sábado, 3 de dezembro de 2011

Morte em Veneza

Não me lembro de onde veio a recomendação de ler Thomas Mann, mas dia desses comprei "Morte em Veneza", que acabo de ler. É um livro curto, quase um conto, sobre um escritor (Gustav Aschenbach), já de alguma idade, que vai passar um período de férias em Veneza e se apaixona por um adolescente polonês de 14 anos, extraordinariamente bonito.

É. Não é um livro de mistério policial, como o título e a capa me induziram a acreditar. Mas também não é um livro sobre um caso de amor entre um coroa pedófilo e um menino. Basta dizer que os dois não trocam uma só palavra ao longo do livro todo.

O foco principal é a paixão de Aschenbach pelo "Belo", no sentido platônico da palavra (veja http://paginaemblanco.blogspot.com/2010/12/on-love.html). Para ele, o garoto (Tadzio), é a representação da perfeição, da beleza ideal, e seu amor uma manifestação cristalina do Eros, que vai crescendo lentamente e acaba por se tornar uma obsessão, transformando pouco a pouco o respeitável e sério escritor em uma figura patética, um "jovem postiço", como o que ele próprio vê e despreza no início de sua viagem, ainda no barco que rumava a Veneza.

O livro é uma aula de escrita, desde os elementos sutis de mau presságio que aparecem logo no início da viagem, até o paralelo que vai sendo construído entre a rápida decadência de Aschebach com a de uma Veneza assombrada por uma crescente epidemia de cólera, que as autoridades tentam esconder dos turistas. É rápido, de leitura fácil e muito bom, com referências à mitologia e influências da filosofia gregas permeando todo o texto.

Sobre a abordagem do Eros e a análise com base na filosofia platônica, há um artigo curto, mas bem detalhado, disponível em:
 http://www.apario.com.br/index/boletim38/Junggermanisten3-Oerotismo.pdf. Entretanto, há um componente que não é levantado no artigo, mas que acho interessante introduzir, que é a forma pela qual Aschenbach racionaliza a sua situação, da qual se envergonha. A abordagem que usa é a de tirar de si parte do enorme peso do sentimento de responsabilidade pelo seu estado, atribuindo a sua fraqueza à possessão do Eros:


"(...) Uma vida de autodomínio e obstinação, uma vida áspera, perseverante e comedida, que ele transformara em símbolo de um heroísmo delicado e apropriado à época - poderia bem chamá-la viril, corajosa, e queria parecer-lhe que o Eros que se apoderara dele era de algum modo especialmente conforme e propenso a uma vida assim. Não merecera ele destaque entre os povos mais corajosos, não se dizia que fora graças à bravura que ele florescera em suas cidades? Inúmeros heróis da Antiguidade aceitaram voluntariamente seu jugo, pois nenhuma humilhação era considerada como tal, quando imposta pelo deus, e atos que seriam reprovados como sinal de covardia se praticados com qualquer outra finalidade (...) não constituíam vergonha para o amante; ao contrário, ainda lhe valiam louvores."

Essa forma de pensamento foge da nossa concepção atual, kantiana e relativamente recente de que o ser humano é o seu melhor quando é assume a total responsabilidade por todas as suas ações. Ao contrário, sua abordagem, de transferir a responsabilidade da sua condição ao desígnio dos deuses, é análoga à usada frequentemente por Homero na Ilíada e na Odisseia, o que explica e confirma esta referência aos "heróis da Antiguidade" e reforça influência grega no texto.

Sobre esse aspecto da relação entre Homero e a noção de responsabilidade, recomendo a ótima entrevista do professor Sean Kelly, do Departamento de Filosofia da Universidade de Harvard ao programa Philosophy Bites, disponível em:
 http://philosophybites.com/2011/11/sean-kelly-on-homer-on-philosophy.html.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Fugindo do tema

Fui a um casamento de amigos no último dia 12. Foi uma cerimônia pequena, com poucos convidados, mas foi uma das mais emocionantes a que tive o prazer de assistir. Foi encerrada com uma oração de consagração, lida em voz alta pelos noivos, juntos. Gostei muito, pedi a eles que me enviassem e quero compartilhá-la aqui:

Consagración al Corazón de Jesús

Reina del Cielo, mi dulce madre Maria, nosotros, aunque débiles e indignos, pero animados por la amorosa invitación del Sagrado Corazón de Jesús, deseamos consagrarnos enteramente a EL.

Deseamos ofrecerte todo a través de Tu Inmaculado Corazón, y con una confianza de niño en tus cuidados, esperamos que nos ayudes a cumplir con nuestro propósito.

Sagrado Corazón de Jesús, Rey de bondad y de amor,
Libres y con todo el corazón, aceptamos este dulce pacto,
de cuidar Tú de mí, y yo de Ti.
Deseamos que todo lo nuestro sea tuyo 
y lo ponemos en tus manos:
Nuestra alma, nuestra salvación eterna,
Nuestra libertad, nuestro progreso espiritual,
Nuestra vida, nuestra salud, nuestra familia, nuestras posesiones,
Nuestro trabajo y cualquier obra buena que podamos realizar,
para que Tu dispongas de todo según tu voluntad.

Haremos lo mejor que podamos en estos asuntos, pero permaneceremos contentos con lo que tu amante corazón decida para nosotros.

En cambio, te pedimos que el tiempo que nos resta no sea desperdiciado.

Queremos hacer algo importante para ayudarte a reinar en el mundo, por medio de nuestras oraciones, trabajo diario, sufrimientos y actos de abnegación.

Que todo lo que hagamos en cada momento de nuestra vida, pueda ser utilizado para establecer tu divino reinado.

Que mis últimas palabras y mis últimas fuerzas sean palabras de amor,
Sean entrega generosa a tu sacratísimo corazón,
Amen, Amen

Foi um privilégio comparecer a este casamento. Em um tempo, como diz Oscar Wilde, em que as pessoas sabem o preço de tudo, mas o valor de nada, foi um prazer poder participar de uma cerimônia de onde todos, certamente, saímos pessoas melhores.

sábado, 12 de novembro de 2011

A Revolta de Atlas

No ano passado eu li uma crítica curiosa do Sérgio Augusto no Estadão sobre o livro "A Revolta de Atlas" de Ayn Rand (http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,os-titas-da-america,622626,0.html). A posição dele com relação ao livro fica bem clara no texto, mas pode ser resumida na frase:

" De todo modo, eu me pergunto: quem irá comprar e ler por inteiro A Revolta de Atlas?"

 


Ayn Rand é o pseudônimo da escritora e filósofa Alissa Zinovievna Rosenbaum, nascida na Rússia em 1905 e uma defensora do Objetivismo. Se você não faz ideia do que seja Objetivismo (assim como eu também não fazia), tem duas opções: ler "A Revolta de Atlas" ou ler o resumo da ética objetivista abaixo. Sim, eu peguei na Wikipedia, mas que posso garantir que resume bem os princípios apresentados no livro:

"O ser humano, cada um, é um fim em si mesmo e não um meio para o fim de outros humanos. Deve existir em função de seus póprios propósitos, não se sacrificando por outros nem sacrificando outros por ele.
  • A primeira escolha de todo ser é a existência ou a não-existência e, por isto, a vida do ser humano é o seu padrão moral de vida. Sem ela, nenhum outro valor é possível.
  • A racionalidade é a maior virtude; todas as outras derivam dela.
  • Outras virtudes: produtividade, justiça, orgulho, independência, integridade, honestidade, benevolência."

É uma filosofia, no mínimo, diferente do que se costuma discutir hoje em dia e o livro foi um tremendo best-seller nos EUA. Também foi o caso de seu outro livro: "A Nascente" , que segundo Lisa Simpson, é "a bíblia dos perdedores de direita" - veja em http://www.youtube.com/watch?v=legAtFan7DI).

