriz moral. O condutor de seu elefante passa a encontrar confirmação da narrativa de seu grupo em todo lugar e é extremamente difícil convencê-la de que está errada se você tentar argumentar estando do lado de fora de sua matriz.

Dado o diferente enfoque que a esquerda e a direita dão aos seis fundamentos morais, pode-se deduzir que deve ser mais difícil para liberais (que em geral não se consideram relevantes os fundamentos de Autoridade, Santidade e Lealdade) entender os conservadores do que vice-versa. Em particular, liberais têm dificuldade em visualizar e compreender o conceito de “capital moral”, ou seja, o valor intrínseco de alguns recursos que sustentam uma comunidade moral, como valores, virtudes, normas, práticas, tradições, costumes, identidades e instituições, o que faz com que seja difícil para seu discurso ser assimilado por um público que aprecie estes valores na mesma medida em que os faz ter dificuldade em entender este público.

Em suma, a abordagem de Haidt é de que liberais e conservadores, esquerda e direita são como yin e yang – ambos elementos necessários para a vida política saudável de uma nação, como colocado por John Stuart Mill. Liberais são especialistas no fundamento do Cuidado – eles enxergam melhor as vítimas dos arranjos sociais e nos forçam a atualizar continuamente esses arranjos. Por outro lado, conservadores oferecem um contraponto fundamental aos movimentos de reforma liberal, em especial no que tange à liberdade dos mercados e à proteção de estruturas e valores que são caros a boa parte da sociedade.

Enfim, moralidade une e cega. Ela nos une a times ideologicamente coesos que lutam entre si como se o destino do planeta estivesse em jogo em cada batalha. Ela nos cega com relação ao fato de que ambos os times são compostos por boas pessoas que podem ter algo importante a dizer. Ter esse conceito em mente pode ajudar cada um de nós a compreender melhor o outro lado, ou pelo menos a evitar entrar em discussões absolutamente inúteis no Facebook.

 

PS – na data em que escrevo este resumo, Jonathan Haidt pode ser visto em uma participação rápida no documentário “The Social Dilemma”, que acaba de ser lançado na Netflix 

PS 2 – Haidt também será o convidado na segunda conferência do Fronteiras do Pensamento, programada para o próximo dia 30 de setembro

PS 3 – Para uma obra mais recente dele, você pode acessar o link para o meu texto sobre “The Coddling of the American Mind”. É outro livro com um título incrivelmente difícil de traduzir, mas excelente...

    

sábado, 2 de maio de 2020

O Novo Iluminismo

Várias das minhas opiniões mudaram bastante com o passar do tempo, mas poucas mudaram de forma tão radical quanto o meu conceito sobre Bill Gates. Tive lá a minha fase de adolescente anti-Microsoft e já critiquei bastante o seu fundador por suas práticas monopolistas na época da "guerra dos browsers", mas o meu conceito começou a mudar com os anos e, especialmente depois da fundação Bill e Melinda Gates, hoje eu sou um fã. Como fã, portanto, quando encontro um livro que ele recomenda como sendo “Meu novo livro favorito de todos os tempos.”, tenho que conferir. 

“O novo Iluminismo – Em defesa da razão, da ciência e do humanismo” de Steven Pinker (Companhia das Letras, 2018) é exatamente o que o título indica: uma obra focada em fazer a defesa dos três pilares fundamentais do Iluminismo: a razão, a ciência e o humanismo, em um momento em que imaginaríamos não precisarem mais de defesa. Apesar de denso, com quase 700 páginas recheadas de excelentes referências bibliográficas, é surpreendentemente simples, direto e agradável de se ler. Logo nas primeiras páginas fica claro que Gates não estava exagerando quando fez seu comentário. 



O último livro que abordei neste blog tratava de uma visão pessimista quanto aos rumos da humanidade ("A Nova Idade das Trevas"). Este é o extremo oposto. Nas palavras do próprio Pinker: ...essa avaliação desoladora do mundo é errada. E não apenas errada: erradíssima, espetacularmente errada, mais errada impossível.” e ele defende sua causa com uma clareza e um volume de dados impressionante distribuídos ao longo de 3 partes. 

A 1ª parte trata da revisão do que consideramos em linhas gerais como o movimento do Iluminismo, bem como seu momento histórico e conceitos fundamentais. A 2ª parte foca em contestar, com dados objetivos, visões pessimistas ou catastrofistas do mundo contemporâneo em aspectos como riqueza, desigualdade, meio ambiente, saúde e segurança. A 3ª parte se concentra, finalmente, na defesa dos ideais iluministas. Iniciando com a 1ª parte, vamos assumir a definição de Iluminismo como apresentada atualmente pela Wikipedia: 

“O iluminismo, também conhecido como século das luzes e ilustração, foi um movimento intelectual e filosófico que dominou o mundo das ideias na Europa durante o século XVIII, "O Século da Filosofia". O Iluminismo incluiu uma série de ideias centradas na razão como a principal fonte de autoridade e legitimidade e defendia ideais como liberdade, progresso, tolerância, fraternidade, governo constitucional e separação Igreja-Estado. Na França, as doutrinas centrais dos filósofos do Iluminismo eram a liberdade individual e a tolerância religiosa em oposição a uma monarquia absoluta e aos dogmas fixos da Igreja Católica Romana. O Iluminismo foi marcado por uma ênfase no método científico e no reducionismo, juntamente com o crescente questionamento da ortodoxia religiosa - uma atitude capturada pela frase Sapere aude (em português: "Atreva-se a conhecer").”

Para ter-se uma dimensão do que representou a Revolução Científica ocorrida neste período, tome-se a descrição do que o historiador David Wootton faz do que um inglês instruído “sabia” com toda segurança do mundo em 1.600, às vésperas da revolução industrial: 

“Ele acredita que bruxas podem invocar tempestades para afundar navios no mar. [...] Acredita em lobisomens, ainda que por acaso essas criaturas não existam na Inglaterra – sabe que existem na Bélgica. [...] Acredita que camundongos surgem por geração espontânea em montes de palha. Acredita em magos contemporâneos. [...] Ele já viu um chifre de unicórnio, mas não um unicórnio. Ele acredita que o corpo de uma pessoa assassinada sangrará na presença do assassino. Acredita na existência de um unguento que, se for aplicado na adaga que causou um ferimento, curará o ferimento. [...] Acredita ser possível transformar metal sem valor em ouro [...] Acredita, obviamente, que a Terra é imóvel e que o Sol e as estrelas fazem um giro em torno dela a cada 24 horas.” 

Apenas um século mais tarde, um descendente instruído deste inglês já não acreditaria em mais nada disso. 

Além da razão e da ciência, o humanismo também tem um papel central no Iluminismo. Deixando para trás séculos de Cruzadas, Inquisição, guerras e caça às bruxas, os pensadores iluministas condenaram crueldades como escravidão, despotismo, punições sádicas e execuções por crimes triviais, colocando fim a práticas hoje consideradas bárbaras, mas extremamente comuns ao longo de milênios em diversas civilizações diferentes. Decorre ainda da fé na ciência e no humanismo o ideal iluminista de progresso, tanto em termos de evolução das leis e costumes, quanto da evolução científica. Todos aspectos que atuam em conjunto, levando a uma melhoria contínua do bem-estar das pessoas e uma gradual transformação do mundo em um lugar melhor.

Infelizmente, como um típico ser humano do início do século XXI e mais do que habituado a ler barbaridades nas time-lines das redes sociais, você já deve ter se acostumado com a ideia de que mesmo as coisas mais obviamente benéficas (como vacinas) ou mesmo os conceitos mais obviamente evidentes (como a Terra ser redonda), precisam de defesa. O mesmo vale para o Iluminismo. Pinker passa um capítulo na primeira parte apresentando um assustador elenco de movimentos contrailuministas religiosos, nacionalistas, filosóficos e intelectuais que são bem explorados ao longo do livro, sempre com referências a trabalhos recentes e muito interessantes. Como exemplos destas referências, posso citar alguns livros relativamente novos que abordei aqui nos últimos meses e que analisam movimentos bem recentes como a emergência da polarização e sua relação com o fenômeno da formação de tribos morais (“Moral Tribes”, de Joshua Greene) ou os problemas da crescente rejeição à livre exposição de ideias em universidades (“The Coddling of the American Mind”, de Lukianoff e Haidt). 