Bom, mas com tanta gente cornetando, resolvi encarar. São 1.231 páginas em 3 volumes e não é lá o livro mais divertido do mundo, mas queria saber porque atraía raiva e comentários ácidos.

A história se passa numa distopia em uma época indefinida, próxima dos anos 50, em que os EUA e todas as demais nações do mundo estão controladas por governos socialistas (repúblicas populares, na terminologia do livro) e que a economia mundial está indo pelo ralo. Os governos corruptos, formados por pessoas medíocres, intervém em tudo e cavam buracos cada vez mais fundos, com políticas populistas e assistencialistas. Neste contexto, os principais industriais, artistas, cientistas e empresários (os "Atlas" do título), começam a se rebelar e desaparecer sem deixar pistas, largando seus trabalhos e negócios para trás, para serem geridos por quem quiser assumi-los, da forma que acharem melhor.

É este movimento que explica a metáfora do título original do livro "Atlas Shrugged": os que carregam o mundo nas costas resolvem "dar de ombros" e se mandam.

É um livro radical de direita mesmo, com diversos conceitos que soam totalmente bizarros hoje em dia, mas com alguns que são bastante pertinentes e racionais. Está longe de ser uma obra inútil como eu havia sido induzido a imaginar e leva a várias reflexões interessantes, especialmente no que se refere ao conflito entre o Estado e a iniciativa privada, como ressaltado pelo Sr. Jorge Gerdau Johannpeter em seu comentário na primeira página.

Vão abaixo alguns trechos que selecionei:

- Sobre a corrupção: "Observe o dinheiro: ele é o barômetro da virtude uma sociedade. Quando há comércio não por consentimento, mas por compulsão, quando para se produzir é necessário pedir permissão a homens que nada produzem - quando o dinheiro flui para aqueles que não vendem produtos, mas têm influência -, quando os homens enriquecem mais pelo suborno e pelos favores do que pelo trabalho, e as leis não protegem quem produz de quem rouba, mas quem rouba de quem produz - quando a corrupção é recompensada e a honestidade vira sacrifício -, pode ter certeza de que a sociedade está condenada."

- Sobre governantes e leis (em um diálogo entre um burocrata corrupto e um empresário honesto, durante uma chantagem): "- O senhor realmente pensava que a gente queria que essas leis fossem observadas? (...) Nós QUEREMOS que sejam desrespeitadas. É melhor o senhor entender direitinho que não somos escoteiros, não vivemos numa época de gestos nobres. Queremos é poder e estamos jogando para valer. Vocês estão jogando de brincadeira, mas nós sabemos como é que se joga o jogo, e é melhor o senhor aprender. É impossível governar homens honestos. O único poder que qualquer governo tem é o de reprimir criminosos. Bem, então, se não temos criminosos o bastante, o jeito é criá-los. E fazer leis que proíbem tanta coisa que se torna impossível viver sem violar alguma. Quem vai querer um país cheio de cidadãos que respeitam as leis? O que se vai ganhar com isso? Mas basta criar leis que não podem ser cumpridas nem objetivamente interpretadas, leis que é impossível fazer com que sejam cumpridas a rigor, e pronto! Temos um país repleto de pessoas que violam a lei, e então é só faturar em cima dos culpados. O sistema é esse, Sr. Rearden, são essas as regras do jogo. E, assim que aprendê-las, vai ser muito mais fácil lidar com o senhor."

Esclarecedor, não?

- Sobre a "luta de classes": "Quando vocês trabalham numa fábrica moderna, são pagos não apenas pelo seu trabalho, mas também por toda a genialidade produtiva que tornou possível aquela fábrica: pelo trabalho do industrial que a construiu, pelo do investidor que economizou dinheiro para arriscá-lo num empreendimento novo, pelo do engenheiro que projetou as máquinas que vocês estão operando, pelo do inventor que criou o bem que vocês produzem no seu trabalho, pelo do cientista que descobriu as leis envolvidas na produção desse bem, pelo do filósofo que ensinou os homens a pensar - por tudo aquilo que vocês vivem criticando."

- Sobre a humildade: "Joguem fora os trapos que protegem o vício a que vocês chamam virtude: a humildade. Aprendam a valorizar-se a si próprios, ou seja, a lutar pela sua felicidade. E, quando tiverem aprendido que o ORGULHO é a soma de todas as virtudes, vocês aprenderão a viver como homens."

- Sobre o amor: "O homem que está convicto de seu próprio valor e dele se orgulha há de querer o tipo mais elevado de mulher possível, a mulher que ele admira, a mais forte, a mais difícil de conquistar, porque somente a posse de uma heroína lhe dará a consciência de ter realizado algo, não apenas de ter possuído uma vagabunda desprovida de inteligência".

Eu poderia colocar mais alguns trechos aqui, mas acredito que já tenha sido possível apresentar as linhas gerais do texto com estes. É um livro bem estranho e muito difícil decidir se recomendo ou não. Tem um enredo até interessante. Com personagens caricatos ao extremo e com muitos trechos difíceis de engolir, é verdade. Mas não deixa de ser interessante.

E se você acha que estou exagerando com "trechos duros de engolir", veja a descrição bisonha de um dos personagens principais:

"Olhava para o rosto de um homem que se ajoelhara a seu lado e sabia que, em todos aqueles anos, era isto que teria dado sua vida para ver: um rosto sem sinal de dor, nem medo nem, culpa. Na forma de sua boca havia orgulho, e mais: era como se ele se orgulhasse de ser orgulhoso. As linhas angulosas de suas faces a faziam pensar em arrogância, tensão, zombaria. No entanto, o rosto não exprimia nada disso, apenas o produto final desses fatores: um olhar de determinação serena e de certeza, de uma inocência implacável, que jamais pediria nem concederia perdão. (...) Sua pele estava queimada de sol e em seu corpo havia a dureza, a força esguia e elástica e a precisão limpa de uma fundição, como se ele fosse de metal fundido, porém um metal de brilho fraco, como uma liga de cobre e alumínio."

É de doer, não é? Às vezes dá a impressão de que a Sra. Rand devia ser doida de pedra. Mas se você tiver paciência e souber pular esses pedaços, acho que posso, sim, recomendar. Mas não venha reclamar depois. Você já sabe no que está se metendo.

sábado, 8 de outubro de 2011

Thanks, Steve!

No dia 25 de dezembro de 1985 meu presente foi uma caixa de papelão ondulado com uma maçã impressa e um Apple II+ (http://pt.wikipedia.org/wiki/Apple_II%2B) dentro. Naquela época, tempo da reserva de informática no Brasil, o Apple II+ era fabricado aqui mesmo, pela Milmar em Manaus, no caso do meu. Havia também produção do Apple IIe pela Microdigital e recebia o nome de TK-3000 (http://pt.wikipedia.org/wiki/TK3000_IIe), mas que era bem mais difundido.

A primeira lembrança que eu tenho de quando o tirei da caixa foi a seguinte: “Onde é que eu vou ligar essa porcaria de tomada de 3 pinos?”. Dá para imaginar a frustração, especialmente por ser Natal e estar tudo fechado em São Paulo. Mas como criança nasce sabendo que pentelhar bastante os pais resolve qualquer parada, convenci o meu a atravessar a cidade até o consultório dentário da minha mãe para desmontar uma das tomadas 220V dela e instalá-la no meu quarto.

Ato contínuo, o computador foi ligado e a paixão começou. O Apple era ligado a uma TV branco-e-preta de 14” de válvula, que levava cerca de um minuto para esquentar e começar a exibir imagens (se bem que, mesmo assim, ainda era mais rápido de ligar do que o PC com Windows 7 que uso agora).

Passei as primeiras semanas de 1986 destrinchando o manual e digitando os programas de exemplo em Basic que vinham com ele. Como não tinha um drive de floppy, tentei usar um rádio-gravador Sharp mono ligado na entrada e saída de áudio do Apple para poder gravar os programas, mas a qualidade do gravador e do cabo eram péssimas, nunca chegou a funcionar.

As coisas melhoraram quando ganhei, uns meses depois, um gravadorzinho especial para computadores que a Gradiente produzia para a linha MSX deles (Lembra dos Expert e Hot-bit?). Com ele já conseguia gravar os programas em fita e também pude começar a comprar algumas da Engesoft, com programas mais sofisticados já prontos.

Em novembro de 86, quando fiz 12 anos, ganhei uma caixa prata enorme da Elebra. O que tinha dentro? Um drive de floppy 5 1/4" modelo Horácio, com a placa de interface. Era um treco grande, barulhento, lento, que só lia uma face do disco, mas que funcionava bem demais e nunca me deixou na mão. Infelizmente, eu fiz a besteira de trocar uns anos depois por um modelo slim da Unitron usado, que era bem mais silencioso e lia as duas faces, mas que tinha um problema na porta e vivia falhando. Tinha, não. Tem. E vivia, não. Vive. Se arrependimento matasse...

Em 87 um dos meus amigos usuários de Apple mudou para os EUA e me vendeu sua impressora matricial Epson LX-800 antes de viajar. Se o Horácio era barulhento, a Epson era trezentas vezes pior, mas para mim era um show. Imprimia de tudo: de trabalho de escola até anúncio de bailinho no condomínio. Feito com Print Shop e impresso em papel colorido, está pensando o quê?

Eu era fissurado: comprava as revistas importadas sobre os computadores da Apple (lia Nibble, InCider, A+); comprava as Input brasileiras e xingava porque quase tudo era para TK; comprava livros de Visicalc, Basic, Logo e programação de jogos; e cheguei ao fundo do poço quando comprei um software de programação Assembly chamado LISA e um livro sobre Assembly para o 6502.

Em 89 a coisa mudou. Comprei um PC-XT usado e o Apple foi para o armário, de onde só sai em ocasiões especiais. Como fez na quarta-feira passada, dia 05 de outubro de 2011, para tirar sua última fotografia. O dia em que finalmente entendi como foi, para a geração de meus pais, perder John Lennon.



domingo, 28 de agosto de 2011

O argumento da simulação

Na última quinta-feira eu voltei para casa ouvindo uma entrevista de um professor da faculdade de filosofia de Oxford, Nick Bostrom, sobre um de seus artigos: "Are you living in a computer simulation?", publicado originalmente em Philosophical Quaterly (2003) Vol. 53, No. 211. A entrevista foi curta, mas muito boa e acabei baixando e lendo o artigo original.

O que segue é um resumo das ideias apresentadas no artigo, sendo que devo esclarecer que o crédito por tudo que for apresentado a partir do próximo parágrafo é do Sr. Bostrom, numa tradução livre minha. Devo também esclarecer que, ao contrário do que possa aparentar, eu não estou maluco o suficiente para acreditar na hipótese proposta (nem o Sr. Bostrom, como deixou claro na entrevista), mas é um exercício interessante e traz algumas conseqüências e deduções não-triviais que valem a leitura.

A argumentação do artigo é a de que pelo menos uma das três proposições a seguir é verdade: (1) a espécie humana tem uma alta probabilidade de ser extinta antes de atingir um estágio "pós-humano" de evolução (não se aflija; o termo "pós-humano" será explicado a seguir); (2) qualquer civilização pós-humana apresenta uma probabilidade extremamente baixa de executar simulações computacionais de sua história evolutiva ou variantes; (3) é quase certo que nós estamos vivendo em uma simulação computacional.

Para efeito do artigo, o estágio pós-humano de civilização é aquele em que a humanidade já terá adquirido a maior parte das capacidades tecnológicas que seriam possíveis de se obter dentro das limitações das leis da física, da disponibilidade de materiais e da disponibilidade de energia a que está sujeita.

Existem pelo menos duas premissas básicas que precisam ser aceitas para que a discussão possa se desenvolver: a primeira é a da "independência de substrato", que é o conceito comumente aceito na filosofia da mente (não sem deixar de gerar alguma controvérsia), que propõe que estados mentais conscientes poderiam emergir em um grupo amplo de substratos além das redes neurais naturais do cérebro, como, por exemplo, em sistemas computacionais suficientemente complexos.

A segunda é de que, apesar de atualmente não dispormos de hardware ou software suficientemente poderosos para possibilitar a criação de mentes conscientes em computadores, há argumentos bastante persuasivos de que se o progresso tecnológico continuar, estas limitações serão eventualmente superadas (e assim estarão no estágio pós-humano de evolução). O artigo apresenta uma estimativa detalhada da capacidade de processamento necessária para se rodar uma simulação realista de toda a história mental da humanidade (ao que chama de "simulação de ancestrais") e conclui que esta capacidade de processamento estará eventualmente disponível, mesmo com base apenas no que nós já sabemos sobre projetos com nanotecnologia. Uma civilização pós-humana poderia, portanto, construir um número muito grande destes computadores e estaria a seu alcance rodar simulações de ancestrais consumindo uma parcela bastante pequena dos recursos computacionais à sua disposição.

Consideradas estas duas premissas, podemos passar agora ao núcleo da argumentação do artigo: Se há uma chance considerável de que nossa civilização um dia atingirá o estágio pós-humano e rodará simulações de ancestrais, você não estaria vivendo em uma destas simulações? Esta ideia foi desenvolvida com base na argumentação abaixo:
Considerando-se que (desculpem pela notação pouco rigorosa, mas estou redigindo em html puro e não sei como conseguir subscritos, sobrescritos, etc.):

Fp = Fração de todas as civilizações tecnológicas do nível da humanidade que sobrevivem o suficiente para chegar a um estágio pós-humano;

N = Número médio de simulações de ancestrais executadas por uma civilização pós-humana;

H = Número médio de indivíduos reais que viveram em uma civilização antes dela atingir o estágio pós-humano (ou seja, o número de ancestrais);

Teríamos que a fração de observadores simulados (Fsim) com experiências humanas que vivem em simulações é igual a:

Fsim = (Fp * N * H) / [(Fp * N * H) + H]

Utilizando-se agora Fi para indicar a fração de civilizações pós-humanas que estariam efetivamente interessadas em rodar simulações de ancestrais (ou que contenham pelo menos alguns indivíduos interessados e com recursos suficientes para rodar um número significativo destas simulações), e Ni para o número médio de simulações rodadas por estas civilizações, teríamos:

N = Ni * Fi

Fsim = (Fp * Ni * Fi * H) / [( Fp * Ni * Fi * H) + H)]

e portanto:

Fsim = (Fp * Ni * Fi) / [( Fp * Ni * Fi) + 1)]

Ou seja, pelo menos uma das três proposições deve ser verdade:

(1) Fp = 0 (a notação correta é "aproximadamente igual a 0")
(2) Fi = 0 (a notação correta é "aproximadamente igual a 0")
(3) Fsim = 1 (a notação correta é "aproximadamente igual a 1")

Como pode-se ver, estas três possibilidades correspondem às três proposições iniciais do artigo. Vamos avaliar, portanto, o que significariam cada uma delas:

Se (1) for verdade, significa que a humanidade seria muito provavelmente extinta antes de atingir o estágio de desenvolvimento pós-humano (o que, me parece, pode efetivamente acontecer ).

Para que (2) seja verdade, é necessário que haja uma enorme convergência no curso da história de civilizações avançadas que as levem a não se interessar absolutamente por estas simulações, ou bani-las, por exemplo por razões éticas ou morais.

Já a proposição (3) é a mais intrigante e perturbadora, pois, se verdadeira, implicaria que a chance de você ser um ser humano simulado em uma simulação de ancestrais seria de praticamente 100%, com todas as demais conseqüências:

- A física do universo em que o computador rodando a simulação se situa pode ser ou não ser análoga à do mundo que observamos;

- Apesar de percebermos o mundo como "real", ele não estaria localizado no nível fundamental de realidade;

- Seria possível para uma sociedade simulada se tornar pós-humana? Se sim, o computador rodando a simulação original teria capacidade para empilhar uma segunda ou terceira camadas de simulação ou o programa precisaria ser encerrado antes deste estágio ser atingido? (afinal a necessidade de processamento cresceria exponencialmente para se simular uma civilização pós-humana);

- No caso de sua morte dentro da simulação, a sua consciência poderia ser transferida para uma nova simulação, não poderia? Vida após a morte?