Como já dito, a 2ª parte do livro trata da refutação, com dados, de pontos de vista saudosistas, pessimistas ou decadentistas sobre o estado atual da humanidade. É a parte mais extensa do texto e também a que inclui o maior volume de informações interessantes e surpreendentes, que demonstram de forma incontestável a brutal evolução da condição humana no último século em aspectos como desigualdade, expectativa de vida, saúde, meio ambiente, segurança, paz, democracia, terrorismo, conhecimento, igualdade de direitos e felicidade. Não vou me ater a cada um destes aspectos, mas gostaria de chamar a atenção para apenas dois pontos realçados por Pinker e que servem como exemplos do tipo de insight que são encontrados no livro sobre os temas do meio ambiente e da desigualdade. 

Em “Moral Tribes”, que citei acima, Joshua Greene detalha como a polarização entre esquerda e direita nos EUA (assim como no Brasil), fez com que o tema do aquecimento global tenha passado a ser associado a uma bandeira de esquerda: 

“Em 1998, pesquisas indicavam que eleitores Republicanos e Democratas apresentavam probabilidades praticamente iguais de concordar com o argumento de que a mudança climática estava realmente ocorrendo. De lá para cá, ao mesmo tempo em que as evidências científicas sobre o tema apenas aumentaram, surgiu uma curiosa divergência entre eleitores Republicanos e Democratas com relação ao assunto, a ponto de em 2010 um Democrata ter passado a ter uma probabilidade duas vezes maior de afirmar acreditar na mudança climática do que um Republicano. Isso não ocorreu por questões técnicas ou por um eventual menor acesso às informações científicas por parte dos Republicanos, mas simplesmente pelo fato do assunto ter tomado contornos políticos que levaram os dois partidos a se posicionar em campos opostos, forçando um grande número de eleitores Republicanos a ter de optar (até de forma inconsciente) entre aceitar racionalmente as opiniões dos especialistas no assunto ou simplesmente recusá-las e se comportar, então, como um bom e confiável membro de sua “tribo” política.” 

A abordagem de Pinker, entretanto, vai mais além: ele questiona se o fato do democrata Al Gore ter abraçado a causa do aquecimento global no documentário “Uma Verdade Inconveniente” em 2006 não teria sido uma dos fatores principais do recrudescimento desta polarização e, assim, causado um dano irreparável à causa. Questiona ainda a racionalidade de bandeiras muito tradicionais de ambientalistas contrários a alimentos transgênicos e energia nuclear e o prejuízo que estas posições radicais causam ao meio ambiente ao influenciar a opinião pública contra as opções comprovadamente mais eficientes de geração de energia e produção de alimentos. 

Pinker encara de frente também a questão da desigualdade e a incensada obra de Thomas Piketty, “O Capital no Século XXI”. Ele dedica um capítulo inteiro ao tema e a demonstrar que a desigualdade humana não pode ser usada como um contraexemplo para o progresso humano. Argumenta também que não estamos vivendo, ao contrário do que alega Piketty e as esquerdas ao redor do globo, uma distopia de rendas declinantes que teria revertido séculos de aumento da prosperidade. Defende que a tendência de longo prazo desde o Iluminismo é, na verdade, o aumento de riqueza para todos e, desmonta com surpreendente elegância o livro de Piketty em apenas um parágrafo. (Não, não vou reproduzir aqui, mas lhe desafio a encontrar). 

Finalmente, a 3ª parte é dedicada especificamente aos ideais da razão, ciência e humanismo, cabendo um capítulo para cada um. Como no restante do livro, os argumentos são claros, convincentes e, acima de tudo, necessários. 

Já estávamos vivendo uma época de polarização, escalada de autoritarismo e tendência ao desmonte de conquistas que considerávamos mais do que consolidadas. Com a pandemia de COVID-19, estes movimentos parecem ter se acentuado. Neste cenário, a obra de Pinker é um testemunho muito oportuno de fé na humanidade e no progresso e um necessário sopro de otimismo em um momento de profunda crise global. O comentário de Gates sobre o livro não é, de forma alguma, descabido. 