- Os indivíduos executando a simulação teriam onisciência e onipotência sobre ela e seriam capazes de intervir recompensando ou punindo comportamentos, talvez com base em critérios morais. Em função da incerteza fundamental que permeia o pensamento desenvolvido neste artigo, mesmo a civilização-base original teria então razões para se comportar eticamente. O fato de que haveria uma razão forte como esta para o comportamento moral poderia, portanto, gerar um círculo virtuoso e, em última instância, uma espécie de imperativo moral universal.

Devidamente compreendida, portanto, a possibilidade de (3) ser verdade não deveria nos fazer "ficar malucos" ou largar nossos trabalhos e planos para o futuro. A principal importância empírica de (3) parece estar no seu papel quando consideradas as outras duas alternativas. Podemos esperar que (3) seja verdade, pois reduziria a possibilidade de (1), mas, como as restrições computacionais fazem com que seja provável que uma simulação seja abortada antes de atingir o estágio pós-humano, nossa melhor esperança seria de que (2) seja a hipótese verdadeira.

De qualquer modo, a não ser que nós estejamos realmente vivendo em uma simulação, nossos descendentes quase que certamente jamais rodarão uma simulação de ancestrais.

Alguns links sobre o assunto:

Nick Bostrom: http://www.nickbostrom.com/

Artigo "Are you linving in a computer simulation?": http://www.simulation-argument.com/

Entrevista (disponível em mp3): http://philosophybites.com/2011/08/nick-bostrom-on-the-simulation-argument.html

Finalmente, se você gostou deste texto, dê uma olhada no que escrevi sobre a hipótese de Boltzmann em: http://paginaemblanco.blogspot.com/2009/07/boltzmann-e-dilbert.html

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Dia dos Pais

Mais uma vez o presentinho do Leo de Dia dos Pais prova que ele está no caminho certo para ser o novo Leonardo da Vinci:



Bom, o desenho pode não estar lá uma Mona Lisa, mas que ele escreve ao contrário como o da Vinci, isso escreve!

Feliz dia dos Pais (atrasado)!

sábado, 6 de agosto de 2011

O horror! O horror! Coração das Trevas e Apocalypse Now

"Coração das Trevas" (Heart of Darkness), de Joseph Conrad é um livro publicado originalmente em 1902, que narra a viagem de Marlow, um marinheiro inglês, por volta de 1890 no Congo Belga, em busca de um negociante de marfim chamado Kurtz. Apesar de continuar mandando grandes remessas de marfim regularmente, Kurtz está há tempo demais sem contato com a sua empresa contratante e Marlow comanda um barco a vapor pelo Rio Congo, a sua procura. Em boa parte, o livro é uma versão paralela de uma viagem que o próprio Conrad (que era marinheiro), fez pelo mesmo rio.



É um clássico que eu nunca havia lido antes, mas que peguei durante uma semana de férias em julho. Basta dizer que é fantástico. Está dividido em 3 partes, sendo que na primeira Marlow conta como foi contratado pela companhia para ser capitão de um barco a vapor no Rio Congo e seus primeiros meses na África; a segunda narra sua viagem complicada pelo rio até chegar à base de Kurtz; e a terceira finalmente descreve seu encontro com ele.

Visto apenas como uma narração de viagem, o texto já é espetacular, mas é a forma como evolui e como os personagens vão mudando ao longo da estória, bem como as questões éticas e morais envolvidas que fazem com que seja realmente excepcional. Imagine um sonho, em que as seus sentidos e percepções começam normais e aos poucos vão perdendo a lógica e a coerência (inclusive temporal), até que evolui para um pesadelo surreal. É mais ou menos esta a sensação que tive ao ler "Coração das Trevas".

O final do livro, em especial o encontro de Marlow com Kurtz, me deixou com uma sensação estranha de já ter visto a cena em algum lugar e aos poucos fui associando com o final de "Apocalypse Now". Bom, a Blockbuster não tinha o filme para alugar, então comprei uma cópia. Vou reproduzir aqui a sinopse da caixa:

"A história se passa em 1969 e acompanha a viagem do capitão Benjamin Willard (Martin Sheen) rumo ao universo paralelo e perturbador do coronel Walter Kurtz (Marlon Brando) (...)"

Kurtz e Kurtz? Dãã. E eu achando que tinha feito uma associação muito esperta. Mas continuei:

"(...) Baseado no livro de Joseph Conrad, Heart of Darkness, Apocalypse Now explora a insensatez, a insanidade, e o dilema moral da Guerra do Vietnã".

Ou seja, descobri o óbvio que todo mundo já sabia: Coppola fez uma versão do livro para o cinema. Pelo menos eu tenho a desculpa de que só tinha 5 anos quando o filme foi lançado, então não era obrigado a saber. Mas resolvi assistir a "Apocalypse Now" de novo, para comparar. O paralelo é nítido:

O choque de duas culturas diferentes; a dificuldade de Willard, assim como de Marlow em fazer o seu trabalho em um lugar em que ninguém parece levar nada a sério; a óbvia viagem por um rio numa selva hostil; o ataque com flechas aos barcos de ambos; o Arlequim; as cabeças; o horror.

Não vou entrar nos detalhes para não estragar o livro ou o filme para quem não viu, mas várias das falas são exatamente as mesmas e a semelhança deixa a experiência de ver o filme logo após a leitura do livro muito interessante.

Assim como dizer que "Coração das Trevas" é ótimo, elogiar "Apocalypse Now" é chover no molhado, mas a idéia de Coppola de pegar o livro e adaptar desta forma é uma prova de genialidade e merece os aplausos, Oscars e a Palma de Ouro que recebeu. Mesmo as cenas que não têm equivalência com passagens do livro são sensacionais, como o ataque de helicópteros ao som de "Cavalgada das Valquírias" ou a do encontro com o tigre. Difícil dizer o que é melhor: o livro ou o filme.

Fica a recomendação para a leitura de "Coração das Trevas", mas não deixe de ver "Apocalipse Now" logo em seguida. A experiência é única. E um desafio: veja se consegue identificar Harrison Ford e Laurence Fishburne no filme.

domingo, 31 de julho de 2011

O Filósofo e o Imperador

Durante um período de cinco anos, Aristóteles viveu na Macedônia e atuou como tutor de Alexandre (na época com 13 anos), a pedido de seu pai, Filipe II. A relação entre Aristóteles e o Alexandre adolescente é o foco do romance "O Filósofo e o Imperador" (originalmente "The Golden Mean") de Annabel Lyon (editora Leya). 

É um tema bom e poderia dar um livro excelente, mas não é o caso. Apesar da capa fantástica e dos detalhes históricos bem amarrados pela autora, o texto simplesmente não engrena e parece ralo e superficial. Pode ser que estivesse um pouco mais rabugento que o normal quando li, mas a impressão que fiquei foi com a de um Aristóteles banana sem ter muito o que dizer e um Alexandre que lembra mais a mala-sem-alça Bella Swan em crise existencial do que o imperador do título.

Tudo bem, não é mole mesmo apresentar filosofia em formato de romance, mas temos aí "Quando Nietzsche Chorou" (de Irvin D. Yalom - Ediouro), que é muito melhor, mesmo se passando em um momento histórico longe, mas longe demais de ser tão interessante quanto o do encontro entre Alexandre e Aristóteles.

O ponto de vista de "O Filósofo e o Imperador" é o de Aristóteles e a própria autora recomenda a leitura de "Fire from Heaven" de Mary Renault (1969) para um relato do ponto de vista de Alexandre. Vou tentar encontrar o livro e ver se é melhor, mas este aqui é, no máximo, mediano (no mal sentido, não no sentido aristotélico).

domingo, 17 de julho de 2011

Crianças e Moral

Crianças são especialistas em fazer perguntas complicadas. Ontem o Leo me apareceu com várias, mas uma delas chamou mais a minha atenção: "Papai, porque o Anakin virou do mal?".

Antes que alguém possa começar a pensar que eu sou um sem-noção que deixa uma criança de 4 anos assistir "A Vingança dos Sith", explico que a pergunta veio depois de completarmos juntos o Episódio III do Lego Star Wars. Ou seja, sem sangue nem nada do gênero.

Mas voltando à pergunta, ela é interessante porque demonstra bem a fase pela qual ele está passando: até alguns meses atrás ele não tinha ainda preocupação com a noção de "mal". Não sei se é uma conseqüência de uma super-proteção que nós criamos em torno das crianças atualmente, mas o fato é que ele ficou genuinamente espantado quando começamos a ler contos dos Irmãos Grimm, onde existe a figura do antagonista, do inimigo do personagem principal, banido dos livrinhos infantis mais "modernos" (incluindo nesta categoria algumas imbecilidades homéricas como "Da pequena toupeira que queria saber quem tinha feito cocô na cabeça dela" - dá para acreditar que esse livro existe?).

Também não foi diferente quando, de repente, ele passou a se interessar por desenhos animados fora da bolha do Discovery Kids. Uma constante na maioria dos desenhos do Discovery Kids é justamente a completa ausência da imagem do mal, do inimigo (com a louvável exceção de "Lazy Town"), e foi interessante ver a reação dele quando assistiu aos primeiros desenhos do Pica-Pau com o Zeca Urubu.

Esse tipo de observação levanta uma questão maior bem interessante: as crianças já nascem com algum discernimento entre certo e errado, ou entre bem e mal? Ou seja, esta noção é inata ou é aprendida com a experiência?

Eu costumava achar que não, até o Leo nascer. Minha opinião seguia a linha da Tabula Rasa de John 
Locke, que diz que não existiriam idéias inatas. Entretanto, conforme você observa uma criança pequena se desenvolvendo, fica nítido que elas têm, sim, uma noção bastante clara de certo e errado, de empatia e moral, desde o início, mesmo que a noção de Mal com M maiúsculo, ainda não esteja presente.

No caso da empatia existe, por exemplo, um estudo interessante conduzido por um pesquisador chamado Felix Warneke da universidade de Harvard e comentado pela filósofa e professora de psicologia Alison Gopnik numa entrevista sobre seu livro "The Philosophical Baby" , que observou o seguinte (numa tradução livre):

"Por volta dos 15 meses há evidências de que os bebês tentam ativamente fazer outras pessoas felizes (...). O que Felix Warneke fez foi mostrar a crianças de 15 meses uma pessoa jogando um lápis no chão ou derrubando acidentalmente um lápis no chão. Em ambos os casos, o lápis caía em um local em que a pessoa não conseguiria alcançá-lo. O que se descobriu foi que as crianças engatinhavam e se esforçavam para pegar o lápis e devolvê-lo à pessoa se ele houvesse sido derrubado "acidentalmente", mas não se ele tivesse sido deliberadamente jogado ao chão, como se o adulto não o quisesse."

Ok. Então existe pelo menos uma indicação de que realmente nascemos com alguma capacidade para empatia. Mas e com relação à questão mais complexa da moral? Novamente, quem tem filhos certamente já notou a capacidade de crianças pequenas, de 3 anos ou menos, de saber com clareza o que é certo ou errado em uma situação ou até mesmo de sentir remorso quando agem de forma errada propositalmente. Então as crianças já nascem com algum sentido moral? Existe alguma base moral universal?

O professor John Mikhail da universidade de Georgetown acredita que sim, que crianças com 4 ou 5 anos já são "advogados intuitivos" e conseguem realizar julgamentos com base em conceitos surpreendentemente complexos, como o de "intenção", que é algo que não apenas os adultos consideram em seus julgamentos, mas também os sistemas legais levam em conta. Como demonstração da universalidade de um conceito a que batizou de Gramática Moral e que corresponderia a esta base moral universal, Mikhail citou o seguinte exemplo em uma entrevista ao programa Philosophy Bites (também em uma tradução livre):

"É frequente o caso em que a pessoa sabe o que é a coisa certa a vez em uma determinada situação, mesmo que jamais tenha se deparado com esta situação específica (...). As pessoas podem ter a ilusão de que o julgamento moral é produzido pela aplicação consciente de regras e princípios, mas não parecer ser o caso na maior parte das situações. Nós não temos consciência clara das regras e princípios usados ao fazer julgamentos morais (...). É o caso em exemplos chamados "problemas do bonde", dilemas morais apresentados a pessoas que podem ser até bizarros ou inverossímeis, mas que levam a um resultado surpreendentemente homogêneo, ao redor do mundo, sobre qual seria a conduta aceitável em uma dada situação (...):

[No primeiro exemplo] há um bonde desgovernado que está para atropelar e matar cinco pessoas em uma plataforma e há um observador próximo a uma chave que pode desviar o bonde para uma linha secundária onde há uma pessoa que será atropelada e morta caso o bonde seja desviado. A questão moral é: é aceitável desviar o bonde neste caso? (...) A grande maioria das pessoas ages de forma utilitarista e concorda que sim, é aceitável acionar a chave (...).
O segundo exemplo é o caso de um cirurgião que precisa decidir se corta e remove cinco órgãos de uma pessoa saudável para salvar cinco pessoas doentes. Seria aceitável proceder desta maneira se a pessoa saudável não deu seu consentimento? Ou num exemplo mais próximo ao do bonde: imagine agora que o bonde está seguindo desgovernado em direção ao grupo de cinco pessoas e que a única maneira de salvá-los seria o observador jogar uma pessoa pesada nos trilhos para pará-lo. Isso seria uma conduta aceitável? Ocorre que a imensa maioria das pessoas, neste segundo caso acha a decisão inaceitável.

A explicação deste comportamento estaria no que chamo de Gramática Moral (...)"

Ou seja, pessoas com diferentes formações, de diferentes culturas, baseiam-se em regras e parâmetros iguais, mas dos quais não estão plenamente conscientes, para tomar decisões que acham inclusive difíceis de explicar e que seriam conceitos inatos.

Não sei se outros pais concordam comigo, mas olhando o comportamento de nossos filhos e tendo contato com o tipo de conceito apresentado acima, eu acredito que as crianças nascem, sim, com parâmetros morais e uma enorme capacidade para empatia e que é nossa responsabilidade fazer com que se desenvolvam corretamente. Mesmo que tenhamos certeza de que, apresentados ao segundo exemplo do bonde, jogaríamos o Sr. Ricardo Teixeira nos trilhos sem pestanejar.

sábado, 2 de julho de 2011

Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil

O primeiro comentário da contra-capa do "Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil" (Leandro Narloch - Editora Leya), é de Luiz Felipe Pondé, da Folha de São Paulo e autor de "Contra um Mundo Melhor", que mencionei aqui uns meses atrás:

"(...) Uma singular heresia perdida em meio ao mar de unanimidades".

Apesar do fato do livro de Pondé ser da mesma editora, o que poderia desqualificar o comentário, ele é verdadeiro. O livro é mesmo uma heresia contra um monte de coisas que foram enfiadas nas nossas cabeças desde o primário e tenta desmontar vários "fatos históricos" que damos por verdades incontestáveis, da atuação brasileira na Guerra do Paraguai à invenção do avião.

É, principalmente, um livro de história rebelde e sem o irritante viés social-esquerdista que 99 de cada 100 professores de história têm. Além disso, tem o mérito de permanecer já há 74 semanas na lista dos 10 livros de não-ficção mais vendidos da Veja e há 55 na do Estado de São Paulo.