***

PS – Por uma dessas coincidências malucas do mundo, no momento em que escrevo isso, às 18:30 do dia 02 de maio de 2020, Warren Buffett está fazendo ao vivo a sua apresentação na reunião de acionistas da Berkshire Hathaway e estou ouvindo ao fundo. A mensagem que está passando agora: apesar de tudo, não há época melhor para se estar vivo do que agora em termos de bem-estar, direitos, segurança, paz, etc.. Impressionante a clareza de raciocínio e a energia deste senhor de 89 anos. Bom, estando com Gates e Buffett, Pinker está muito bem acompanhado...



domingo, 2 de fevereiro de 2020

A Nova Idade das Trevas

Um conceito que temos enraizado profundamente em nossa forma de pensar e que poucas pessoas já pararam para questionar é o do progresso contínuo da humanidade. Parece natural esperar que, a cada ano, os avanços da técnica representem evolução recorrente em qualquer área, seja na área da saúde, na engenharia, ou na tecnologia da informação. Entretanto, o que dizer de nossa compreensão real das tecnologias que embasam essa evolução? Ou ainda, quais os efeitos e impactos destas tecnologias sobre o ambiente e as sociedades no médio e longo prazos? 

Os reflexos indesejáveis dos avanços da técnica e suas consequências reais ou potenciais são o tema do livro “A Nova Idade das Trevas - a Tecnologia e o Fim do Futuro”, de James Bridle (Todavia, 2018). Bridle é jornalista e escritor e colabora com veículos como o The Guardian, Atlantic e a Wired e conseguiu escrever um livrinho bem interessante e perturbador sobre o assunto. 


Um dos pontos centrais do texto está na crítica à “opacidade” inerente aos sistemas de computação complexos, especialmente dos sistemas distribuídos (em rede). Como exemplo: um engenheiro mecânico que usa hoje uma ferramenta computacional de análise estrutural por elementos finitos para avaliar a resistência de uma peça automotiva que esteja projetando, compreende melhor ou pior os fenômenos físicos reais envolvidos na análise do que um engenheiro da década de 80 que não dispunha desse ferramental? Até que ponto o uso da ferramenta deixa a análise mais nítida e simples? Até que ponto o conhecimento fundamental envolvido na análise não passou a ficar concentrado apenas nas mãos dos poucos especialistas responsáveis projetar e implementar os algoritmos em que o software se baseia, em vez de compartilhado entre os milhares de usuários da ferramenta, que acabam tendo apenas uma noção superficial dos conceitos envolvidos? Um dos maiores especialistas brasileiros nesta área da engenharia costuma afirmar repetidamente que “se o engenheiro não sabe modelar o problema sem ter o computador, não deve fazê-lo tendo o computador”, mas receio que ele seja minoria. Nas palavras de Bridle: 

“Aquilo que a computação busca mapear e modelar, ela acaba dominando. O Google se determinou a indexar todo o conhecimento humano e se tornou fonte e árbitro do conhecimento: tornou-se o que as pessoas pensam. O Facebook se determinou a mapear as conexões entre as pessoas – o grafo social – e se tornou a plataforma para essas conexões, reformatando irrevogavelmente as relações sociais. Assim como um sistema de controle aéreo que confunde uma revoada de pássaros com uma esquadra de bombardeiros, o software é incapaz de distinguir entre seu modelo de mundo e a realidade – e, uma vez condicionados, nós também não.” 