Para ser sincero, acho que concentra demais as referências bibliográficas de alguns capítulos em poucos autores, o que enfraquece algumas teses, mas a construção da defesa de seus pontos de vista é boa e os artigos são muito interessantes e bem-humorados.

Vale a pena, seja para acumular assunto para o próximo happy-hour, seja para irritar a sua sogra professora de história ou socióloga no próximo almoço de domingo (o que não é o meu caso, diga-se de passagem).

quinta-feira, 16 de junho de 2011

14 de junho de 2011

Você foi embora.

Com você foram embora os cafés-da-manhã de sábado depois do barbeiro.

Você foi embora.

Foram embora as histórias de como eu era quando era pequeno e, com elas, um pedacinho da minha infância.

Você foi embora.

Acabaram-se os bombons na patinha.

Você foi embora.

E ninguém nunca vai descobrir a receita da torta de frango. Não que eu goste de torta de frango, mas era famosa.

Você foi embora.

Para quem eu vou telefonar para escutar reclamações de que eu nunca ligo?

Você foi embora.

E foi sem que eu pudesse lhe dar a última coisa que me pediu. Agora, a única coisa que posso fazer, é colocá-la aqui, em vez de sobre o piano, onde você certamente a colocaria:



Você foi embora.

E ele chorou. E a última coisa que disse antes de dormir neste dia triste foi:
- Mas eu gostava dela. Porque ela não se despediu de mim?

segunda-feira, 6 de junho de 2011

O Retrato de Dorian Gray

Existem muitos escritores bons, existem alguns muito bons, mas existem alguns poucos que escrevem verdadeiras obras de arte. Depois de ler "O Retrato de Dorian Gray" eu passei a considerar Oscar Wilde realmente digno desta última categoria.

O livro conta a estória, já bem conhecida, de um jovem aristocrata inglês (Dorian Gray), dono de uma "beleza extraordinária", que tem seu retrato pintado por um amigo (Basil Hallward). Ao ver a obra pronta e dar-se conta de que ela imortaliza uma beleza que está condenada a decair e desaparecer, Dorian se desespera:

"Se fosse o contrário! Se eu pudesse ser sempre moço, se o quadro envelhecesse!... Por isso, por esse milagre eu daria tudo! Sim, não há no mundo o que eu não estivesse pronto a dar em troca. Daria até a alma!"
 
Ocorre que o desejo de Dorian se realiza e o quadro passa não só a envelhecer, como a refletir toda a sua personalidade, enquanto o seu próprio rosto permanece inalterado ao longo dos anos. Torna-se, por assim dizer, um espelho de sua alma.
 
A fixação de Dorian com a beleza tem origem na influência de um amigo de Basil, Lord Henry Wotton, que é de longe o personagem mais interessante do livro: também aristocrata, mas extremamente cínico e que sente imenso prazer em manipular a personalidade de Dorian, trazendo-o para a sua própria filosofia hedonista de vida.

Lord Henry é responsável por uma série extraordinária de aforismos e é nas cenas em que ele debate onde a genialidade de Oscar Wilde fica evidente. Fiz uma pequena coletânea de alguns dos melhores insights de Lord Henry ao longo do texto, para exemplificar e aguçar a curiosidade pelo livro:

- Sobre beleza e inteligência: "There is a fatality about all physical and intellectual distinction (...). It is better not to be different from one's fellows. The ugly and the stupid have the best of it in this world. They can sit at their ease and gape at the play. If they know nothing of victory, they are at least spared the knowledge of defeat."  

- Amizades: "I choose my friends for their good looks, my acquaintances for their good characters, and my enemies for their good intellects."

- Influências: "There is no such thing as a good influence (...). All influence is immoral - immoral from the scientific point of view"
- Empatia: "I can sympathize with everything, except suffering."

- Humanidade: "Humanity takes itself too seriously. It is the world's original sin. If the caveman had known how to laugh, history would have been different."
- Valores: "Nowadays people know the price of everything, and the value of nothing".

- Casamento: "Men marry because they are tired; women, because they are curious: both are disappointed."

- Pais e filhos: "Children begin by loving their parents; as they grow older they judge them; sometimes they forgive them."

- Bondade: "When we are happy, we are always good, but when we are good, we are not always happy."

- Pecados: "For all sins, as theologians weary not of reminding us, are sins of disobedience. When that high spirit, that morning star of evil, fell from heaven, it was as a rebel that he fell".

O segundo esporte preferido de Lord Henry é justamente a elaboração destes pensamentos; criar aforismos a partir de praticamente nada. Como explicado em uma passagem: "He played with the idea and grew wilful; tossed it in the air and transformed it; let it escape and recaptured it; made it iridescent with fancy and winged it with paradox."

O primeiro, entretanto, é ver como os seus pensamentos influenciam, manipulam e mudam as pessoas; como eles tocam "notas nunca antes tocadas" no interior de seus interlocutores e como estes acabam por interiorizá-los e aceitá-los como verdades absolutas sobre a vida. Mas sua obra prima é justamente a deformação da personalidade de Dorian Gray, que vamos acompanhando página por página.

Enfim, o livro é realmente fantástico. Foram poucas as vezes em que peguei algo tão bom para ler. Na minha humilde opinião, o Sr. Wilde merece, sim, sua fama e seu lugar entre os maiores escritores da língua inglesa.

OBS: A filosofia hedonista e de culto à beleza que Dorian Gray acaba rapidamente por adotar, lembra muito o modelo de vida apresentado por "A" na obra Either/Or do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard (http://en.wikipedia.org/wiki/Either/Or). Na verdade, em algumas passagens, como no episódio de Sybil Vane, ou nas descrições de sua busca incessante por novas sensações, a semelhança é notável. Encontrei um artigo interessante sobre esta abordagem em:
 http://revistaliter.dominiotemporario.com/doc/Literatura_e_filosofia_Jacqueline_e_JassonREVISADO-1.pdf.

Em tempo: a maldição do pobre Dorian Gray permanece até hoje. Algum gênio do cinema resolveu incluí-lo com o "imortal" de "A Liga Extraordinária", uma das maiores bobagens que Sean Connery já fez, interpretado por Stuart Townsend.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Contos da Montanha

Miguel Torga (pseudônimo de Adolfo Correia Rocha), foi um escritor português nascido em 1907 e criado nas serras portuguesas. Eu havia ganhado um de seus livros de contos vários anos atrás, chamado “Contos da Montanha”, mas ele andava esquecido na estante e só peguei para ler um dia desses.

Gosto bastante de livros de contos, pois normalmente os leio em paralelo com obras mais longas ou pesadas para dar uma arejada e gostei muito de “Contos da Montanha”. Todos os contos do livro giram em torno da vida de habitantes de pequenas aldeias nas serras de Portugal e vão dos trágicos aos bem-humorados, mas são invariavelmente interessantes, intensos e é muito difícil largar um no meio.

É verdade que são escritos seguindo a fala da região no início do século passado, o que faz com que seja necessário reler parágrafos com freqüência, mas é justamente este um dos fatores que torna o livrinho tão diferente e bom de ler, além de ajudar a compor o cenário para as situações vividas pelos personagens e também colaboram com o humor, por vezes involuntário, de algumas passagens.

Abaixo alguns dos melhores contos do livro na minha opinião (dois deles estão disponíveis na íntegra em um blog chamado “Contos de Aula” e anexei os links):

- A Paga
- O Lugar de Sacristão - http://contosdeaula.blogspot.com/2007/05/o-lugar-do-sacristo.html

Para quem se interessar, há também o livro inteiro disponível no Scribd (http://pt.scribd.com/). Recomendo.

sábado, 9 de abril de 2011

O castelo nos Pirineus

Uma das boas coisas do sábado de manhã é o caderno Sabático do Estadão. Sempre traz algumas resenhas ou comentários sobre livros novos e dá para descobrir muita coisa boa. Por indicação do caderno, eu fiquei sabendo do lançamento e comprei "O castelo nos Pirineus" de Jostein Gaarder, autor norueguês de "O Mundo de Sofia" (que vendeu pacas no Brasil uns 10 a 15 anos atrás) e de "O Dia do Coringa" (que não fez tanto sucesso por aqui, mas que eu achei muito melhor que o primeiro).