Dado o grau de integração entre diferentes sistemas complexos e a intensidade destas interações, os sistemas computacionais são hoje complicados demais para que uma pessoa possa ter uma visão do panorama total – em grande medida, em qualquer projeto de sistema computacional, faz-se uso de componentes e módulos que operam como “caixas pretas”, que recebem entradas, resolvem problemas específicos e retornam saídas para o sistema principal, mas que não foram desenvolvidos e codificados pela mesma empresa que os aplica. Ou seja, a fé no desempenho adequado de cada módulo é um pré-requisito para o seu uso e para o sistema de forma geral. Esse modelo de pensamento de confiança a priori no software é a base para um viés cognitivo que nos leva a considerar que respostas automatizadas seriam inerentemente mais confiáveis que as não automatizadas – o viés da automação. Você já experimentou isso quando digitava um texto que sofreu uma correção ortográfica sobre a qual tinha dúvidas, mas que aceitou. Também experimentou quando deixou que o Waze o guiasse por um caminho pior do que o que faria normalmente. É o responsável, entre outras coisas, também por um número significativo de acidentes de aviação e motivo de preocupação crescente por parte das companhias aéreas. 

O segundo ponto abordado por Bridle diz respeito ao clima, mais especificamente às consequências do aquecimento global e do aumento da concentração de CO2 na atmosfera. São abordadas algumas consequências pouco discutidas do aumento da temperatura e das quais poucas pessoas fora da comunidade científica têm conhecimento. Uma exemplo diz respeito ao derretimento de áreas congeladas a séculos, como o permafrost siberiano: no verão de 2016, o derretimento inédito de uma área na península de Yamal causou a exposição de carcaças de renas enterradas sob o permafrost. As carcaças estavam infectadas com bactérias antraz, que ficaram dormentes até serem novamente, causando um surto na região que levou à morte de uma criança e hospitalização de mais de 40 pessoas. 

Outras consequências dizem respeito a aspectos tão variados quanto a queda no desempenho das transmissões sem fio, riscos para aviação em função do aumento de áreas de turbulência e um dos mais perturbadores de todos: a queda da capacidade cognitiva em função do aumento da concentração de CO2. A concentração de CO2 na atmosfera antes da revolução industrial variava entre 275 e 285 ppm, tendo começado a subir desde então e atingido 310 ppm em torno de 1950 e 400 ppm em 2015. Em um ambiente com uma concentração de 1.000 ppm de CO2, a capacidade cognitiva humana cai 21%. Pode-se considerar que ainda estaríamos longe disso e que não há garantias de que o ritmo de aumento irá se manter, mas fica a observação de que estamos falando de concentração em espaços abertos – em salas de aula de algumas escolas na California e no Texas já chegou-se a medir concentrações de 2.000 ppm ainda em 2012. 

Segundo o filósofo Timothy Morton, o aquecimento global é um “hiperobjeto”: algo que nos envolve e afeta, mas que é tão grande que se torna impossível de ver por completo. Apenas podemos perceber os hiperobjetos por meio de suas influências nas coisas. Por estarem próximos demais e ainda assim tão difíceis de enxergar, são difíceis de dominar e controlar e requerem uma quantidade enorme de computação para modelar. 

É um conceito interessante. Talvez ajude a explicar a ainda grande resistência em se aceitar a realidade do aquecimento global, mesmo dada a enorme quantidade de estudos indicando o fenômeno. Quando olhamos para a abundância de informações que nos foi tornada acessível pelo advento na Internet sobre esse e uma infinidade de outros temas, seria de se esperar que o acesso generalizado a vastos repositórios de conhecimento iluminaria o mundo e colaboraria para a solução dos problemas. Curiosamente, entretanto, em vez da emergência de um consenso coerente, o que se viu foi o despertar de narrativas fundamentalistas simplistas, teorias da conspiração e pós-verdades. 

Além dos dois pontos que abordei acima (opacidade dos sistemas computacionais complexos e efeitos climáticos negativos da atividade humana), o livro aborda ainda uma série de outras questões, como a queda na eficiência no desenvolvimento de pesquisas de medicamentos, o aumento do poder das burocracias e o uso excessivo de dispositivos eletrônicos por crianças para traçar uma perspectiva preocupante de futuro, ao considerar a confluência de todos estes fenômenos em um mesmo momento histórico. É exageradamente pessimista em alguns trechos e faz algumas extrapolações questionáveis, mas traz uma visão diferente de alguns tópicos sobre os quais pensamos pouco no dia-a-dia, mas que realmente mereceriam pelo menos um pouco mais de atenção.