O "castelo nos Pirineus" tem um estilo diferente de narrativa: é um romance epistolar, em que a estória vai sendo contada através das trocas de e-mails entre os dois personagens principais: Solrun (isso é nome de mulher, ok?) e Stein, que tiveram um romance intenso quando eram estudantes universitários, mas que se separaram por conta de um episódio traumático, inexplicável e que só é descrito lá para o final do livro.

Mais de 30 anos depois da brusca separação, eles se encontram por acaso, já casados e com suas próprias famílias, em um hotel norueguês e decidem iniciar uma troca de e-mails para discutir o ocorrido, sobre o qual cada um tem uma abordagem radicalmente oposta: enquanto Stein é um cientista absolutamente racional e cético, Solrun é uma pessoa profundamente espiritualizada.
O livro é curto, com menos de 180 páginas e pode ficar um pouco chato em alguns trechos, mas é uma leitura interessante e vale a pena resistir até o final. O título "O castelo nos Pirineus" vem de um quadro do belga René Magritte (http://pt.wikipedia.org/wiki/Magritte), que mostra um castelo sobre um rochedo, flutuando no ar e que é uma metáfora para o tal evento inexplicável que causou a separação de Solrun e Stein. Segundo o Leo, "parece o castelo do tio da Zoe, dos Caçadores de Dragões".

Obs.: Voltando um pouco ao assunto dos podcasts, um outro que encontrei e gostei do que ouvi até agora, é o canadense Books You Should Read (BYSR). A qualidade dos episódios oscila, mas como são muitos, tem coisa boa no meio e dá para escolher baixar apenas os assuntos que lhe interessam. Os apresentadores mudam dependendo dos episódios e tem um cidadão lá que é um completo mentecapto, mas dá para ignorar os comentários dele e se concentrar nos entrevistados e nos outros colaboradores do podcast. Embora deva dar um desconto pro cara por causa do que ele diz sobre "O Alquimista" - é hilário.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Platão, o "Admirável Mundo Novo" e um congestionamento

Uns dias atrás assinei o podcast de um programa semanal da rádio australiana ABC chamado "The Philosopher's Zone". É, é estranho mesmo, mas surpreendentemente bom. Discute "o mundo da filosofia e o mundo através da filosofia" e aborda temas muito variados, dos clássicos até atualidades como Wikileaks ou bio-tecnologia. Vale a pena. O site é: http://www.abc.net.au/rn/philosopherszone/, mas o podcast pode ser encontrado na iTunes Store. Infelizmente, o podcast não inclui todos os episódios (hoje, por exemplo, só há 8 disponíveis), mas no site dá para baixar todos, desde 2005, além de ser possível ler as transcrições na íntegra.

Bom, como só haviam 8 episódios no podcast e o trânsito em São Paulo anda um troço bisonho, assinei também um outro chamado "Philosophy: The Classics". Este parou de ser atualizado em 2007, mas há 17 episódios disponíveis, baseados em capítulos do livro homônimo de Nigel Warburton. Também é muito bom. Os áudios são focados nos clássicos, como Platão, Kant, Rousseau e Descartes e são muito claros e bem gravados. O site de referência é: http://www.virtualphilosopher.com/.

O primeiro episódio de "Philosophy: The Classics" é sobre Platão. Narra os conceitos básicos de uma forma, como disse, bem clara. São interessantes e um pouco chocantes os conceitos e idéias que formam o modelo de sociedade utópica apresentada por Platão em "A República", com os quais eu só havia tido um contato breve durante as aulas de filosofia do colegial, mas que agora adquirem contornos muito diferentes.

Uma das coisas que me chamaram a atenção, talvez influenciado pelo excesso de CO2 no congestionamento da Av. Brasil desta noite, foi a semelhança entre sua utopia com a distopia apresentada por Aldous Huxley em "Admirável Mundo Novo". Se você já leu, ouça ao podcast e confira (mais fácil que ler "A República").

Mas só para ter certeza de que eu não estava viajando na maionese e escrevendo uma asneira, resolvi usar o Google Scholar e pesquisar esta correlação (se nunca usou, experimente também: http://www.scholar.google.com/) . E não é que existe mesmo? Encontrei uma dissertação de mestrado da UFRGS de 2009 de Maurício Moraes Wojciekowski (esse sobrenome conseguiu sobrecarregar o corretor ortográfico do Word...), que trata exatamente deste tema, em: http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/17521. Caso já tenha tido algum contato com "A República" e o "Admirável Mundo Novo", acho que vale a pena dar uma lida, mesmo que seja nas tabelas comparativas do final do trabalho. Acabo de fazê-lo e vou dormir feliz, sabendo que o CO2 ainda não fritou meus últimos neurônios.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Ken Follett e o "Mundo Sem Fim"

Existem alguns escritores que escrevem em escala industrial. Eles publicam tanto, que acho que a única explicação é terem uma bela equipe por trás, fazendo pesquisa e escrevendo boa parte dos textos. Uns exemplos são: Tom Clancy, John Grisham e Ken Follett.

Enquanto Clancy é especializado em livros de espionagem e ações militares e Grisham é especializado em livros sobre advogados e processos, Ken Follett é algo à parte. Ele escreve sobre temas absolutamente díspares e em geral o faz de forma muito competente, mas prefiro os seus romances históricos.

Acabo de ler "Mundo Sem Fim", que é um desses romances. O livro se passa algumas gerações após "Os Pilares da Terra", durante o século XIV (época da Peste Negra e de umas das várias guerras entre Inglaterra e França), na cidade fictícia de Kingsbridge na Inglaterra e envolve um grupo de 5 personagens principais: um arquiteto/construtor, um cavaleiro, um monge, uma camponesa e uma "médica", cujas vidas vão se entrelaçando ao longo do texto. A trama é muito bem concebida e complexa o suficiente para não ser possível condensar em um filme e muito menos resumir aqui. Basta dizer que é muito boa e faz valer a pena as mais de 900 páginas da versão em português.
Além disso, as descrições dos costumes da época, das cenas de batalha, das disputas jurídicas, dos detalhes de arquitetura, das particularidades da medicina e do comércio são cuidadosas e detalhadas, colaborando muito com a verossimilhança da estória, de modo que mesmo que o leitor não goste da trama, certamente acaba pelo menos aprendendo algumas coisas novas e não vai ficar com a sensação de ter perdido seu tempo com o livro.

E é isso que é interessante no caso de Ken Follett. Ele pode escrever livros bons e longos, que obviamente demandaram muita dedicação e pesquisa, como pode escrever livros absolutamente descartáveis. Vai, então, a minha classificação pessoal sobre os que li:

- "Noite Sobre as Águas" - mediano;

- "Código Explosivo" - descartável (não consigo nem me lembrar direito do que se tratava, o que é um mau sinal);

- "O Homem de São Petesburgo" - médio para bom, embora a trama tenha algumas coincidências infantis, do tipo de novela mexicana, que seriam bem dispensáveis;

- "O Vôo da Vespa" - descartável, também.

- "O Buraco da Agulha" - pelo menos bom, mas como já li há muito tempo, posso estar sendo injusto e pode ser ótimo. Mas sei que merece ser lido de novo.

Ken Follett tem um site oficial, onde pode-se ler os primeiros capítulos dos livros e identificar os títulos e editoras em cada país. É o: http://www.ken-follett.com/

Ainda não li o mais recente "Queda de Gigantes", mas só ouvi falar bem por enquanto. Assim que ler, digo o que achei. Mas, pelo tamanho, vai demorar um bocado.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Algemas e flechas

O ser humano é um bicho trágico. Somos trágicos sob diversos aspectos, a começar pela consciência de que somos (como diz o sábio Sheldon Cooper, quando questionado sobre como vai a vida), condenados a "entropia, decadência e eventualmente, morte".
Entretanto, algumas das tragédias a que estamos sujeitos foram causadas por nós mesmos. Nessa categoria eu coloco, com distinção, a nossa relação com o tempo.

Começando pelo começo: o que é um relógio? Em última instância, o relógio é o resultado de uma tentativa do homem escravizar o tempo, que saiu pela culatra. Um bom exemplo de como devemos tomar cuidado com o que desejamos.

Com a modernidade, a relação do homem com o relógio evoluiu para uma relação franca de escravidão, especialmente nas grandes cidades, com todos ostentando uma bela algema no pulso esquerdo (ou direito, se você for canhoto ou anormal), de preferência fazendo companhia para uma simpática pulseirinha Power Balance.

Apesar de todos terem relógio, muita gente choraminga não ter tempo para nada. Curioso, pois o tempo é a uma das únicas, senão a única coisa, que é absolutamente igual para todos desde o nascimento, não é? Obviamente, a diferença está em como você usa seu tempo, mas é fundamental aceitar a noção clara de que esta é uma decisão que você está condenado a tomar continuamente, dia após dia, sozinho. Uma responsabilidade toda sua e só sua, independente do que você possa tentar jogar na conta do seu chefe ou do trânsito da sua cidade. Não adianta choramingar.

Outro lado interessante da nossa relação com o tempo está na percepção de que o tempo parece andar mais depressa conforme você vai ficando mais velho. Quantas vezes você não chega ao final do domingo perguntando como foi que o final de semana passou tão depressa? Até que ponto esta aceleração não é causada por nós mesmos e a nossa teimosa mania de projetar o futuro?

Uma metáfora elegante para abordar esta questão é a da "flecha do tempo", do Sr. Mark Rowlands , que vou tentar resumir aqui (tá, já falei dele umas três ou quatro vezes antes e confesso: virei fã do trabalho do cara).

Para ele, uma das grandes diferenças entre humanos e animais está em que o conceito de "futuro" para os animais é algo perfeitamente explícito: se o seu cachorro sente desejo de um gole de água, este desejo o conduzirá em direção um futuro em que este desejo seja satisfeito, o que pode envolver, por exemplo, levantar-se do tapete, atravessar a sala e chegar até a tigela. Fazendo uma analogia com uma flecha, este desejo de beber água funciona, para o cão, como uma flecha lançada em direção ao futuro: é preciso apenas se mexer e sobreviver tempo suficiente para que a flecha atinja seu alvo.

Nossa concepção de futuro, entretanto, é diferente. Nós conseguimos perceber futuro como futuro e somos movidos pela visão de que se estudarmos bastante, trabalharmos bastante e fizermos as coisas e escolhas certas, chegaremos a um futuro onde não precisaremos fazer mais nada disso. Esta abordagem claramente não envolve apenas desejo, como no caso do cão com sede, mas também objetivos e projetos, coisa que os animais não têm.

Nossas flechas, portanto, não são como as deles, e é aí onde está a elegância da metáfora: as nossas são como flechas incendiárias, que iluminam e nos permitem visualizar um pouco deste futuro, reforçando a nossa ansiedade e sensação de necessidade de planejamento e projetos para que o alvo desejado seja atingido.

A tragédia, nesse caso, é que acabamos vivendo sempre no meio do caminho, gastando uma enorme quantidade de tempo fazendo o que não queremos, movidos por uma visão de futuro que pode, ou não, se concretizar. E quanto mais planejamos, mais flechas lançamos e mais rápido o tempo parece passar.

Juntando uma coisa com a outra: antigamente, a noção de tempo era regida por estações do ano, épocas de plantio e colheita, fases da lua e coisas do tipo. O planejamento estava em se preparar para o inverno, ou para o nascimento de um filho. Hoje, a noção de tempo é regida pelo relógio, na casa dos minutos: se você se atrasa 10 minutos para uma reunião, é uma gafe imperdoável. Já o planejamento vai de um extremo a outro: planejamos no sábado o almoço do domingo e planejamos aos 25 anos como será nossa aposentadoria aos 70. Lançamos flechas incendiárias o tempo todo, às mais variadas distâncias, e gastamos uma energia imensa tentando fazer com que caiam nos lugares certos. Não é de se admirar que o tempo passe cada vez mais rápido e que sejamos, cada vez mais, seus escravos.

Como eu mencionei no início, o ser humano é um bicho trágico, e parte de nossas tragédias são causadas por nós mesmos. Acho que merecemos. Afinal, que outro bicho seria estúpido o bastante para voluntariamente criar algo imbecil como o despertador? Se o relógio é uma algema, o despertador é o nosso feitor: aquele desgraçado que vem diariamente chicotear nossas orelhas e nos tirar do nosso único estado natural de felicidade: dormindo.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Contra um mundo melhor

Eu nunca fui fã de ideologias de esquerda. Hoje em dia pode não ser lá muito sexy, ou “polticamente correto”, se declarar como de centro-direita, mas o “polticamente correto” também nunca foi o meu forte.

Costuma-se ver a aversão a ideologias de esquerda como uma falta de preocupação social, mas posso garantir que não é o caso. Na realidade, eu apenas não concordo com a visão de que as virtudes estariam todas com o proletariado e os vícios com as elites.

Este posicionamento me trouxe uma certa afinidade com os textos do Arnaldo Jabor, que me habituei a ler no Estadão semanalmente. Para quem mora em São Paulo, a opção entre Folha e Estadão é meio como uma opção entre Lions e Rotary: não são posições contrárias, mas dificilmente quem entra em um passa para o outro, de modo que eu não tinha tido nenhum contato com os textos de Luiz Felipe Pondé (colunista da Folha), até comprar o livro “Contra um mundo melhor: ensaios do afeto”, da editora Leya.

Luiz Pondé é um psicanalista e filósofo que escreve na Folha desde 2008 e o livro é uma coletânea de ensaios sobre uma grande variedade de assuntos, como dinheiro, o relacionamento moderno entre homens e mulheres, felicidade, etc.. O que o torna irresistível é a abordagem polêmica, cética e ácida, também profunda e cheia de referências a diversos ramos da filosofia.

Como dito na contra-capa do livro, Pondé escreve “contra um mundo que mente sobre si mesmo”, e já desde as primeiras páginas você percebe se vai adorar ou detestar os textos, mas não acho possível ficar indiferente. Também não acho possível concordar com todos eles, mas recomendo que sejam lidos até o fim, embora possam causar danos a algumas sensibilidades . E podem também surgir algumas surpresas, especialmente se você estiver entre as “três ou quatro pessoas” que chegarão até o último.

Apenas como aviso para quem se interessar em adquirir o livro, vai aqui a recomendação do autor sobre quem não deve comprá-lo:

“Se você se acha uma pessoa equilibrada, dessas que respeitam o parceiro no amor, que creem na igualdade entre os sexos como adorno na sua cama de casal, que comem apenas comida saudável, que conversa com plantas porque se julgam mais consciente, que se julgam sensível e honesta, que reciclam lixo, feche este livro. Todas as poucas palavras que encontrará aqui são contra você. Você é um mentiroso, ou uma mentirosa. (...) Dedico horas do meu dia a pensar em formas variadas de fazer gente como você sofrer.”

Como eu disse, irresistível. Leia.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Neologismos

Felizmente parece que a mídia está adotando a forma "a presidente" para se referir à nossa nova timoneira. Como se já não bastasse ter que aguentar os Bonner dizendo "no Recife" e "Roráááima", só faltava ter que ouvir "a presidenta" por aí.

Aliás, por que "no Recife"? Nós falamos "em Natal" e "em Salvador", não é? Sempre foi "em Recife". Por que raios agora é "no Recife"? Até dói nos ouvidos.